O “orçamento secreto” contra o impeachment

“Emendas RP9”. Sob este código, Centrão distribui verbas para congressistas fiéis ao Planalto “azeitarem” suas bases eleitorais e se manterem à tona. Condenado pelo TCU, mecanismos distribuiu R$ 2 bi em dois dias, após denúncia dos irmãos Miranda

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TOMALÁ, DÁ CÁ

O governo não perdeu tempo para comprar a boa vontade da base aliada depois da denúncia dos irmãos Miranda, que levou as suspeitas de corrupção na compra da Covaxin para o colo de Jair Bolsonaro. O depoimento-bomba à CPI aconteceu na sexta, 25 de junho. 

Já na segunda-feira, 28, o ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, liberou R$ 1,85 bilhão para fundos municipais de saúde. No dia 30, a torneira abriu mais um pouco, e foram liberados R$ 191 milhões.

O repasse acontece via orçamento secreto – uma modalidade de emenda parlamentar conhecida pela sigla RP9. Ou seja, o relator-geral do Orçamento, senador Márcio Bittar (MDB-AC), atende pedidos de parlamentares para direcionar recursos para redutos eleitorais em troca de apoio político ao governo. 

A população não fica sabendo que parlamentares são esses, pois seus nomes não aparecem nas emendas. Ao mesmo tempo, bilhões de reais são usados com o único propósito de manter satisfeita a base aliada.  Por essas razões, o Tribunal de Contas da União (TCU) avalia que o uso das emendas RP9 fere a Constituição. O ministro do TCU Benjamin Zymler disse que “claramente” essas emendas se contrapõem aos princípios orçamentários de transparência e universalidade.

No último dia 30, enquanto Queiroga liberava milhões para essas emendas, o TCU recomendou que elas passem a ser registradas em plataforma eletrônica com acesso público, com garantia de comparabilidade e rastreabilidade de pedidos e sua respectiva execução.

A investigação do Estadão mostra que antes do depoimento dos irmãos Miranda à CPI, R$ 64,9 milhões tinham sido liberados dessa forma no Ministério da Saúde. Depois das acusações feitas pelos irmãos, “do nada”, a pasta autoriza a liberação de R$ 2,1 bi…

São Gonçalo (R$ 53 milhões), Duque de Caxias (R$ 25 milhões) e Curitiba (R$ 24 milhões) são os redutos eleitorais mais privilegiados nessa leva de emendas. Procurados pelo jornal, nem o ministério, nem Bittar quiseram comentar. No total, o orçamento deste ano prevê R$ 17,2 bilhões de emendas de relator.

MESMA ESTRATÉGIA

Eduardo Pazuello disse a aliados que, num outro episódio, foi pressionado pelo presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), e pelo ministro da Casa Civil, Luiz Eduardo Ramos, a distribuir verbas para o Centrão.

De acordo com Folha, o contexto era o das eleições no Congresso. No fim de 2020, entraram na mira recursos que sobraram do orçamento da pasta. O Ministério da Saúde teria recebido listas de estados e municípios que deveriam obter um “pixulé” de R$ 830 milhões em verbas de emendas do relator (RP9). 

Assinados pelo deputado Domingos Neto (PSD-CE), relator do orçamento de 2020, os ofícios teriam sido elaborados com o aval de Ramos, que na época comandava a Secretaria de Governo.

Aliados de Pazuello dizem que ele resistiu ao acordo e aplicou a maior parte dos recursos dentro dos programas do próprio ministério – o que teria incomodado Lira e Ramos. “E aí começou a crise com liderança política que nós temos hoje, que mandou uma relação para a gente atender e nós não atendemos. E aí você está jurado de morte”, afirmou Pazuello no famigerado discurso de despedida da pasta, três meses atrás. 

Os dados do Portal da Transparência mostram que os pedidos para direcionar repasses de verbas da emenda do relator não foram totalmente atendidos pelo Ministério da Saúde. Em um dos ofícios enviados à pasta em dezembro, por exemplo, havia sugestão de aplicar R$ 70 milhões no fundo estadual de saúde do Piauí, mas o ministério empenhou naquele mês cerca de R$ 30 milhões para o estado. Os ofícios não revelam quais congressistas apadrinharam as verbas”, informa a Folha.

QUEM É MAX

Francisco Maximiano, dono da Precisa Medicamentos, é objeto de duas ótimas reportagens publicadas no fim de semana. A matéria da Piauí foca no histórico de contratos polpudos com a administração pública, seguidos por calotes. Assim que foi constituída, em 2012, a Global Gestão em Saúde conseguiu o contrato para administrar o vale-farmácia dos Correios – um negócio de R$ 60 milhões. No mesmo ano, o fundo de pensão da estatal, o Postalis, aportou mais de R$ 40 milhões num outro fundo, chamado FIP Saúde, que detém a quase totalidade das ações da Global. 

