Hora de fechar os hospitais judiciários

Neles, Estado internadas pessoas com transtorno mental que cometeram delitos. Ultrapassados e anticientíficos, são remanescentes da lógica manicomial. Mesmo com resistência de entidades médicas, resolução os extinguirá em um ano

Detalhe do Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico da Bahia, 10/12/2012. Crédito: Iano Andrade/CB/D.A
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Título original: A resolução do CNJ sobre os hospitais judiciários e a posição imputável de algumas entidades médicas

O Conselho Federal de Medicina, em coautoria com outras entidades médicas, emitiu uma nota sobre a Resolução 487 do Conselho Nacional de Justiça, que versa sobre o fechamento dos 32 Hospitais de Custódia e Tratamento Psiquiátrico (HCTP) que ainda existem no Brasil. De acordo com a referida resolução, tais hospitais, antes denominados de manicômios judiciários, deverão ser fechados até maio de 2024. A resolução decorre da interpretação da aplicabilidade da Lei 10.216, sancionada pelo presidente Fernando Henrique Cardoso, em abril de 2001, conhecida como a lei da reforma psiquiátrica brasileira. Esta lei vem sendo reconhecida como um dispositivo importante para a transformação do modelo assistencial psiquiátrico no Brasil.

Entre o final dos anos 1970 e início dos anos 1980, o Brasil tinha cerca (impossível precisar o número exato) de 80 mil pessoas internadas em instituições psiquiátricas, judiciárias ou não, algumas das quais com milhares de internos em condições absolutamente deploráveis. O Hospital Colônia de Juquery, sobre a qual foi exibido recentemente o documentário “Juquery: lugar fora do mudo”, chegou a ter mais de 20 mil pessoas internadas em situação comparável aos campos de extermínio da II Guerra!

O modelo asilar da psiquiatria foi dominante em todo o mundo, mas não por sua racionalidade ou pressupostos científicos, na medida em que os resultados clínicos sempre foram pífios. O que se destacava era a violência institucional, com mortes violentas por espancamento, como no “caso Damião Ximenes”, no qual o Brasil foi condenado na Corte Interamericana de Direitos Humanos, dentre outros, ou por mortes devidas à desnutrição, infecções elementares (respiratórias, intestinais) ou ao frio, como ocorria regularmente no famoso hospital em Barbacena. Este último ficou tristemente eternizado nas obras “Em nome da Razão”, curta de Helvécio Ratton, e “Nos porões da loucura”, livro de Hiram Firmino. A pouca cientificidade da psiquiatria foi responsável por milhões de mortes em todo o mundo. Não estamos nos referindo exclusivamente aos eletrochoques, choques insulínicos, malarioterapias, lobotomias…

Ao longo do processo que tem sido denominado de reforma psiquiátrica, no Brasil, amparado pela lei 10.216 e outras medidas normativas e um forte apoio social, foram fechados mais de 60 mil lugares de internação (chamá-los de leitos hospitalares seria um exagero), e abertos centros de atenção psicossocial (CAPS), centros de convivência e cultura, residências assistidas, projetos de inclusão cultural, social, laborativa e econômica  e  outros dispositivos de assistência e cuidado em liberdade, com resultados reconhecidos por instituições e organismos internacionais. Sem dúvida, que em quantidade, e talvez em qualidade, muito inferior ao necessário, o que não impediu os resultados positivos alcançados. Certamente, os resultados seriam muito superiores se o SUS tivesse realmente investido nas redes substitutiva e alternativa de atenção psicossocial.

É importante registrar o significado e a efetividade desta rede que, embora precária e insuficiente, conseguiu resgatar milhares de vidas enterradas vivas nos hospícios brasileiros. Lima Barreto já em 1920 se referia a tais locais como “cemitério dos vivos”.

A resolução 487, contudo, não surgiu de repente, nem do nada. Em primeiro lugar porque foi aprovado o SUS na Constituição de 1988. E depois porque trata da aplicação da Lei 10.216, que ficou em debate por cerca de 12 anos, até ser finalmente aprovada em 2001. Em 2008 a Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão promoveu um seminário centrado na compreensão de que a Lei 10.216 teria alterado a Lei de Execuções Penais e o Código Penal. Daí em diante, foram promovidos vários seminários, grupos de trabalho, consultas a órgãos jurídicos, entidades médicas e universitárias.

Na área da assistência médico-jurídica, algumas experiências localizadas passaram a ser estudadas e avaliadas e passaram a servir de base empírica para a construção de novas possibilidades de cuidado diferenciados na internação integral sem tempo determinado dos HCTP. Exemplos emblemáticos destas experiências inovadoras, inclusive premiadas, foram o Programa de Atenção Integral ao Paciente Judiciário (PI-PJ), de Minas Gerais, iniciado em 1999, e o Programa de Atenção ao Louco Infrator (PAILI), de Goiás, iniciado em 2006, dentre outras.

Em 2011, o Ministério Público Federal convocou todos os MP estaduais e as entidades profissionais do setor da saúde para apresentar o documento intitulado “Parecer sobre medidas de segurança e hospitais de custódia e tratamento psiquiátrico sob a perspectiva da Lei 10.216/2001”.

Os hospitais de tratamento e custódia são instituições ultrapassadas. Não cuidam e não ressocializam e podem se tornar verdadeiros campos de concentração. São instituições que escondem os verdadeiros objetivos de violência social e de Estado, onde, em nome da higiene pública e da ordem social, se exercem práticas destinadas a excluir segmentos sociais para os quais a sociedade e o Estado não têm políticas públicas. Em tais instituições são permanentemente massacradas pessoas pobres, negras, vulneradas social e economicamente, que não têm nem direito a um julgamento ou a um tempo definido de pena. O documentário “Casa dos Mortos” de Debora Diniz, por exemplo, dá forte imagem do que são estes infernos na terra e do que é a falta de direitos das pessoas nestas instituições.

A extinção destas instituições já ocorre em outros países, a exemplo da Itália, e é evidente que este processo de desinstitucionalização não é ingênuo ou sem princípios técnicos e científicos. Resistência similar ocorreu por ocasião da aprovação da própria Lei 10.216, quando estas mesmas entidades fizeram alarme e tentaram criar pânico social argumentando que seria impossível tratar de pessoas com transtorno mental em liberdade. No entanto, aí está a rede de atenção psicossocial, com todo o subinvestimento da qual é vítima, com seus bons resultados para provar o contrário. E é evidente que nem o CNJ, nem as demais entidades responsáveis pela justiça e a saúde no país irão operar este processo de forma descuidada e irresponsável.

É curioso ler na nota da qual são signatárias as entidades médicas acima referidas que as pessoas que a própria psiquiatria determinou internar em manicômios judiciários por terem cometidos delitos, supostamente devido a transtorno mental, e por isso seriam inimputáveis, a partir de agora são denominados de “criminosos, matadores em série, assassinos, pedófilos, latrocidas, dentre outros”. Até então eram pacientes psiquiátricos incapazes de perceberem o próprio crime. Como a condição mental e jurídica já dizia: inimputáveis! Mas isto não significa que cada caso não seja um caso, inclusive dos ditos simuladores, os “falsos loucos”, que se utilizam de um diagnóstico em benefício próprio, para fugirem de uma sentença!

Por fim, a nota se queixa pelo fato de os médicos não serem consultados. Não me consta, em nenhuma ocasião, por exemplo nas notas emitidas pelo CFM ou ABP, especialmente em relação ao posicionamento das entidades em relação à pandemia da covid-19, que os médicos tenham sido consulados para que fossem conhecidas suas posições.

A democracia e o direito de justiça devem ser para todos.

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