Além da origem

Desafios para identificar início da transmissão para humanos é imenso. Força-tarefa do periódico The Lancet buscará fazer isso, e ainda propor recomendações para o mundo se antecipar às próximas pandemias

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O esforço investigativo sobre a origem do novo coronavírus ganhou um reforço importante na semana passada, quando o periódico científico The Lancet criou uma força-tarefa com 12 especialistas que se dedicarão ao problema. Por enquanto, nem eles ou mesmo o time de cientistas montado pela Organização Mundial da Saúde (OMS) têm autorização para viajar à China. É claro que a politização da pandemia cobra seu preço: o próprio coordenador da força-tarefa da Lancet, Peter Daszak, viveu isso na pele: um edital de US$ 3,7 milhões foi retirado pela Casa Branca da organização que ele coordena, a EcoHealth Alliance, depois que a administração Donald Trump soube que ela colabora com o  Instituto de Virologia de Wuhan.

De toda forma, os desafios são grandes o bastante sem levar em conta o contexto político e uma reportagem da Wired relata esse quebra-cabeça. Em primeiro lugar, não é sempre que os cientistas conseguem reconstituir a cadeia de transmissão dos vírus emergentes. Há casos em que tudo bate, como o do Nipah, vírus que surgiu na Malásia em 1998 e cuja história inspirou os roteiristas do filme Contágio. Na época, o desmatamento para abrir plantações empurrou morcegos, antes isolados, para a beira de uma floresta; os bichos se instalaram nas árvores perto de uma criação de porcos, e os contaminaram. Os porcos, por sua vez, infectaram os humanos. “Quando os epidemiologistas investigaram o surto, todas as peças ficaram visíveis ao mesmo tempo”. 

A história do Sars-CoV-2é diferente: já se passou aproximadamente um ano desde que os primeiros casos de pneumonia de origem desconhecida apareceram em Wuhan. A essa altura, o vírus já foi encontrado em amostras de sangue, escarro ou esgoto coletadas antes de dezembro em países como Itália, França, Brasil e EUA – o que coloca em dúvida a cronologia da pandemia. Há, contudo, algum grau de certeza de que tenha surgido na China: uma sequência genética 96% semelhante ao novo coronavírus foi detectada em um morcego capturado vivo em 2013 em outra província chinesa, Yunnan, a cerca de 1,6 mil quilômetros de Wuhan. “Esses quatro pontos percentuais de diferença são suficientes para indicar que o vírus do morcego não havia simplesmente passado para humanos uma única vez; pode ter passado por múltiplos cruzamentos de morcegos para humanos e depois para outros humanos, ou de morcegos para outros animais e daí para humanos”, explica a repórter Maryn McKenna. 

De qualquer forma, saber como o vírus ‘transbordou’ de animais para nós é uma parte do desafio da força-tarefa da Lancet. O segundo objetivo dos pesquisadores é fazer recomendações para ajudar o mundo a se antecipar a pandemias – e não há muito consenso a respeito de como se possa fazer isso.

O próprio Daszak defendeu no passado que deveria haver um reforço no trabalho de detecção de novos vírus na vida selvagem, para encontrá-los antes que os patógenos deem o salto zoonótico, ou seja, sejam transmitidos entre espécies. Mas há quem observe que isso não deu muito resultado dando como exemplo o caso do vírus da zika, nosso conhecido, que foi descoberto num longínquo 1947 e, mesmo assim, causou muitos estragos entre 2015 e 2018. 

Ouvido pela reportagem, o biólogo Colin Carlson defende que os sistemas de saúde deveriam ser fortalecidos para que pudessem fazer os testes necessários para a detecção de surtos – o que pode exigir uma avaliação completa de qualquer paciente que chegue a qualquer hospital com os tipos de sintomas que geralmente são categorizados como ‘virose’: febre inexplicável ou sintomas de infecção respiratória sem causa óbvia. Mas isso não basta, pois essas informações deveriam ser registradas em algum sistema de alerta global, de modo que qualquer padrão emergente possa ser percebido antes que os contágios saiam do controle. 

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