A pandemia segundo relatos singelos de brasileiros

A Revista Radis, da Fiocruz, publicou reportagem a partir de cartas dedicadas a amigos, familiares ou profissionais. Algumas transcendem a história e o tempo num registro que enovela dificuldades e comemorações pela ciência, o SUS e a valorização do cuidado

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O último mês de março marcou dois anos do dia em que a Organização Mundial de Saúde (OMS) declarou estado de pandemia. Os desafios de prevenção e controle, então, se mostraram imensos; dúvidas eram maiores que respostas e as recomendações de cuidado esbarravam em um cenário extremamente desigual. Para descrever esse novo mundo em transição, a Revista Radis, da Fiocruz, convidou leitores a escreverem cartas dedicadas aos amigos, familiares, profissionais – algumas transcendem a história e o tempo. 

“Meu tio Raimundo, homem forte, negro, de 65 anos, que conheceste no Círio, foi levado às pressas ao hospital, no início de abril. Não havia leito. Ele morreu no carro na porta do hospital, sem conseguir respirar, esperando atendimento”, escreve Luiz Fernando Cardoso, antropólogo, ao amigo que mora no exterior. Raimundo vivia no Caeté, comunidade quilombola no município de Moju (PA). A estratégia era se isolar, mas a necessidade de comer trouxe o vírus às casas, conta. Os povos originários enfrentaram enorme deficit estrutural, falta de garantias e desrespeito aos territórios.

Nos hospitais, ficou marcada a exposição diária à morte e as aflições dos profissionais da Saúde. Após meses, veio o alívio com a aprovação da primeira vacina. “Talvez vocês não entendam o motivo dessas lágrimas, mas eram uma mistura de alívio, de dor e de revolta. Por causa do negacionismo, perdemos amigos, familiares e conhecidos para a covid-19. Mas esse momento também me deu o conforto de saber que eu estaria imunizado […], e me deu a certeza de que em algum momento vocês também estariam”, memora Rafael Francisco Teixeira, enfermeiro e coordenador de Vigilância Epidemiológica na Secretaria Municipal de Saúde de Rio Claro (RJ).

Houve também quem escreveu àqueles que garantem a segurança dos profissionais de saúde, limpando e esterilizando: carta À Maria, uma trabalhadora do SUS, lembra que cada uma dessas profissionais invisibilizadas merecia o mesmo aplauso dos heróis da linha de frente – embora as instituições não as reconheçam. “Maria, quantas vezes você tentou, em vão, tirar as marcas dessas dores de cada ambiente, em seu esforço para amenizar o cheiro do medo que pairava no ar. Não era possível, pois tudo isso estava entranhado em cada um dos corpos e almas ali presentes, inclusive em ti, não é mesmo?”

Ao filho Pepeu, Cláudia Vasconcelos lhe escreve a primeira carta para lembrar que não havia escola, o parque, os coleguinhas, o futebol, a capoeira, o maracatu. “As culpas maternas que teimam em acompanhar as mães chegaram forte nesse momento: insegurança, chateação, excesso de presença um do outro e de telas, seu processo de alfabetização, medo e tristeza atravessaram nossa rotina”. Por outro lado, outros elementos eram revelados. “Entre acordos semanais que eram refeitos e planos de adotar um gato e umas plantas, você não soltou a minha mão. Sou muito grata a você, por isso nos tornamos companheiros inseparáveis.”

Uma das cartas retorna mais de 120 anos para agradecer um dos pioneiros que projetaram as vacinas: Oswaldo Gonçalves Cruz. O texto também descreve as más notícias do futuro: “Apesar dos enormes ganhos de saúde proporcionados pelas campanhas de imunização, o senhor ficará perplexo com a informação de que movimentos antivacina se expandem em todo o mundo, e que ganharam impulso, veja só, durante a maior tragédia sociossanitária vivida pela humanidade”. Mas não perde a esperança: “A vocação pela obscuridade de uma parcela da sociedade, em meio às crises, sempre existirá. Quanto a nós outros, que agora somos tantos, nos cabe estar sempre por aqui, tentando clarear a caminhada.”

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