Por que a Geração Z se rebela?
Protestos da juventude se espalham do Peru ao Quênia, Nepal, Marrocos e Paraguai. Em comum: a bandeira de mangá japonês que representa a luta contra a opressão. No centro, recusa a uma vida precária. Palavras de ordem recordam as primaveras de 2010 – e requerem atenção
Publicado 03/10/2025 às 19:13

No início do século 21, a Argentina protagonizou uma revolta popular, principalmente na capital e cidades universitárias que acabou por derrubar o governo de Fernando de la Rúa, em dezembro de 2001. Visto à distância dos dias atuais, havia uma passagem na forma das manifestações populares comuns do século 20 para o novo século. Com efeito, os sindicatos ainda apareciam no centro das mobilizações. Lideraram sete greves gerais contra a política de de la Rúa de flexibilização e desregulamentação do trabalho. Mas, também, havia alguns sinais de novidade.
Em maio de 2002, a Argentina presenciou jornadas político-culturais inicialmente realizadas pela Assembleia Popular de Palermo Velho, tradicional bairro portenho. Essas jornadas ficaram conhecidas como “La Trama”. Em dois dias ocorreram mais de duzentas atividades culturais, de exposições plásticas a teatro, música e oficinas, além de palestras, debates e mesas redondas. Os vizinhos se autoconvocavam e criaram uma rede de assembleias de rua – mais de 100 por semana – envolvendo movimentos populares contra a pauta ultraliberal do governo. Desde o final do século 20, a Argentina passou a ser palco de uma aliança inédita da classe média com desocupados, os que perderam emprego em função das reformas trabalhistas, articulando movimento de mulheres aos piqueteros (inicialmente, trabalhadores demitidos da empresa petroleira argentina YPF).
A novidade era a ocupação de espaços públicos para ações de protestos e debates em formato de assembleia de rua autoconvocados num movimento que afirmavam ser “a democratização da democracia”.
Alí estava o prenúncio do que tomou parte do planeta na década de 2010: protestos em massa ocupando grandes centros urbanos, em manifestações ou mesmo auto-organizações territoriais (como o movimento Occupy), autoconvocados pelas redes sociais, sem lideranças aparentes, atacando as instituições representativas.
Da Espanha ao Brasil, da Primavera Árabe aos EUA e Turquia, os protestos passaram a ser identificados como “enxameamentos” dado o formato e lógica de enxame de abelhas, que surgem do nada e desaparecem sem aviso. Nesta toada, as mobilizações que abalaram partidos e governos por semanas, sumiram sem deixar rastros. Em pouco tempo, mudanças e alternâncias de poder oriundas do impacto dos protestos se desfizeram e os antigos donos do poder retornaram aos seus lugares. Os protestos não se plasmavam em estruturas de poder ou de organização popular.
Tudo era estranho e analistas apressados e os próprios donos do poder sugeriram que tudo não passava de um sonho de uma noite de primavera. Mas, algo dizia que se media algo muito novo e inusitado por uma medida antiga. Tanta gente, em tantos países, saíram às ruas com o mesmo modelo de auto-organização sem uma motivação potente? Esses “enxames” não nos diziam algo mais que o protesto em si? Não havia algo que não se encaixava entre a dinâmica institucional política erigida há mais de um século e o que as ruas diziam? Os protestos, majoritariamente convocados e organizados por jovens, não sugeriam um conflito geracional?
Pois bem, essa dinâmica de rua retornou. Um artigo publicado na Europa chegou a afirmar que “uma fúria juvenil tem percorrido diversos lugares do mundo”.
Nas últimas semanas, protestos liderados pela Geração Z (aquela nascida entre 1997 a 2012) já se espalham pelo Peru, Quênia, Nepal, Indonésia, Marrocos, Filipinas, Bangladesh, Sri Lanka e Paraguai.
Descontentamento com a corrupção e a desigualdade ou pela demonstração de riqueza de jovens como eles que são filhos do poder. Como na década de 2010, os protestos estão sendo reprimidos com violência.
No Peru, os jovens protestam contra a presidente Dina Boluarte. Iniciados em 20 de setembro, após reformas que exigem que todos os peruanos com mais de 18 anos se filiem a um fundo de pensão, as manifestações se voltaram contra o Congresso, envolvido em escândalos de corrupção, mas também contra a instabilidade econômica e aumento da criminalidade. Os protestos relembram os manifestantes mortos pelas forças de segurança peruanas quando a presidente assumiu o poder, no fim de 2022, após o ex-presidente Pedro Castillo ter sido destituído do cargo e preso preventivamente.
A taxa de aprovação da Presidente do Peru é de apenas 2,5%, segundo pesquisa de julho do Instituto de Estudos Peruanos. A do Congresso é de minguados 3%.
No dia 28 de setembro, foi a vez do Paraguai. Os protestos tomaram o centro de Assunção em resposta a um chamado divulgado nas redes sociais e a principal concentração ocorreu em frente ao Congresso. O lema do protesto foi “Somos 99,9%. Não queremos corrupção”, recordando as palavras de ordem dos protestos da década de 2010. As redes sociais fervilharam após os protestos em Assunção, denunciando uma repressão violenta. Entre 500 e 1.000 pessoas participaram dos protestos e houve um destacamento de mais de 3.000 policiais, que perseguiram as pessoas uma a uma quando elas já estavam voltando para casa, algo extremamente similar ao que ocorreu durante a Copa do Mundo de futebol no Brasil, em 2014.
