A árdua reconstrução das políticas de Saúde Mental

Após anos de retrocesso e obscurantismo, o esforço para restabelecer a Rede de Atenção Psicossocial engatinha. Como ele enfrenta as pressões da Bancada da Bíblia, a falta de recursos e a sombra da hipermedicalização

Foto: Museu Bispo do Rosário
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Quando chegou para trabalhar em seu novo escritório, nos primeiros dias após a criação do Departamento de Saúde Mental no Ministério da Saúde do governo Lula, Sônia Barros se deparou com um cenário preocupante. Parte dos serviços de cadastramento relacionados à Rede de Atenção Psicossocial (Raps) estavam interrompidos. Março de 2023 já chegava ao fim, havia uma Conferência Nacional para ser construída, mas era urgente corrigir os erros dos anos passados.

Parte constitutiva da Raps, os Centros de Atenção Psicossocial (Caps) são instituições de acolhimento para cuidado de afecções psiquiátricas e foram pensados de forma a substituir os antigos manicômios, adotando o princípio do cuidado em liberdade. Ao analisar a situação deixada pelas gestões passadas, a equipe de Sônia constatou que estava congelado o credenciamento de novos Caps, de residências terapêuticas e de unidades de acolhimento, enquanto a fila se de solicitações se avolumava. 

“Havia uma orientação da gestão anterior para que esses serviços não fossem habilitados”, informa Sônia, em entrevista ao Outra Saúde. “Isso acarreta um ônus para os municípios, porque quando eles pedem a habilitação, os serviços já devem estar funcionando”. Então as prefeituras precisavam manter os equipamentos em operação sem subsídio do Ministério da Saúde. “As primeiras iniciativas foram no sentido de fazer a fila andar”, explicou a diretora. 

A entrada de Sônia marca uma fase importante para as políticas públicas de saúde mental no Brasil. A gestão de Nísia Trindade na Saúde, por compreender a importância do tema para a população, tomou a iniciativa de elevar o status da Coordenação de Saúde Mental a Departamento, dentro da Secretaria de Atenção Especializada em Saúde (SAES). Em julho, poucos meses após a indicação de Sônia ao cargo de diretora, foi feito o anúncio de ampliação em 27% (R$ 414 milhões em 2023) dos recursos adicionais destinados aos Caps e aos Serviços Residenciais Terapêuticos (SRT).

Já no final do ano, o governo Lula anunciou, com o Novo PAC, a destinação de R$ 154,4 milhões para a construção de 75 novas unidades do Caps. “Voltamos a priorizar esses serviços que são a estrutura da Rede de Atenção Psicossocial, que são super importantes para a desinstitucionalização”, defende a diretora. O custeio para cada unidade também foi recomposto em 100%. “Nos interessa que haja um estímulo para que os municípios peçam a habilitação desses serviços de acolhimento”, continua Sônia. 

Trata-se de uma virada e tanto, se considerarmos as políticas para o tratamento de pessoas com transtornos psíquicos e problemas com drogas dos governos de Michel Temer e Jair Bolsonaro. Em forte aliança com as igrejas evangélicas, os presidentes apostaram na volta dos manicômios, representados principalmente pelas instituições chamadas equivocadamente de “Comunidades Terapêuticas”. 

São centros de atendimento de pacientes psiquiátricos e pessoas com vício em drogas que restringem sua liberdade, além de muitas vezes fazerem conversão à força, praticarem abusos, tortura e a cinicamente denominada “laborterapia” – eufemismo para trabalho não remunerado ou análogo à escravidão. Grande parte deles são ligados a igrejas, em especial as evangélicas.

Uma Conferência Nacional, depois de 13 anos

Outro momento importante da gestão de Sônia Barros foi a realização da 5ª Conferência de Saúde Mental, entre 11 e 14 de dezembro, em Brasília. Evento pensado para acontecer a cada quatro anos e integrar as propostas da sociedade civil na construção de políticas públicas, a Conferência passou por um lapso de 13 anos. 

Em 2020, o Conselho Nacional de Saúde (CNS) tomou a decisão de convocar nova conferência, durante um momento crítico da política. Em seguida, o CNS aguardou recursos financeiros e a continuidade da parceria com a então Coordenação de Saúde Mental. Mas ela não aconteceu. “Quando eu assumi, o doutor Helvécio Magalhães [secretário da SAES] se comprometeu com o financiamento e apoio à Conferência”, conta a diretora.

Ao acompanhar as discussões da Conferência, ficou claro para Sônia que de fato havia uma grande necessidade dessa abertura de diálogo com a sociedade. “Entendemos que as pessoas querem discutir, querem a expansão dos serviços, querem trabalhadores qualificados, abertura de concursos públicos. Essas questões ficam colocadas, então, para o departamento e para o ministério”, compreende. “Temos a expectativa de que essas recomendações possam enriquecer as propostas que estamos construindo.”

