Os estigmas que Bolsonaro alimenta

Ao completar 400 dias no governo, ele discursa contra pessoas com HIV (o que agrada industriais que querem demiti-las) e assina projeto que retira proteção às terras indígenas. Leia também: Saúde gastará R$ 140 mi em suspeitas de coronavírus

Foto: Isac Nóbrega / Flickr Paláco do Planalto
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Por Maíra Mathias e Raquel Torres

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EXTREMA DIREITA EXPLÍCITA

“Uma pessoa com HIV, além do problema sério para ela, é uma despesa para todos no Brasil.” A declaração de Jair Bolsonaro foi dada ontem, quando seu governo completou 400 dias. A frase carregada de preconceito e ódio saída da boca do ‘estadista’ atualizou, novamente, as já baixas expectativas políticas em relação ao modo como o governo lida com todos os brasileiros que não fazem parte do núcleo duro do eleitorado bolsonarista. A afirmação foi feita à guisa de defesa da política de abstinência sexual na adolescência proposta pela ministra Damares Alves.

Em nota, a Associação Brasileira Interdisciplinar de Aids (Abia) repudiou a declaração de Bolsonaro, caracterizada como uma “tentativa de justificar o injustificável”. “Antes de tudo, a ABIA enfatiza que políticas de abstinência não reduzem as taxas de infecção pelo HIV”, afirmou a ONG, que vê articulação entre a frase e uma movimentação da Confederação Nacional da Indústria (CNI) feito no fim de janeiro no STF. A entidade patronal pediu que o Supremo revogue a regra trabalhista que proíbe a demissão de pessoas que vivem com HIV. “Para a ABIA, as duas ações estão em sintonia já que ambas reforçam o estigma, o preconceito e a discriminação contra as pessoas que vivem com HIV/Aids neste país.” 

Ainda de acordo com a nota da Abia: “A principal lição em 40 anos de enfrentamento à Aids nos ensinou, sem qualquer dúvida, que o peso de estigma e discriminação na resposta social é a maior barreira ao controle da epidemia. Ao dizer que as pessoas vivendo com HIV causam prejuízo à sociedade, o presidente autoriza tacitamente o estigma, a discriminação e a violação dos seus direitos humanos.”

Mas o discurso de ódio de Bolsonaro também voltou suas baterias para os “ambientalistas”. “Se um dia eu puder, confino-os na Amazônia. Eles gostam tanto de meio ambiente”, disse ontem na solenidade que marcou os 400 dias de governo. Para marcar a data, o presidente assinou um projeto de lei para que terras indígenas deixem de ser protegidas, abrindo a porteira para sua exploração comercial em atividades como mineração, exploração de petróleo e gás natural e geração de energia elétrica. E ainda: turismo, agricultura, pecuária e extrativismo florestal. De acordo com o PL, a autorização do uso da terra será dada pelo Legislativo e os indígenas que moram nessas comunidades serão ouvidos, mas não terão direito a veto. 

“Espero que este sonho, pelas mãos do Bento [Albuquerque, ministro de Minas e Energia] e pelos votos dos parlamentares se concretize. Porque o índio é um ser humano exatamente igual a nós. Tem coração, tem sentimento, tem alma, tem desejo, tem necessidades e é tão brasileiro quanto nós”, afirmou o presidente .

PELO FIM DA CAMPANHA

Em tempo: o Conselho Nacional de Saúde aprovou uma recomendação para que o governo cancele a campanha de abstinência sexual na adolescência lançada nesta segunda. Isso porque não há evidências científicas que comprovem a eficácia do programa como método contraceptivo.

12 PAÍSES JÁ TÊM TRANSMISSÃO INTERNA

Ontem, o Senado aprovou, sem alterações, o PL que prevê regras para a quarentena e lista medidas de enfrentamento do novo coronavírus. O texto enviado pelo governo na terça (4) foi aprovado em tempo recorde e deve ser sancionado por Bolsonaro ainda hoje. Com a lei, governo poderá determinar a “restrição excepcional e temporária de entrada e saída do País por rodovias, portos ou aeroportos”, evitando, por exemplo, que as pessoas trazidas de volta ao Brasil se recusem a ficar isoladas. 

Enquanto isso, o Ministério da Saúde anunciou que deverá gastar R$ 140 milhões com compras emergenciais de máscaras, luvas, óculos, aventais, entre outros equipamentos de proteção para profissionais de saúde e outros agentes públicos que podem ter contato com casos suspeitos. “Vamos trabalhar com um cenário intermediário [de número de casos]. Esse é o valor que temos. O Ministério não tem tradição de adquirir esses itens [são estados e municípios que compram], então pode ser que tenhamos uma redução do preço por causa da escala”, disse ontem João Gabbardo dos Reis, secretário-executivo da Pasta.