No Marrocos, mais de 120 pessoas foram presas no fim de semana. Ao contrário de protestos anteriores liderados por sindicatos ou partidos políticos, essas manifestações foram amplamente disseminadas por plataformas de mídia social como TikTok e Discord por um movimento sem liderança. Dois grupos, Gen Z 212 e Morocco Youth Voices, se destacaram nas convocatórias. Os jovens dizem que não há esperança e exigem reformas na saúde e na educação, mas também “melhores salários, melhores empregos, preços mais baixos e uma vida melhor”. A Geração Z é a maior parcela da população do Marrocos, diga-se de passagem.
No Nepal, manifestações lideradas por jovens canalizaram a indignação generalizada contra a falta de oportunidades, a corrupção e o nepotismo. Neste país, foi o casamento da filha de um político que irritou os ativistas jovens. A cerimônia de casamento provocou enormes engarrafamentos na cidade de Bhaktapur em função do bloqueio de uma via principal por horas para o acesso de convidados VIP, incluindo o primeiro-ministro nepalês. Nos meses seguintes, as redes sociais estamparam fotos de jovens de famílias ricas exibindo suas férias exóticas, mansões, supercarros e bolsas de grife. Uma foto do filho de um ministro provincial, viralizou. Ela mostrava uma enorme pilha de caixas de presentes da Louis Vuitton, Gucci, Cartier e Christian Louboutin, decoradas com luzes de fada e enfeites de Natal, e com um chapéu de Papai Noel no topo.
Logo, os jovens não abastados do Nepal passaram a denominar os filhos dos políticos de “crianças nepo”.
Em 8 de setembro, milhares de jovens manifestantes ascenderam às ruas da capital, Catmandu. À medida que os protestos anticorrupção ganhavam força, houve confrontos entre manifestantes e a polícia, deixando alguns manifestantes mortos. No dia seguinte, multidões invadiram o parlamento e incendiaram escritórios do governo. O primeiro-ministro KP Sharma Oli renunciou. Setenta pessoas foram mortas.
Na Indonésia, milhares de jovens organizaram manifestações, assim como ocorreu nas Filipinas, com dezenas de milhares protestando na capital Manila no domingo.
No último mês, protestos eclodiram em todo o Quênia, inicialmente focados na rejeição do Projeto de Lei de Finanças do país para 2024, se ampliando para o protesto contra a brutalidade policial, a corrupção e as promessas e estilos de vida de políticos. A escala dos protestos em 25 de junho – quando os parlamentares votaram a favor do amplamente impopular Projeto de Lei de Finanças – motivou milhares de jovens que saíram às ruas por todo o país, inclusive em locais que raramente recebem manifestações, como Lamu e Lodwar. Os manifestantes invadiram o Parlamento e, pela primeira vez desde a tentativa de golpe da Força Aérea em 1982, o governo mobilizou militares nas ruas de Nairóbi.
Todos têm uma coisa em comum: são movidos pela Geração Z. Muitos citam a inspiração vindo da Indonésia e de Bangladesh (mobilizações ocorridas no ano passado) ou mesmo Sri Lanka (mobilizações ocorridas em 2022 que derrubou o presidente).
Há outras convergências.
Além da convocatória pelas redes sociais e a escolha da plataforma Discord como base de comunicação dos jovens, todos protestos atuais adotam um símbolo: uma caveira com um chapéu de palha, do popular mangá japonês “One Piece”, sobre piratas caçadores de tesouros.
No anime de 1997, a bandeira é carregada por um bando de piratas de chapéu de palha que enfrentam governantes corruptos e repressivos. A imagem acabou se tornando um emblema de rebeldia para os manifestantes da geração Z. Uma atualização da máscara de Guy Fawkes, usada pelo personagem do V de Vingança.
Alguns analistas sugerem relação com o movimento dos Punks da Esperança (Hopepunks) e um tipo de resposta ao Culto dos Fim dos Tempos (Doomerismo), típico da geração que cresceu em um mundo crises climáticas, instabilidade econômica, pandemias e ansiedade com o futuro. A caveira pirata representa um mundo que já “acabou”. Esses analistas destacam que para os Punks da Esperança, a ideia da esperança, bondade, compaixão e a comunidade não são sinais de fraqueza ou ingenuidade, mas atos de rebeldia e resistência em um mundo difícil. Muita pureza nessa história. Para eles, a esperança é ação. Cuidar dos Outros seria um ato revolucionário.
Na Indonésia, a caveira com chapéu de palha é vista em bandeiras pendurada do lado de fora de casas e carros. No Nepal, o personagem aparece em portões dourados do palácio que abriga o parlamento. Agora, aparece nas ruas do Peru e do Paraguai.
Tudo, obviamente, facilitado pela comunicação nas redes sociais.
O detonador inicial pode ser a ostentação de filhos de autoridades públicas ou a saúde pública precária. Também os protestos são motivados pelos gastos relacionados à Copa do Mundo em detrimento da infraestrutura pública.
Tudo é disseminado e atacado nas redes sociais e criam uma onda emocional irresistível. Já vimos isso antes.
Dias antes do início dos protestos no Nepal, o governo anunciou a proibição da maioria das plataformas de mídia social. O governo alegou que queria combater notícias falsas e discurso de ódio. Mas muitos jovens nepaleses viram isso como uma tentativa de silenciá-los. Nos dias seguintes, as postagens no TikTok, que não havia sido banido, se multiplicaram. Um vídeo, ao som da música “The Winner Takes It All”, era um clipe de 25 segundos daquele casamento abastado. Terminava com “Eu vou me juntar a você. Vou lutar contra a corrupção e contra o elitismo político. E você, vai?”. Foram 135 mil visualizações em um dia. Plataformas de bate-papo sobre jogos passaram a disseminar vídeos e ataques. Grupos de jovens do Nepal e do exterior criaram clipes e os compartilharam usando o Discord.
O ingrediente novo é a sofisticação tecnológico e o uso generalizado de celulares, mídias sociais, aplicativos de mensagens e IA, o que facilita a mobilização das pessoas.
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