Para Paulo Amarante, psiquiatra e figura central no movimento antimanicomial brasileiro, esse longo período sem a realização de novas conferências foi um retrocesso. “Porque a ideia da Conferência é construir uma agenda, uma proposta política, um cronograma de luta, princípios, bases etc. Então é importante que esteja sendo feita no primeiro ano do governo, e que ela seja referência para a retomada da participação social”, avalia.

Mas Amarante acredita que é possível fazer muito mais, em conjunto com a sociedade. Ele vê a falta de participação de outros ministérios como um passo atrás, em relação à Conferência de 2010. Paulo também sentiu falta da participação de movimentos de base intersetorial. Isso acaba, para ele, criando uma visão muito restrita do que é saúde mental. O mentaleiro sentiu falta da presença de membros da Educação, do Trabalho, do próprio Desenvolvimento Social, além de movimentos como a Associação Brasileira de Saúde Mental, a Abrasme.

Outra iniciativa das forças progressistas, anunciada na Conferência, foi o relançamento da Frente Parlamentar em Defesa da Luta Antimanicomial no Congresso Nacional. Ela era coordenada por Erika Kokay (PT-DF), e agora fica nas mãos do pastor Henrique Vieira (PSOL-RJ). A deputada federal celebrou a retomada da Frente, e destacou que um de seus objetivos principais será o combate à proliferação de Comunidades Terapêuticas.

Kokay frisou que seu sucessor “sabe que as Comunidades Terapêuticas não são comunitárias e tampouco terapêuticas. Nós não queremos a lógica punitivista, a lógica segregacionista. O Brasil já vivenciou isso, e nós não queremos retornar. Muito menos com recursos públicos”. Completou: “A estratégia é visível: precarizar a Raps, utilizar a precarização forçada para justificar as Comunidades Terapêuticas e drenar o financiamento para elas, para ir perpetuando a própria precarização”.

Muito criticadas nos debates e corredores da Conferência, as Comunidades Terapêuticas não têm nenhum respaldo do Ministério da Saúde. Mas, na tentativa de conciliar com os evangélicos, o governo Lula criou uma complicação: estabeleceu um Departamento de Apoio a Comunidades Terapêuticas dentro do Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome. Em maio, após pressão de movimentos sociais, o nome foi alterado para Departamento de Entidades de Apoio e Acolhimento Atuantes em Álcool e Drogas – mesmo assim, o risco prossegue.

Ciente do risco que se perpetua, o deputado Henrique Vieira afirmou: “O dinheiro público gasto hoje com as Comunidades Terapêuticas representa menos investimentos na Rede de Atenção Psicossocial, vinculada ao SUS, que é realmente equipada para cuidar das pessoas com base na ciência, no atendimento integral e na redução de danos”. O governo gasta, hoje, R$ 214 milhões em 611 CTs. Representa quase 40% a mais do que foi anunciado para construir 75 Caps pelo Novo PAC.

Mais conquistas e obstáculos à vista

Outra vitória oriunda da reforma psiquiátrica no primeiro ano do novo governo Lula aconteceu no Conselho Nacional de Justiça (CNJ).  A resolução nº 487 estabeleceu o fim dos hospitais de custódia e tratamento psiquiátricos, conhecidos como manicômios judiciários. Era para onde iam pessoas que cometeram crimes e que tinham diagnóstico de transtorno mental. Na prática, a resolução simplesmente cumpre o que a Lei Antimanicomial de 2001 já havia determinado: a reinserção em comunidade de pacientes com transtornos psíquicos. Os manicômios judiciários devem deixar de funcionar até maio de 2024.

Em artigo publicado no Outra Saúde, Amarante afirmava que esses manicômios “Não cuidam e não ressocializam e podem se tornar verdadeiros campos de concentração. São instituições que escondem os verdadeiros objetivos de violência social e de Estado, onde, em nome da higiene pública e da ordem social, se exercem práticas destinadas a excluir segmentos sociais para os quais a sociedade e o Estado não têm políticas públicas”. É bom ressaltar: o Conselho Federal de Medicina foi contra o seu encerramento.

Além da extinção definitiva de manicômios, uma reivindicação que esteve muito presente na 5ª Conferência foi a da expansão do atendimento à população – inclusive para chegar a territórios onde hoje não há caps. Sônia Barros avalia que deve ser feita uma revisão das tipologias dos serviços de saúde mental, mas é preciso planejar o atendimento de forma mais ampla. 

“É necessário pensar na construção de projetos conjuntos de Atenção Primária e Saúde Mental”, afirma a diretora. “É preciso fazer um investimento localizado na Atenção Primária, de forma que os municípios menores possam contar com a atenção em saúde mental.” Para isso, explica, seu departamento busca avançar no processo de qualificação das equipes de forma continuada. “No orçamento de 2024, inclusive, já temos previsão de recursos para essa capacitação”, informa.

