História de duas manifestações

Estudantes e professores levaram muito mais gente às ruas que o bolsonarismo. Risco de autogolpe caiu. Mas, surpresa: a pauta das contrarreformas não refluiu. Por que?

Mar de estudantes no centro do Rio, em 15/5. Ao fundo, a Candelária
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Certas experiências só são vividas de fato quando se reflete sobre elas e seu sentido. O Brasil vive, desde 15 de maio, o primeiro grande desafio ao projeto de Jair Bolsonaro. Houve duas jornadas de mobilização nacional mas ruas, convocadas por atores que ocupam posições opostas na disputa pelos rimos do pais. Uma terceira está marcada para daqui a três dias. Em seu conjunto, elas projetam saudáveis incertezas sobre um cenário que parecia desastroso. Além disso, ajudam a enxergar melhor a disputa política complexa que marca o Brasil desde a campanha eleitoral de 2018, vista costumeiramente a partir de simplificações redutoras. Neste cenário, começa a ficar clara a existência de três blocos de forças, nitidamente distintas: ultracapitalismo, protofascismo e a heterogênea oposição a ambos. Esta última é a principal protagonista dos solavancos – e de uma possível virada. Está viva, ao contrário do que apostavam muitos analistas. Porém, enfrenta dois limites. Não tem acesso a instrumentos de poder relevantes. E não tem projeto claro, o que torna frágeis todos os seus avanços. Precisa resolver esta lacuna, sob pena de desperdiçar a potência de seus grandes atos, e de não se aproveitar das brechas que começam a surgir — e tendem a se alargar rapidamente — entre os dois projetos no governo.

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Saibamos reconhecer nossos êxitos. Além de terem dado início à mudança de cenário, as manifestações dos estudantes e educadores em 15/5 foram, até agora, as mais robustas deste novo ciclo. O mapa publicado por O Globo reconhece um primeiro dado: elas espalharam-se por 222 cidades, contra 156 do ato bolsonarista do último domingo. Mas esta é apenas parte do quadro. O protesto contra o corte de verbas reuniu dezenas de milhares de pessoas em um número expressivo de capitais – Belém, Salvador, Recife, Brasília, Belo Horizonte, Florianópolis, Porto Alegre –, onde os bolsominions juntaram, essencialmente, grupos nutridos para fotos. E os estudantes despertaram também cidades médias, a exemplo de Juazeiro do Norte-CE, Picos-PI, Mossoró-RN, Campinas, São Carlos e Sorocaba-SP e dezenas de outras. Leve-se em conta outro fator: embora dialogassem com diversos setores descontentes com as políticas do governo, as manifestações eram específicas: seu objetivo era protestar contra os cortes na Educação; seu público essencial era o dos atingidos pelo “contingenciamento” de verbas.

Ontem, um bolsonarismo acuado pretendeu dar o troco reunindo toda a sua tropa. Diante da queda brusca de popularidade do presidente e de suas dificuldades crescentes no Congresso, a ideia era mostrar potência máxima nas ruas. E não apenas contra a esquerda, que liderara os protestos do dia 15. O alvo imediato das manifestações era o sistema político – e nisso, ultracapitalistas e protofascistas se distanciaram como nunca. Atacava-se o establishment, como dizem Bolsonaro e Steve Bannon; aqueles que tornam o país “ingovernável” (segundo o presidente, ao lançar o mote para as manifestações), em especial, a mídia (com destaque para a Globo), o STF (“presta atenção / a sua toga vai virar pano de chão”, gritou-se ontem); o deputado Rodrigo Maia, e, por extensão, todo o Congresso.

O resultado foi frágil – exceto no Rio e em São Paulo, onde a praia de Copacabana e a avenida Paulista reuniram dezenas de milhares.

