Acordo das Pandemias: os limites de seu texto final

A OMS anunciou um consenso e tudo indica que o tratado será adotado em maio. Ele será importante, mas não o acordo de que o mundo precisa: timidez das cláusulas, diluídas pelas grandes potências, poderá manter países em desenvolvimento vulneráveis

Foto: John Kisimir/OMS
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Na última quarta-feira (16/4), a Organização Mundial da Saúde (OMS) informou em comunicado que, após mais de três anos de negociações, os países chegaram a um consenso quanto a uma proposta de texto para o Acordo das Pandemias. O anúncio precede em cerca de um mês a realização, em Genebra, da Assembleia Mundial da Saúde deste ano – onde espera-se que a redação final do tratado seja aprovada.

Debatida com avidez após os impactos da pandemia da covid-19 sobre o mundo, a adoção do Acordo acabou adiada pelas duras divergências entre o Norte e o Sul Global em torno de seus termos. O principal desacordo girou em torno do “acesso a patógenos e compartilhamento de benefícios” (PABS, na sigla em inglês). De forma resumida, os países em desenvolvimento denunciaram que as grandes potências econômicas promoveram agressivamente a visão de que os primeiros deveriam compartilhar dados de microorganismos com potencial de causar uma nova pandemia. No entanto, não haveria acesso garantido aos medicamentos, diagnósticos e vacinas que fossem desenvolvidos com as informações cedidas. Com a pressão, estas nações ricas estariam priorizando o lucro de suas corporações farmacêuticas, e não a ação coletiva contra futuras pandemias.

A quebra desse impasse foi o que permitiu à OMS anunciar uma redação final para o tratado: segundo o veículo Health Policy Watch, o Brasil teria formulado uma proposta de consenso aceita por ambos os blocos de países, prevendo que a cooperação em torno da transferência de tecnologia será “voluntária” mas em “termos mutuamente acordados”. Além disso, “os Estados Unidos vergonhosamente se retiraram das negociações, após bloquear seu progresso e diluir o texto do acordo”, lembrou Mohga Kamal-Yanni, diretora da People’s Medicine Alliance. Por isso, tudo indica, haverá Acordo das Pandemias.

No entanto, poderá ele ser um instrumento eficaz para o enfrentamento das próximas crises sanitárias de escala global? Em nota, a Rede do Terceiro Mundo (TWN) afirmou que, apesar de ser um “feito notável”, o texto final de consenso “não possui a ambição necessária para enfrentar significativamente as profundas iniquidades expostas pela covid-19 e outras emergências – as mesmas injustiças que levaram ao início dessas negociações – e fica aquém de assegurar que elas não se repitam no futuro”. No documento, assim como em manifestações de diversas entidades que acompanharam as negociações, são apontados os limites do Acordo das Pandemias que deverá ser adotado em maio deste ano.

Um processo difícil

Ao longo das rodadas de negociação do tratado, objeto de cobertura atenta de Outra Saúde, os principais especialistas reconheceram uma dinâmica clara no processo. Desde o início, a Europa e as demais potências pareciam se concentrar em reduzir o escopo do acordo, além de diminuir as obrigações previstas para as nações mais ricas. 

Entre as propostas que foram alvo de uma campanha de enfraquecimento, estão a criação de mecanismos de investimento público em pesquisas, estímulo à produção local de insumos nos países mais vulneráveis, distribuição equitativa de vacinas e medicamentos e obrigatoriedade do financiamento compartilhado – com maior responsabilidade das nações desenvolvidas – da preparação para as próximas pandemias. Todas são propostas que partem do princípio de que “os vírus não respeitam fronteiras” – isto é, de que, para impedir novas emergências de saúde, é indispensável uma ação comum em alto nível de coordenação e compromisso. 

Além disso, como sublinhou a economista Mariana Mazzucato, a atuação das grandes potências contava entre seus objetivos fundamentais a defesa da propriedade intelectual de grandes empresas, contra sua flexibilização para garantir o acesso a insumos essenciais. Essa conduta trazia o risco de um novo “apartheid pandêmico”, em que a ausência de compromissos levaria os países com menos recursos a carregar um fardo mais pesado novamente, nas próximas emergências sanitárias, enquanto os mais ricos sairiam menos afetados. 