E o número de casos suspeitos de coronavírus caiu de 13 para 11, informou o Ministério da Saúde. No balanço atual, quatro estados seguem com casos em investigação: Rio Grande do Sul (5), São Paulo (4), Santa Catarina (1) e Rio de Janeiro (1). 

Ontem, a China ultrapassou a marca das 500 mortes causadas pelo novo vírus, chegando a 563 óbitos. Já são mais de 28 mil casos confirmados por lá. 

Em uma semana, o número de nações com ao menos um caso de transmissão interna de coronavírus triplicou. Segundo a OMS, já são 12 os países com essa classificação, dada quando um paciente é infectado mesmo sem ter viajado à China, onde estão concentrados 99% dos casos. São eles: Alemanha, Coreia do Sul, Tailândia, Cingapura, Vietnã, Malásia, Estados Unidos, Canadá, França, Espanha e Reino Unido. Na semana passada, o fato de quatro países terem notificado casos assim foi usado como argumento para que a Organização decretasse emergência em saúde pública de interesse internacional. No mundo, são 24 países com 191 casos confirmados. 

Não há tratamento eficaz contra o coronavírus, mas a Comissão Nacional de Saúde da China afirmou que um tratamento para o HIV (lopinavir/ritonavir) pode ser usado em pacientes com a doença – sem especificar como. Segundo a Reuters, foi suficiente para desencadear uma corrida. Já tem todo tipo de gente tentando entrar em contato com pessoas com HIV para conseguir o medicamento Kaletra, também conhecido como Aluvia, versão sem patente do tratamento e aprovada para venda no país. Um grupo de pessoas HIV-positivas está doando as pílulas, mas também tem gente lucrando.

“Gatsby Fang, um agente de compras chinês, disse à Reuters que encomendou versões genéricas do Kaletra da Índia em 23 de janeiro, logo após ter ouvido pela primeira vez que o medicamento poderia ser útil contra o novo coronavírus. Fang, cujo trabalho principal é no setor financeiro, disse que vendeu cada garrafa por 600 yuanes (86 dólares) cada, trazendo de 200 a 300 yuanes de lucro em cada um. Seu estoque foi esgotado em 25 de janeiro. Alguns clientes encomendaram 600 comprimidos de uma só vez”.

ROMPENDO FRONTEIRAS

O projeto Pan-Câncer é uma empreitada de fôlego que reuniu 1,3 mil cientistas de 37 países e requereu o uso de 13 supercomputadores e centros de análise por cerca de dez milhões de horas; tudo isso para mergulhar como nunca no sequenciamento genético da doença. Os resultados foram publicados ontem na revista Nature.

Foram analisadas 2.658 pessoas com 38 tipos diferentes de tumores. O número parece tímido, mas cada pessoa é composta por um conjunto de 30 trilhões de células. “Cada vez que uma deles se divide para gerar uma filha, precisa copiar o genoma completo, composto por três bilhões de letras perfeitamente arranjadas e combinadas, o A com o T e o C com o G, e esse é o seu livro de instruções para a vida. Nesse processo, erros de cópia totalmente casuais são cometidos —as mutações. Um ser humano pode acumular milhões dessas erratas, a grande maioria inofensiva, mas uma pequena fração delas pode desencadear o câncer”, explica Nuño Dominguez no El País.

Para identificar essas ‘erratas’, o estudo colocou lado a lado o genoma completo do doente, o de seu câncer e o genoma humano de referência – e os leu 30 vezes, letra por letra, para conhecer todas as mutações que diferenciam a célula cancerosa da saudável. “No total, mais de um trilhão de letras de DNA foram lidas, um número maior que o número de galáxias no universo e o de estrelas em toda a Via Láctea”, compara o repórter.

A principal conclusão do trabalho é que o genoma do câncer é finito e pode ser conhecido. Pela primeira vez na história, foi possível identificar todas as alterações genéticas que produzem um tumor específico e até classificá-las cronologicamente para conhecer sua biografia. Os responsáveis pelo projeto esclarecem que esses resultados não melhorarão o tratamento do câncer em curto prazo. Mas eles acreditam que o conhecimento que o megaestudo fornece é essencial para a medicina de precisão, na qual pacientes com câncer podem receber um tratamento ou outro, dependendo de seu perfil genético.