Como superar a hipermedicalização

Segundo Sônia, a formação dos profissionais da Atenção Primária também é crucial para enfrentar outro problema grave que a população enfrenta: a medicalização da saúde mental. “É um processo que vem já há algum tempo e que também acontece nos serviços. A pandemia desvelou esse processo, que foi acirrado, dado o sofrimento das pessoas, seja pelo isolamento, pela perda material, pela perda afetiva, enfim.” Os remédios psiquiátricos passaram a ser empregados desmedidamente para solucionar a dor e o sofrimento, lamenta Sônia.

“Isso se reproduz nos próprios Caps, e por isso entendemos que precisamos entrar com esses processos de educação permanente de forma que as pessoas possam refletir e aprender melhor sobre essas questões”, completa a diretora. Para ela, é relevante pensar em como se dá a formação do médico, do psiquiatra, “de forma que eles possam ter outras alternativas, conhecer os serviços territoriais que pouco conhecem, conhecer essas possibilidades de trabalho no território”, defende.

Paulo Amarante critica, inclusive, a necessidade de que a pessoa tenha um diagnóstico psiquiátrico para frequentar os Caps. Ele acredita que os centros precisavam estar em mais contato com o seu entorno. “É muito comum você encontrar usuários em Caps tomando vários medicamentos e com muito pouca atividade de arte, cultura, integração etc.” E vai além: “Não é só deslocar o tratamento do manicômio para o local aberto. Precisa criar políticas públicas para trabalho, educação, arte, cultura, para a sociedade como um todo”. 

Amarante gosta da ideia do “Caps vazio”, conta. “Porque o Caps é um local onde a pessoa chega, conversa, agiliza, cria um programa. ‘Vamos fazer algo na cidade, vamos fazer um grupo de balé, vamos ensaiar uma peça de teatro’”, exemplifica. Ele é contra o que chama de “Caps encapsulados”, voltados muito para si mesmos. Dessa maneira, acredita o psiquiatra, o paciente é reintegrado na sociedade e deixa de ser visto a partir de seu distúrbio mental. Deixa de ser “paciente” ou “usuário”.

Saúde mental e igualdade

Há outra inovação nessa gestão do Ministério da Saúde, que envolve a Saúde Mental. Trata-se de uma estratégia de defesa à equidade, “para que essa pauta possa ser transversalizada em todos os departamentos”. Quem explica a medida é Rachel Gouveia Passos, a assessora responsável por promover a igualdade dentro do Departamento de Saúde Mental. Ela é professora da UFRJ e autora do livro Na mira do fuzil – a saúde mental das mulheres negras em questão [leia um capítulo publicado no Outra Saúde]

Ela começa a entrevista que deu ao site destacando que a diretora Sônia Barros “coloca em especial a chave do racismo como um pilar do direcionamento do departamento”. “O que é uma tarefa difícil”, reflete, “porque a própria estrutura da política não foi pensada dessa fora por muito tempo. Então meu papel exige um nível de criatividade, mas também de presença no território”.

Uma das medidas que já começaram a ser feitas, conta Rachel, foi a de fortalecer a política de saúde mental para os povos indígenas, em parceria com a Secretaria de Saúde Indígena (Sesai). Há, inclusive, uma portaria que estabelece um financiamento específico para Caps que planejam ações direcionadas para essa população. O trabalho é sensível, pois exige trabalho em conjunto com os indígenas e qualificação dos gestores. 

Rachel conta que a sua equipe vem pensando em como construir ações antirracistas nos equipamentos – e pensar a própria relação do racismo com saúde mental. Uma das preocupações, explica, é com os jovens em territórios de vulnerabilidade social. “Diante dessas situações, a juventude vem produzindo um sofrimento que tem a ver com o projeto de vida, expectativas. Há um aumento nas automutilações, no suicídio”. 

“Estamos formulando para o próximo ano”, prossegue, “uma estratégia para ser estabelecida na Raps, de combate ao racismo institucional. Porque não há espaço de denúncia, de acolhimento, de encaminhamento. Isso precisa aparecer nesses equipamentos”. A educação e formação dos profissionais de cuidado também são muito importantes nesse sentido, ressalta Rachel – tanto na educação permanente quanto nos currículos universitários.

Outro tema sensível que Rachel aborda é o sofrimento de mulheres que vivem em contexto de violência, e que perdem seus filhos para a violência policial, em especial em favelas. Seu livro aborda a questão, e frisa o uso sem acompanhamento médico de remédios psiquiátricos para atravessar os momentos de sofrimento extremo. 

Ela explica que faltam recursos subjetivos para viver esse luto. “Porque a pobreza, a miséria, a falta de educação vão impedindo com que as pessoas construam elaborações sobre os fenômenos que vivem, dentro daquelas possibilidades marcadas por faltas”, reflete. Rachel ressalta a importância da vida em comunidade, muitas vezes negada, para construir esses recursos subjetivos.

Rachel busca, dentro do Departamento de Saúde Mental, soluções para mitigar esse sofrimento. Segundo ela, “temos construído, em parceria com o Ministério da Igualdade Racial, o Ministério da Justiça e o Ministério dos Direitos Humanos, uma proposta de programa de atendimento psicossocial para mães e outros familiares vítimas de violência letal”.

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