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Porém, como aponta Gilberto Maringoni, uma coisa são os fatos; outra, a narrativa que os atores políticos constroem a partir deles. Nas páginas dos jornais e nos noticiários da TV, há hoje um notável esforço de captura. Os ultracapitalistas querem apresentar as manifestações não como foram – mas como um suposto “apoio popular” às contrarreformas. É o que sugere Pablo Ortellado, articulista da Folha, com base em “pesquisa” feita para “demonstrar” um resultado fabricado pelo autor. Para ele, “surpreende”, mas “as pessoas foram às ruas pelas reformas, especialmente (…) as mudanças na Previdência”. Esqueça as manifestações de ódio, as faixas e cartazes em favor de “intervenção militar”, a celebração do decreto que estimula a população a usar fuzis, os ataques a Marielle, o apoio ao governador que participa de raids no “caveirão voador”. Os atos de ontem – desculpe se você não percebeu – foram ações de nobres britânicos em defesa da “mão invisível do mercado” e da Teoria das Vantagens Comparativas…

Ao tentar capturar o ato dos protofascistas, a direita “civilizada” flerta com eles. Dá-lhes legitimidade. Trata-os como tropa de choque submissa e servil. Repete a operação que levou à eleição de Bolsonaro. É sintomático: os atos de domingo foram tratados como o fato político crucial. Ocuparam, por dias, as manchetes. Mesmo quando contrárias, as notícias ajudavam a divulgá-los. Em contrapartida, a mídia só enxergou o s protestos de 15/5 quando emergiram nas ruas – e nada fala sobre os preparativos para 30/5.

Há, agora, inclusive uma sofisticação, nota Artur Araújo, outro observador arguto da conjuntura brasileira. As TVs, sites e jornais visam o deputado Rodrigo Maia. Mandam-lhe um recado quase explícito: é preciso passar por cima dos ritos e aprovar logo a contrarreforma da Previdência. As “ruas” estão alertas e é fácil jogar alguém às feras…

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Esta história de hipocrisias e capturas poderia sugerir que não há alternativas, para a esquerda. Tudo estaria controlado. Ou os ultracapitalistas, ou os protofascistas, ou ambos juntos, uns capturando (e legitimando) os outros.

Tal impressão é falsa. A própria possibilidade de enxergar claramente as diferenças entre os dois grandes blocos no governo significa que algo se moveu; que as primeiras brechas apareceram; que é, portanto, possível alargá-las. E entra aqui um déficit: não será possível fazê-lo sem apresentar um ponto de ruptura; uma alternativa; um esboço, que seja, de uma visão sobre como tirar o país do atoleiro.

Sem isso, a esquerda permanecerá, eternamente, entre dois fogos. Poderá apoiar-se na direita “civilizada” para fustigar os bolsominions. Eventualmente, talvez junte-se a gente como o general Mourão, quando se tratar de evitar as insanidades sobre atacar a Venezuela (compartilhadas pelos lunáticos do bolsonarismo e pela Rede Globo). Mas permanecerá, a própria esquerda, pendendo em direção a um ou a outro lado; sem apresentar saída de profundidade; sem dialogar autonomamente com a população.

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Elementos de um novo projeto incluiriam pontos simples e concretos, capazes de estabelecer diálogo com as angústias quotidianas da sociedade e de colocar tanto ultracapitalistas quanto protofascistas na defensiva – e obrigá-los a responder.

Em especial, negar a ideia perversa segundo a qual só sairemos da crise com sacrifícios, contenção, restrições, resignação, cabeça baixa, espinha curvada e rabo entre as pernas.

Apontar o caminho da solidariedade – os serviços públicos, a redistribuição de riquezas, o estímulo à atividade criadora e produtiva, o Comum, a democracia, a Constituição de 1988. Desdobrar estes valores em políticas específicas. A elevação da Bolsa Família e do salário mínimo. A anulação das tarifas bancárias. O resgate do SUS. Um vasto programa de despoluição de rios e saneamento. Um plano de expansão de transportes públicos, que garanta a cada brasileiro o direito de ir e vir do trabalho para casa em 40 minutos, no máximo, no prazo de dez anos. A urbanização democrática das periferias. A descriminalização das drogas. O direito ao aborto e à maternidade plenamente assistida. O plano de Desmatamento Zero para a Amazônia e o Cerrado, com desenvolvimento de atividades econômicas que preservem sua biodiversidade. A restauração da malha ferroviária abandonada. Etc. Etc. Etc.