REVOLUÇÃO PSICODÉLICA

Na capa da edição deste mês, a revista Radis trata do uso de psicodélicos na medicina e Luiz Felipe Stevanim entrevista o neurocientista Sidarta Ribeiro, um dos fundadores e hoje vice-diretor do Instituto do Cérebro da UFRN. De acordo com ele, drogas como maconha, LSD e ayahuasca aumentam as sinapses do cérebro e podem revolucionar o tratamento de doenças como depressão, Alzheimer e Parkinson. É nessa direção que apontam as pesquisas do Instituto do cérebro – elas já mostraram, por exemplo, que que a dimetiltriptamina presente no ayahuasca atua como antidepressivo, e que o LSD pode ajudar a conter o declínio mental da doença de Alzheimer.

“Não se trata do consumo indiscriminado, mas em doses muito baixas e muito esporadicamente. (…) O problema é como essas substâncias serão monetizadas pela indústria farmacêutica, pois interessa para eles lucrar com algo que só será usado de vez em quando?”, questiona. É claro que o cenário político no Brasil também não contribui nada para o que Sidarta chama de “renascimento psicodélico” – não só por conta do conservadorismo mas também pelos cortes na educação.

Na mesma entrevista, Sidarta traz questões bem interessantes a respeito da importância do sono e do sonho, baseado em seus 30 anos de pesquisa sobre isso: “Em nosso modelo de educação, as pessoas aprendem, fazem uma prova para descarregar todo o conhecimento e depois esquecem tudo o que aprenderam. Isso ocorre pela maneira como é feito o aprendizado, sem valorizar o sono como um meio de fixar as memórias. Existem estudos no Instituto do Cérebro que apontam para a importância do sono no aprendizado escolar. Porém, no sentido contrário, somos levados a abandonar tudo aquilo que é natural, como nossa capacidade de dormir e de sonhar. E buscamos a solução em medicamentos para dormir e depois para ficar acordado”.

PERFIL DOS GESTORES

O Nexo olhou os dados do IBGE para traçar um perfil do gestor de saúde nos municípios brasileiros. Algumas conclusões: 55% são mulheres e 62% são brancos. A maior parte (36%) está na faixa dos 30 a 40 anos e tem ensino superior completo (39%). Por estranho que pareça, a maioria é formada em Pedagogia (23%), seguido por Administração e Assistência Social. Entre as cidades brasileiras, 5.095 têm secretárias exclusivas para a saúde. Em 317 essas atribuições são sob responsabilidade de pastas que tocam outras políticas públicas. E 157 adotam outros modelos.

MAIS UM ANO

O Brasil já teve cinco mortes e mais de 30 mil casos notificados de dengue nas primeiras semanas do ano, segundo boletim divulgado pelo Ministério da Saúde. Os dados são do período entre 28 de dezembro e 18 de janeiro. Há 24 casos graves confirmados, e outros 158 com sinais de alarme. A região mais afetada é a Centro-Oeste, mas o estado de São Paulo concentra 30,4% das notificações do país. (Ontem, a prefeitura de Sorocaba, no interior do estado, decretou epidemia de dengue na cidade.) Os números levam a dengue de volta “ao canal endêmico”, segundo a Pasta.

“Estamos utilizando há cerca de 120 anos a mesma técnica de controle do Aedes aegypti, que foi exitosa no início do século passado com Oswaldo Cruz, e depois com Clementino Fraga Filho, mas que, hoje, não oferece resposta para as dificuldades e complexidade do espaço urbano que vivenciamos”, diz o médico infectologista Rivaldo Vivêncio no site do Centro de Estudos Estratégicos da Fiocruz. Ele explica que elementos como o fornecimento irregular de água, a precariedade na coleta e no descarte de lixo e até a violência urbana e desemprego contribuem para aumentar a proliferação do Aedes. Mas mesmo que todo ano os pesquisadores indiquem as medidas importantes, pouco muda: “Infelizmente, a ausência de políticas públicas se perpetua há séculos”.

ROUPA NOVA

A farmacêutica Merck anunciou ontem que vai criar uma nova empresa para vender seus medicamentos mais antigos. O negócio vai ser focado em remédios voltados para mulheres, mas também vão ser vendidos os produtos da Merck que não têm mais patente. Estima-se que as vendas alcancem US$ 6,5 bilhões por ano.

A ideia é que a parte “principal” da Merck, que não vai migrar para a nova empresa, se concentre nas vendas de tratamentos contra câncer, além de vacinas e medicamentos hospitalares, que têm vendas e rendimentos crescentes. A companhia pretende, assim, atrair mais investidores. A matéria do Stat lembra que a Pfizer e a GSK já fizeram movimentos semelhantes: “A ideia de reduzir o peso morto e manter novos medicamentos altamente lucrativos (e caros) voltados para o câncer ou outras doenças é popular entre os investidores há mais de uma década”.

ESTÁVEL

A ANS publicou os dados da saúde suplementar com os números de dezembro do ano passado. O ano fechou com 47 mil beneficiários de planos de saúde: houve estabilidade em relação ao mesmo período de 2018.

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