“A pandemia da covid-19 expôs as consequências de não associar o financiamento público [de pesquisas] à busca do acesso equitativo. Sem cláusulas vinculantes, governos que investem em P&D de insumos de saúde podem se ver incapazes de assegurar que eles sejam desenvolvidos com êxito e tornados disponíveis para suas populações e todos que precisam deles”, alertou a Iniciativa Medicamentos para Doenças Negligenciadas.

Em comentário prévio à última rodada de negociações realizada antes do anúncio do consenso, a organização não-governamental Médicos Sem Fronteiras (MSF) havia manifestado uma preocupação similar: “Continuamos preocupados com a falta de consenso em torno de obrigações mais firmes, nos termos do Artigo 11, de facilitar a transferência de tecnologia para garantir a equidade. Com base na experiência da MSF, depender apenas da decisão voluntária das empresas donas dessas tecnologias é insuficiente. Outras medidas, como a ligação com o financiamento público e demais medidas previstas em leis nacionais e internacionais, devem ser reconhecidas”.

Na prática, o resumo do processo é que “os países em desenvolvimento lutaram por um acordo que aprendesse as lições da covid-19 e do HIV, com obrigações concretas que permitissem o acesso de todos aos insumos médicos e tecnologias necessários para prevenir, preparar e responder a crises sanitárias. Porém, após o pesado lobby da indústria farmacêutica, países ricos como a União Europeia, a Suíça e o Reino Unido asseguraram que o acordo ficasse aquém desse objetivo de saúde pública”, sintetizou Mohga Kamal-Yanni.

Problemas a enfrentar

Todos esses obstáculos impostos pelo bloco dos países mais ricos à construção de um Acordo das Pandemias realmente eficaz se expressaram em deficiências no texto final, como revela a nota da Rede do Terceiro Mundo, uma organização de pesquisa voltada a problemas do desenvolvimento e dos países do Sul. 

Em primeiro lugar, o tratado não prevê que as fabricantes de vacinas, medicamentos e diagnósticos que acessarem informações de patógenos com potencial pandêmico – o sistema de PABS – sejam obrigadas a compartilhar esses produtos com os países no caso de “emergências de saúde pública de interesse internacional e surtos”, apenas em pandemias.

Além disso, “cláusulas sobre transferência e tecnologia e diversificação geográfica das capacidades de P&D estão enquadradas em linguagem não-vinculante, sem obrigações para os possuidores de propriedade intelectual e conhecimento”. Não menos importante, o Acordo “não garante os recursos financeiros e tecnológicos necessários para implementar os artigos 4 e 5, que tratam da prevenção de pandemias e da vigilância”.

A conclusão da disputa em torno do acesso a patógenos e compartilhamento de benefícios se dará após a Assembleia Mundial da Saúde. Em um momento posterior, um anexo ao tratado será negociado para definir de forma clara os termos dessa cooperação, para além da linguagem de consenso proposta pelo Brasil. Para a Rede do Terceiro Mundo, “o próximo passo para a concretização da equidade é o consenso dos membros da OMS em torno de um anexo de PABS que ofereça garantias legais para um compartilhamento dos benefícios justo entre todos, desenvolvendo os detalhes operacionais de uma rede global de logística e da operacionalização de um mecanismo financeiro”.

“Sem essa especificidade, arriscamos repetir as acentuadas desigualdades testemunhadas durante surtos e emergências anteriores, em que o compartilhamento de materiais e sequências genéticas por parte do Sul Global não resultou em um acesso justo e tempestivo a vacinas, terapias e diagnósticos”, alerta o grupo.

A presidente da Médicos Sem Fronteiras, Maria Guevara, emitiu um comunicado em tom similar: “Convocamos os países a transformar os compromissos em ações concretas – é hora de pôr as pessoas antes dos lucros e dos interesses nacionais, e assegurar que os insumos médicos cheguem a quem mais precisa, quando precisarem deles. Esperamos que o artigo em torno da transferência de tecnologia seja finalizado e adotado pelos países, por ser um elemento crítico para o apoio ao acesso a insumos médicos para os povos de todo o mundo”.

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