Os cotistas do FIP Saúde são anônimos, e hoje o fundo tem um patrimônio líquido de R$ 100 milhões. O aporte do Postalis foi irregular. “O fundo de pensão dos Correios jamais recuperou o investimento, sendo obrigado a provisioná-lo como perda em seu balanço”, diz a Piauí. Os gestores do Postalis não foram punidos.  

Um ex-vereador do PT na cidade de Americana (SP), Alexandre Romano, chegou a fechar um acordo de delação em que contava ter intermediado propina paga por Maximiano a um gestor dos Correios, em troca de vantagens na estatal. A delação não foi para frente, mas o assunto voltou a ser investigado no início de 2021. 

Em 2015, a Global abocanhou o vale-farmácia da Petrobras por mais de R$ 500 milhões. De novo, houve problema: a empresa terminou processada em R$ 2,3 milhões pela estatal por não prover o benefício integralmente aos funcionários. 

“Em 2017, a Global firmou um contrato de R$ 20 milhões com o Ministério da Saúde para fornecer remédios para doenças raras. Max recebeu o dinheiro mas não entregou o produto. Por isso, a Global é investigada juntamente com o deputado Ricardo Barros (PP-PR), que era ministro da Saúde na época e hoje é líder do governo Bolsonaro na Câmara”, resume Ana Clara Costa.  

Max também deu calote no Hospital Sírio Libanês. Internado para tratar de um problema cardíaco, não honrou o boleto… 

As finanças de Max são o foco da reportagem do Intercept. Embora ele seja dono ou sócio de nove empresas cujos capitais sociais ultrapassam os R$ 40 milhões, o empresário omitiu em sua declaração de imposto de renda que tem participação em seis delas. Na lista, estão Global e Precisa Medicamentos – que fez a intermediação do negócio entre o governo e a farmacêutica indiana Bharat Biotech, fabricante da Covaxin. 

De acordo com sua declaração pessoal de imposto de renda entregue à CPI, seus rendimentos alcançaram apenas R$ 52 mil em um ano – o equivalente a uma renda mensal de R$ 4,3 mil, totalmente incompatível com seus gastos, de acordo com extratos bancários. 

MUITO ESTRANHA

A história da intermediação de 400 milhões de doses da vacina da AstraZeneca fica cada vez mais surreal. A empresa dos EUA, Davati Medical, foi aberta em junho de 2020, conta com três funcionários e teve faturamento estimado em US$ 266 mil. O negócio renderia US$ 6 bilhões. 

Já a organização evangélica Secretaria Nacional de Assuntos Humanitários (Senah) recebeu em fevereiro e março aval do diretor de imunização do Ministério da Saúde, Laurício Monteiro Cruz, para negociar com a Davati… em nome do governo brasileiro. Foi o reverendo Amilton de Paula quem informou a Davati da reunião do dia 12 de março, quando o então número 2 do ministério, coronel Élcio Franco, tratou do negócio. A informação está em e-mails obtidos pelo Jornal Nacional.

Tem mais: a Senah recebeu uma carta de apoio do deputado federal Roberto de Lucena (Podemos-SP) – que vem a ser o autor do projeto de lei que pretendia liberar a compra de vacinas pela iniciativa privada, sem qualquer doação para o SUS. PL defendido por Carlos Wizard e Luciano Hang… Na carta obtida pela Agência Pública, o deputado diz que apoia “a Secretaria Nacional de Assuntos Humanitários (Senah) na aquisição de vacinas para o governo brasileiro, a preço humanitário”.

PÂNICO DESNECESSÁRIO

Na sexta-feira à tarde, a Folha publicou uma reportagem que levou muita gente ao pânico: “Milhares no Brasil tomaram vacina vencida contra Covid; veja se você é um deles”. O texto afirma que 26 mil doses do imunizante de Oxford/AstraZeneca com prazo de validade expirado foram aplicadas em 1.532 municípios até o dia 19 de junho. E destaca Maringá, “reduto eleitoral de Ricardo Barros”, como a “campeã” no uso, com mais de 3,5 mil doses vencidas aplicadas. “Na prática, é como se a pessoa não tivesse se vacinado”, alerta o texto.

Só que a manchete estava errada. Várias prefeituras, inclusive a de Maringá, começaram a publicar declarações contradizendo as informações da Folha, e logo o problema na apuração foi evidenciado, como explicam as notas do Observatório Covid-19 BR e da Rede Análise Covid-19.

Ocorre que a reportagem se baseou no cruzamento de dados de duas bases públicas – DataSUS e Sage – mas não checou o que encontrou. E o Observatório ressalta que a estrutura de dados no Brasil não permite dizer se houve aplicação de vacinas vencidas. Isso porque, como há muito se sabe, os sistemas de informação têm problemas relacionados ao registro, incluindo atrasos e erros de digitação. É comum que uma pessoa receba a vacina numa data, mas esse dado só entre no sistema muito depois – como acontece com os óbitos, por exemplo. 

