Acordo das Pandemias: de volta à negociação

Novos diálogos sobre o texto do tratado terão início em setembro. Ação é urgente para conquistar cláusulas que realmente preparem o mundo para as próximas crises: entre elas, o maior compartilhamento de recursos e tecnologias com o Sul Global

O diretor-geral da OMS, Tedros Adhanom, e a chefe do órgão negociador do Acordo das Pandemias, Precious Matsoso, conversam em reunião. Foto: Christopher Black/OMS
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No mês de setembro que se inicia, serão retomadas as negociações do Acordo das Pandemias. Originalmente, os países haviam se comprometido a definir o texto do tratado até a Assembleia Mundial da Saúde que aconteceu em maio de 2024. Contudo, a ausência de consenso entre os Estados-membros da Organização Mundial da Saúde (OMS) e as críticas à condução do processo de discussão resultaram em um entendimento para estender as conversas até 2025.

Para o especialista indiano KM Gopakumar, em recente entrevista em vídeo ao People’s Dispatch, a nova rodada de negociações pode ser uma oportunidade de enfrentar o “legado colonial” na atual arquitetura da Saúde Global. Apesar da luta insistente dos países em desenvolvimento, ainda são poucos os mecanismos concretos – e com suficientes recursos – para promover maior equidade, por exemplo, na resposta a emergências de saúde pública. O resultado é o que, nos últimos anos, se viu na desigual resposta às pandemias da covid e da mpox no mundo.

Uma importante ferramenta para a pressão por um texto mais ousado no Acordo das Pandemias será o exemplo das alterações conquistadas no Regulamento Sanitário Internacional (RSI), destacou na mesma entrevista a ativista sul-africana Lauren Paremoer, do Movimento para a Saúde dos Povos (MSP). As mudanças no RSI estavam sendo discutidas em paralelo ao novo tratado – mas tiveram mais êxito que este, especialmente pela maior transparência do órgão negociador, eles frisam.

Para estar à altura do desafio de conter as futuras pandemias, defendem Gopakumar e Paremoer, o Acordo deve conter propostas mais firmes, evitando a cilada de ser um tratado protocolar, como querem as potências do Norte Global. Eles discutiram algumas dessas propostas, como a criação de mecanismos claros de transferência de tecnologias e insumos de saúde para os países em desenvolvimento.

O exemplo do RSI

O caso dos avanços no Regulamento Sanitário Internacional, abordado por Outra Saúde à época, não foi simples. Eles só ocorreram “depois de muitas idas e vindas entre os países desenvolvidos e os países em desenvolvimento”, lembraram os convidados.

Antes, nesse tratado criado em 2005, não havia “nada concreto em relação a questões como a inequidade no acesso a produtos de saúde” ou “mecanismos financeiros para apoiar a implementação” de medidas que enfrentem surtos internacionais de doenças, conta Gopakumar. No jargão da área, “produtos de saúde” são vacinas, testes, equipamentos e outras ferramentas decisivas para as ações da saúde pública.

A “transparência” do órgão que conduziu as discussões entre os países teria sido responsável por facilitar que se chegasse a consensos. Apesar da resistência das potências do Norte Global à introdução de cláusulas que exigem que eles contribuam de forma proporcional à sua maior riqueza, eles foram obrigados a “reconhecer que a equidade e a solidariedade são essenciais” para o sucesso dos esforços comuns no âmbito sanitário, diz Lauren Paremoer. Para isso, como explica a OMS, foi criado um mecanismo de coordenação financeira que identifique e oriente os países e situações para onde é necessário direcionar recursos da Saúde para conter o surgimento de novas pandemias.

Para a ativista do MSP, as mudanças foram “significativas, mesmo que modestas”, e “ajudarão os Estados-membros da OMS a fazer o básico” para seus cidadãos em momentos de emergência sanitária. Elas também serviram para “validar o processo multilateral” de negociação diplomática entre os países, hoje muito “questionado devido à influência das grandes corporações” nas discussões.

“Em março, já havia ficado bastante claro que haveria progresso no RSI, precisamente por conta das propostas que vinham do órgão negociador, que trouxeram confiança ao processo”, lembra Gopakumar.

Que Acordo das Pandemias aprovar em 2025?

Como revelou Outra Saúde em uma série de escritos (1, 2, 3 , 4, 5) que acompanharam o processo ao longo de sua duração, as negociações do Acordo das Pandemias tiveram um andamento completamente distinto ao do RSI. As críticas se concentram na metodologia do Birô Intergovernamental de Negociação (INB, na sigla em inglês).

As rodadas de discussão não foram conduzidas com base em um documento fechado sobre o qual as representações dos países fizessem emendas de supressão ou mudança. O INB reservou a si próprio o direito de, em períodos espaçados, redigir e apresentar rascunhos do tratado inspirados no conteúdo das conversas – o que dificultou a tarefa de realizar negociações concretas entre os países. Assim, quando o texto da proposta final de Acordo feita pelo INB chegou à mesa dos países, ela estava “distante do que a maioria dos Estados-membros gostariam de ver, especialmente em torno da equidade e do financiamento”, lamenta KM Gopakumar. A insatisfação inviabilizou a aprovação do Acordo em 2024.

Uma das grandes ausências foi a falta de um mecanismo robusto de PABS, sigla em inglês para “Acesso a Patógenos e Compartilhamento de Benefícios”. Em poucas palavras, seria uma ferramenta para assegurar que as nações (em geral, do Sul Global) que compartilhassem com os demais países amostras de vírus e bactérias com potencial para causar novas pandemias seriam beneficiadas a pouco ou nenhum custo pelos resultados – vacinas, remédios, etc – de pesquisas realizadas com esses agentes patogênicos. Sob pressão da indústria farmacêutica, as grandes economias capitalistas vetaram a inclusão de uma cláusula de PABS no Acordo.

O cenário é visto como grave porque “as pandemias são um tipo de emergência de saúde pública de interesse global muito mais definido e crítico”, explica o consultor indiano. “Para lidar com essas situações, são necessários dispositivos muito mais fortes” do que aqueles incluídos no texto que acabou não indo a voto na Assembleia Mundial da Saúde deste ano.

Por isso, para os especialistas e ativistas de movimentos da Saúde Global, os avanços que foram introduzidos no Regulamento Sanitário Internacional precisam encontrar ressonância nas novas negociações do Acordo das Pandemias. Em primeiro lugar, no método: o INB é convocado a conduzir as próximas discussões de forma mais transparente e com maior abertura para as discussões sobre o texto, assim como no RSI. Em segundo, na linguagem: não podem ficar de fora cláusulas que proponham formas concretas de implementar a equidade na resposta a pandemias, para que “os dois instrumentos possam trabalhar de forma complementar”.

Mecanismos coletivo para fortalecer o investimento na vigilância de patógenos, nos sistemas de saúde nacionais e na produção local de insumos de saúde como vacinas e medicamentos, além de cláusulas obrigatórias de compartilhamento equitativo de tecnologias, são algumas das medidas que foram consideradas essenciais pelos debatedores para que o Acordo das Pandemias seja um instrumento realmente útil na contenção de futuras emergências de saúde.

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