Saúde Mental, resistência e alternativa

Às vésperas da Conferência Nacional sobre o tema, debate do Cebes evidencia: país pode livrar-se das “comunidades terapêuticas” – inclusive porque avançam formas de integração social das pessoas que convivem com transtornos psiquiátricos

Bordado produzido por pacientes do CAPS de Porto Alegre, no projeto Geração POA. Foto: divulgação
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Ao que o final do ano se aproxima, começa a contagem regressiva para mais um evento importante para a participação social na construção do Sistema Único de Saúde. Trata-se da 5ª Conferência Nacional de Saúde Mental (CNSM), que ocorre entre os dias 11 e 14 de dezembro, em Brasília. Sua construção é feita por etapas, que foram iniciadas pelas instâncias municipais, macrorregionais e estaduais, além da realização de conferências livres. Os encontros culminam no evento nacional, que tem como tema: “A Política de Saúde Mental como Direito: Pela defesa do cuidado em liberdade, rumo a avanços e garantia dos serviços da atenção psicossocial no SUS”.

Para abrir a discussão sobre os elementos mais essenciais à construção de uma política de saúde mental para o SUS, o Cebes Debate, programa semanal do Centro Brasileiro de Estudos de Saúde, convidou duas figuras importantes. Itamar Lages, professor da Faculdade de Enfermagem da Universidade de Pernambuco e liderança do movimento antimanicomial, apresentou os principais conflitos que o Brasil enfrenta hoje na saúde mental. E Katia Barfknecht, terapeuta ocupacional, apresentou o projeto Geração POA, que promove inclusão social pelo trabalho na capital gaúcha. Você pode assistir ao debate completo abaixo.

Em sua fala, Itamar reforçou alguns dos ideais defendidos por aqueles que estão na luta antimanicomial, como o cuidado de pacientes com transtornos mentais em liberdade, a visão da saúde como qualidade de vida e valorização das condições de existência das comunidades e a antimedicalização. O professor defendeu que a busca pela liberdade na saúde mental se contrapõe à visão capitalista do termo. A liberdade, para a luta antimanicomial, se refere à capacidade de autodeterminação e autonomia, à construção do SUS “como política que se propõe a desenvolver o ser humano em toda a sua plenitude, enfrentando a opressão que o mundo impõe”.

Itamar destacou que a saúde mental vem construindo propostas a partir das conferências das etapas antecessoras, e mais: “A resistência em favor da 5ª CNSM vem se formando, entre outras, pela mobilização que resultou nas conferências livres de saúde mental da população negra, das periferias, da população LGBTQIAPN+, dentre outras 31 que foram propostas”. Assim como ocorreu com a construção da 17ª Conferência Nacional de Saúde, as conferências livres têm sido marca importante da participação popular no SUS.

A 5ª CNSM, que será realizada após um hiato de 13 anos, correu sérios riscos de não acontecer, lembrou Itamar. Sua convocação foi feita pelo Conselho Nacional de Saúde em 2020, mas até este ano não havia sido destinada verba para que fosse realizada. Sinal de que seus ideais ameaçam os interesses dos poderosos? Na fala de Itamar, fica clara a oposição da luta antimanicomial a dois grandes atores: as comunidades terapêuticas, modelo de atenção a pacientes e usuários de drogas altamente questionado por utilizar métodos similares aos dos manicômios, a nível local. E as grandes farmacêuticas multinacionais, que veem o aumento de transtornos mentais na sociedade como oportunidade para multiplicar seus lucros com a venda de medicamentos, individualizando uma questão coletiva, a nível global.

A contribuição de Katia Barfknecht incrementou o debate com uma experiência prática e de sucesso, a Geração POA. Trata-se de um serviço ligado ao SUS, integrante da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) de Porto Alegre, que reintegra os pacientes da saúde mental à sociedade por meio do trabalho e da economia solidária. Eles são encaminhados pelos Centros de Atendimento Psicossocial (CAPS) e, na Geração POA, têm a oportunidade de participar de oficinas para aprender um ofício ou retomar uma atividade de trabalho. Cada pessoa passa por um plano de trabalho singular e traça seu percurso com o acompanhamento de profissionais, mas se desenvolve em conjunto com outros pacientes. E o fruto de seu trabalho é vendido em feiras de economia solidária da capital gaúcha.

Adriane da Silva é psicóloga e Dirceu Luiz Rohr Júnior oficineiro, do GerAção POA. Foto: Luiza Prado/Jornal do Comércio

Katia explica, em sua fala, de que maneira os usuários do CAPS têm a oportunidade de retomar sua relação com a cidade e com a sociedade – ao mesmo tempo em que produzem algo útil e atraente, que os porto-alegrenses se interessem em adquirir. Mais recentemente, a Geração POA firmou uma parceria com a Cinemateca Capitólio, e abriu o Café Mentaleiro, espaço de vendas em um dos principais cinemas de rua da cidade. É um grande exemplo de cuidado com pacientes com transtorno mental em liberdade, que, por meio do trabalho digno, permite o reconhecimento social e o pertencimento. E, de quebra, fortalece a rede de uma cidade que é pólo nacional da economia solidária.

Faltam apenas algumas semanas para a 5ª CNSM, e debates como esse ajudam a inspirar a população para pensar de que forma as políticas públicas para a saúde mental devem ser construídas. A programação preliminar do evento já foi lançada. Uma disputa, nos dias do evento, será inescapável: apesar de governo Lula de fato mostrar avanços no campo, também parece acender uma vela para deus e outra para o diabo. Nos últimos meses, o financiamento de Comunidades Terapêuticas também aumentou, como denuncia carta aberta de parte da delegação da 5ª Conferência. O debate será intenso – e necessário, para aqueles que desejam avançar na construção de um SUS digno para todos os brasileiros.

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