“Essas inconsistências, embora importantes e necessitem constante validação dos dados já inseridos, de maneira geral não impactam análises agregadas como, por exemplo, cálculo do percentual da população já vacinada por faixa etária, por apresentarem um volume baixo frente ao total de registros. Porém, tornam-se obstáculos importantes para análises relacionadas aos chamados eventos raros, aqueles que ocorrem com relativamente baixa frequência”, notam os autores. As 26 mil doses supostamente vencidas são 0,7% de todas as já aplicadas do imunizante da AstraZeneca. O número bate com a frequência esperada de erro em bases de dados da saúde.

Pesquisadores do grupo analisaram as mesmas bases e seus achados sugerem “fortemente” que houve, de fato, apenas problemas nos registros. “A aplicação de vacinas no âmbito do Sistema Único de Saúde – SUS é submetida a tripla checagem para datas de validade. Apesar de todo o subfinanciamento e tentativas de desmonte, o SUS segue como referência mundial para campanhas de vacinação. Isso não significa que não possa ter havido vacina aplicada fora da data de vencimento, mas urge cautela antes de se declarar a origem dos problemas enfaticamente, em especial com tal potencial de repercussão e impacto sob a vacinação”, segue o texto.

Quatro horas depois de a reportagem ser publicada, a Folha alterou o título para “Registros indicam que milhares no Brasil tomaram vacina vencida (…)” e acrescentou, no fim da matéria, respostas de secretarias estaduais de Saúde. No entanto, como observa a Rede Análise Covid-19, a reportagem está protegida por paywall e a maioria da população só tem acesso ao título – que foi amenizado, mas continua assustador. “A notícia de pessoas sendo vacinadas com vacinas vencidas foi exatamente este caso: um dado publicado às pressas e com uma manchete estilo click-bait [manchete sensacionalista, para atrair cliques]. O resultado? Uma parcela da população com acesso já restrito à vacinação e à informação de qualidade entra em pânico. Outra parcela que já tomou a vacina e não sabe acessar dados com precisão, mais pânico ainda”, lamenta a Rede.

Hoje, três dias após a publicação, a matéria ainda é a segunda mais lida no ranking da Folha. O jornal não reconheceu, em nenhum momento, sua falha na apuração. Não cairia nada mal um pedido de desculpas.

Em tempo: a Folha publicou outra matéria no sábado informando que duas cidades, em São Paulo e na Paraíba, de fato aplicaram doses vencidas. No contexto da confusão suscitada pela reportagem anterior, fica a impressão de que o fato apareceu após a denúncia do jornal. Não foi assim, a notícia é velha. Ao longo do texto, vê-se que as duas cidades em questão tiveram o problema em abril e maio, mas na mesma época as prefeituras detectaram o engano e as 172 pessoas atingidas foram revacinadas. 

COBERTURA OBRIGATÓRIA

O Ministério da Saúde quer que a ANS (Agência Nacional de Saúde Suplementar) avalie a possibilidade de incluir as vacinas contra covid-19 entre os itens de cobertura obrigatória de planos de saúde. O documento com a proposta foi obtido pela Folha, e intenção foi confirmada pelo ministro Marcelo Queiroga. Segundo ele, além de garantir a oferta quando o setor privado conseguir comprar doses, a medida levaria à obrigação de as operadoras ressarcirem ao SUS por doses aplicadas em seus usuários.

Atualmente, o rol de procedimentos obrigatórios dos planos não tem vacinas para nenhuma doença: a imunização no país é feita via SUS e por algumas clínicas privadas. O professor da SUS Mário Scheffer aponta o risco de gerar fila dupla e “tumultuar ainda mais a vacinação”.

MERITOCRACIA DA VACINA

Começou ontem a aplicação de doses por empresas privadas na Colômbia. Mais de 5,9 mil companhias participam do programa “Empresas pela vacinação”, apoiado pelo governo federal, para imunizar os trabalhadores – mesmo que estejam fora dos grupos atualmente previstos no plano nacional. As empresas entraram com a verba, o governo fez a compra e vai distribuir e aplicar as doses.

As firmas não precisam seguir os critérios nacionais de elegibilidade para as vacinas, e a intenção é que todos os funcionários sejam alcançados. Mas a Rappi, que recebeu um primeiro carregamento com quatro mil doses – porém, tem 60 mil empregados –, decidiu estabelecer a seguinte regra: “Nossa prioridade será dar a vacina aos distribuidores que mais entregas fizerem, mais tempo estiverem conectados e, portanto, mais tempo expostos”. A declaração a uma rádio local lo diretor de Assuntos Públicos da Rappi, Juan Sebastián Rozo, rendeu uma chuva de merecidas críticas.

O ministro da Saúde relatou “surpresa” e disse à BBC que a situação era um alerta para a possível intenção parecida de outras firmas… 

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