O elenco é vasto, o esforço é desafiador e instigante. Indagado numa esquina, o cidadão comum precisa saber que, além do projeto dos protofascistas e dos ultracapitalistas para o país, há outro: popular, igualitário, distributivo, humanizador, feminista, pós-desenvolvimentista. Está na hora de ir além do negativismo e do reativismo.

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2 comentários para "História de duas manifestações"

  1. Ricardo Cavalcanti-Schiel disse:

    Aí está! A “esquerda” (ou “as esquerdas”, como preferem dizer os espanhóis) perdeu, em termos gerais, sua visão de mundo.

    A precedência do coletivo, do comum, do público — e, portanto, do Bem que lhe venha substantivado (Bem Coletivo, Bem Comum, Bem Público), como implicitamente insinua o Antonio Martins no penúltimo parágrafo — cedeu todo seu espaço de reconhecimento simbólico (e, portanto, sua capacidade de regulação das relações, de legitimação discursiva e de estabelecimento de prioridades) para a ordem liberal dos indivíduos reificados e dos particularismos reificados.

    O maior responsável pela consumação desse giro discursivo, mais até que o tucanato elitista, foi o PT no governo. De que adianta desempoar velhas consignas se sua base de legitimação foi sistematicamente minada? Hoje o que vale é identidade, é oportunidade (individual). O SUS e o ensino público não são vistos como bens comuns, mas como bens apropriáveis, individualmente convenientes ou não. O normal liberal demonstra sua hegemonia simbólica na medida em que qualquer debate sobre termos como esses são pautados pelo discurso sobre a sua “utilidade”. Essa “utilidade”, em geral, serve a indivíduos e a identidades. E não mais!

    O último bastião categorial que ainda conseguiu, nas últimas semanas, transcender essa lógica foi a “ciência” e sua defesa como bem estratégico. Quase milagre! Vai saber por quê… Até a velha “soberania nacional” está indo para as cucuias, com o auxílio deliberado dos próprios militares. Os milicos estão vendendo até o último capital discursivo que lhes restava para reivindicar como seu. É overdose de liberalismo mesmo! E toda overdose é suicida, por mais que o drogado não o reconheça.

    Mas se alguém prestar atenção ao enunciados correntes no espaço discursivo da esquerda midiática (hoje estritamente restrito a um pequeno território da blogosfera), vai logo perceber que, quando nos aproximamos dos canais chapa-branca do PT, tipo RBA, Brasil247, Blog do Nassif e outros bichos de rósea plumagem, mesmo a defesa da “ciência” se faz em termos utilitaristas…

    Não é de impressionar que as Humanidades sejam as primeiras a irem para o brejo… a não ser que sirvam para apoiar identidades, mas jamais a reflexão conjuntural, o reconhecimento dos amplos contextos, o pensamento crítico sobre estar no mundo, enfim, o universo das relações, e não o dos fetiches encarnados em mercadorias (de patentes industriais a rótulos de pertencimento).

    Vai ser muito difícil (apesar de esse ser o fundamento lógico e simbólico de tudo que seja efetivamente de esquerda) “apontar o caminho da solidariedade”, como sugere o Antonio. Essa “solidariedade” hoje não é mais que uma abstração bem pouco subsistente. Ter consciência e medida disso implica indagar-se como e por que caminhos se chegou até aqui. Sim! Há mais autocrítica a ser feita na esquerda que aquela que trivialmente se demanda do PT.

    Por isso também, nunca é demais abrir o olho não apenas para o contexto, mas também para as autoilusões em torno do próprio voluntarismo. Elas podem não significar mais do que empurrar a miopia com a barriga, como o petismo adora fazer e parece ter consagrado como esquema mental das esquerdas.

  2. Eduardo disse:

    Texto interessantíssimo. Gostaria de ver um texto que complementasse esse, com respostas aos questionamentos que costumam se fazer a cada uma das propostas do penúltimo parágrafo, sejam elas de visão de mundo, morais, econômicas, sociais, …

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