Por que a psiquiatria diz tão pouco às mulheres

Pesquisa recém-publicada revela: quase 60% delas convivem com sofrimentos psíquicos. Mas as causas essenciais estão fincadas em problemas como pobreza e desamparo – e não em supostos “distúrbios” de origem pessoal

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No início de 2022, quando se retomava certa normalidade pós-pandêmica, a Organização Mundial da Saúde (OMS) apresentou vasto relatório em que defendia nova prioridade para políticas de saúde mental. Mesmo antes da covid, o órgão considerava que cerca de 15% da população mundial conviviam diariamente com algum tipo de transtorno psíquico. Há poucas semanas, uma pesquisa brasileira mostrou que as mulheres vivem uma dimensão deste sofrimento mais grave, porém de causas menos “sanitárias”. Trata-se do relatório Esgotadas, realizada pela ONG Think Olga, a partir de entrevistas com 1078 pessoas do sexo feminino. O texto final revela que 60% delas revelam conviver com alguma forma de sofrimento mental, desde depressão à ansiedade, chegando a pensamentos suicidas e uso abusivo de substâncias psicoativas. Como deixam claras as especialistas ouvidas pelo trabalho, não se trata de questões que se resolvem apenas com políticas específicas de saúde.

“Muitas vezes essas mulheres chegam no consultório para dizer: ‘eu estou muito triste, eu tenho vontade de tirar a própria vida. Eu não estou bem, eu só tenho vontade de chorar, eu tenho medo de tudo, eu não consigo relaxar’. E aí vem o diagnóstico de ansiedade e depressão, totalmente descolado do contexto das experiências que essa mulher vive”, provoca Juliana Callegaro Borsa, psicóloga e professora da PUC-Rio. Ela prossegue: “Isso é um debate na área de saúde mental, porque a gente não consegue atomizar. Não dá para descolar a pessoa do seu contexto – da realidade atual, e também da cultura e do cenário social e histórico no qual a gente está inserido”.

Seu pensamento é corroborado por especialistas como Paulo Amarante, psiquiatra e presidente de honra da Associação Brasileira de Saúde Mental. “Muitas das questões que estamos tratando como saúde mental dizem respeito à emancipação do indivíduo, direitos humanos e cidadania. Problemas de falta de reconhecimento social, falta de direitos sociais, políticos, humanos, estão sendo relacionados a problemas de saúde mental”, afirmou Amarante ao Outra Saúde, em maio.

Parece cada vez mais difícil desatrelar o tema da vida material das pessoas, ou separar o sofrimento humano dos contextos políticos e econômicos gerados pelos dogmas do mercado.

Nesse sentido, o relatório produzido pela Think Olga relaciona o sofrimento feminino a diversas considerações de ordem econômica, social e cultural. De acordo com a pesquisa, 38% das mulheres entrevistadas são a única ou a principal provedora econômica de seus lares. Quando se soma as que dividem igualmente tal responsabilidade, chega-se a 58%. Apenas 11% não precisam contribuir financeiramente em casa. Mesmo nos estratos sociais enriquecidos as mulheres estão sobrecarregadas.

“A questão socioeconômica é uma variável importantíssima quando a gente fala de saúde mental. Quanto maior a vulnerabilidade socioeconômica, maior a emocional e a relacionada à saúde mental. Isso se manteve durante a pandemia. As mulheres chegaram sobrecarregadas em 2020 e continuam assim em 2023. A sobrecarga é uma das principais razões, senão a maior, do adoecimento feminino e da busca por ajuda e por cuidado em termos de saúde mental”, sustenta Juliana Borsa. Além disso, há todo um trabalho doméstico familiar não remunerado e raramente contabilizado em estudos socioeconômicos. E quando há um problema de saúde grave na família os cuidados recaem quase todos sobre os ombros femininos. É o que mostram matérias do Outra Saúde com mães de jovens autistas ou com doenças graves, como atrofia muscular espinhal.

A pesquisa do Think Olga ainda mostra que tal sofrimento tem aumentado exatamente entre as mulheres consideradas “em idade produtiva”, de 19 a 59 anos. Ansiedade, irritabilidade e estresse são parte do cotidiano de aproximadamente 50% delas, praticamente a mesma taxa de mulheres já diagnosticadas com alguma síndrome do tipo.

Desigualdades de raça

 Como não poderia deixar de ser, a pesquisa também captou que tais sofrimentos têm pesado mais sobre mulheres negras. Vivemos, destaca o relatório, um fenômeno de “feminização da pobreza”. “Mais de 70% das pessoas que vivem em situação de pobreza no mundo são mulheres, segundo dados da ONU. No Brasil, esse fenômeno não pode ser dissociado dos recortes de raça e região onde vivem as mulheres mais pobres”, alerta o relatório.


E num país onde o desemprego e a fome voltaram, a piora nas condições de vida das mulheres negras é dramática. Mais sofrimento financeiro, exclusão, pouco acesso a tratamentos de saúde e violência doméstica são algumas das facetas.


“Essas mulheres negras tiveram que dar conta da irritação de maridos desempregados que passaram a ficar em casa e dos processos de adoecimento dos seus filhos, muitas vezes em casas pequenas, com pouco espaço de vazão para poder respirar. Tiveram de segurar as agressividades e violências decorrentes de toda essa redução de espaço, tornar-se professoras. Tiveram de lutar para fazer todo mundo acreditar naquilo que elas também não acreditavam: ‘nós vamos ficar vivos’. Isso demanda muito gasto energético, muito gasto psíquico […] Só que a conta começou a chegar e estamos encontrando mulheres extremamente cansadas num período em que os seus filhos precisam recomeçar a acreditar na vida, seus maridos estão retornando ao mercado de trabalho. E elas estão esgotadas.”, afirmou Debora Elianne, psicóloga do projeto social Vivencer, também ouvida no relatório.


Como ainda destacou a pesquisa, mulheres negras são mães solo em maior quantidade, o que significa uma menor rede de proteção social e espaço para buscar progresso individual. “Quando a gente pensa nas mulheres negras e nos processos de adoecimento, verifica que a sobrecarga de trabalho e a quantidade de responsabilidade não é partilhada, não tem troca. Em geral, toda a força que aquela mulher tem vai se compartilhando com o outro, mas ela não tem uma troca de qualidade. Este movimento de se doar sem receber e sem ter tempo de parada, acaba levando as mulheres a um processo de adoecimento que só vai ser identificado quando chegar numa situação bem grave. Porque enquanto é possível continuar trabalhando, continuar fazendo e continuar se movimentando, elas não param. Eu costumo dizer que são mulheres que se recusam a morrer. Essa recusa tem a ver com o fato de tais mulheres, sobretudo negras, serem arrimo de família, serem as pessoas que estão dando conta do cuidado todo também.”, completa Elianne.


É certa, como destaca o relatório, a necessidade de fortalecer a rede de atenção psicossocial do SUS para responder aos desafios aqui expostos. No entanto, não há possibilidade de sucesso sem uma agenda de bem estar social encampada pela sociedade. “As soluções não devem estar centradas no conceito de patologia, mas pensando que o sofrimento psíquico é também sofrimento psicossocial. Não dá para desarticular as duas coisas e, portanto, a política para melhorar a saúde mental não é só de saúde mental”, sintetiza Regina Facchini, antropóloga e psicanalista também ouvida pelo Think Olga.

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