Para reverter a impotência política

Pesquisadora italiana disseca reflexos de um divórcio indesejável. Partidos afastaram-se dos movimentos que lutam por transformações sociais. E estes não percebem que, sem mediações, não converterão em políticas reais os seus desejos

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Por Nadia Urbinati entrevistada por Mariano Schuster para Nueva Sociedad | Tradução: Maurício Ayer

Como e por que “os poucos” se divorciaram de suas responsabilidades? De que forma aqueles que detêm o poder econômico e político se desresponsabilizaram pelo corpo social? E de que forma “os muitos” encaram essa situação? Essas questões são abordadas em detalhes pela cientista política italiana Nadia Urbinati em seu livro Pocos contra muchos [Poucos contra muitos], publicado recentemente em espanhol pela Katz Editores. Em seu ensaio, Urbinati mostra por que os novos surtos sociais parecem fadados ao fracasso e como uma democracia minimalista – nascida das ruínas da social-democracia que dava sustentação ao Estado de Bem-Estar Social – produziu uma liquefação das estruturas partidárias clássicas. Urbinati também mostra o casamento entre neoliberalismo e populismo (que ela define como algo mais do que retórica e ideologia). A sua obra constitui um contributo para repensar a importância da organização partidária e da mediação institucional na tradição da esquerda democrática e reformista.

A publicação em espanhol do livro de Urbinati conecta-se com o desenvolvimento de numerosos movimentos de protesto que, atualmente na América Latina, não conseguem traduzir suas demandas na arena institucional. Professora de teoria política na Universidade de Columbia, especialista em pensamento político moderno e tradições democráticas e antidemocráticas, Urbinati também foi co-presidente do Seminário de Pensamento Político e Social da Universidade de Columbia e fundadora da Oficina de Política, Religião e Direitos Humanos do Departamento de Ciência Política da mesma universidade. Foi colaboradora de jornais L’Unità, Il Fatto Quotidiano e La Repubblica. Atualmente colabora com a revista Left e com o jornal Domani. Em 2008, o presidente italiano Giorgio Napolitano a nomeou Comandante da Ordem do Mérito da República Italiana “por sua contribuição ao estudo da democracia”. Ela também é autora de vários livros, incluindo Yo: el pueblo (Grano de Sal, México, 2021), La democracia representativa (Prometeo, Buenos Aires, 2017), La democracia desfigurada (Prometeo, Buenos Aires, 2014), La mutazione antiegualitaria (Laterza, Roma, 2013) e Liberi e uguali (Laterza, Roma, 2011).

Nesta entrevista, Urbinati analisa as novas dimensões do confronto entre “os poucos” e “os muitos”, investiga os novos movimentos de protesto e explica por que eles são dirigidos não apenas contra aqueles que concentram o poder econômico, mas também contra aqueles que detêm poder político.

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Mariano Schuster – Por muitos anos, você tem trabalhado em várias questões relacionadas à teoria política, focando tanto nos problemas que fazem a democracia representativa quanto na articulação de um conjunto de ideias sobre a categoria do “populismo”. Seu livro Pocos contra muchos relaciona-se diretamente com essas questões, mas traz uma novidade ao dar conta de uma série de transformações, tanto no âmbito político quanto no social e econômico, que têm favorecido novos tipos de liderança, interpelação e protesto social. Você sustenta que “os poucos” se rebelaram contra “os muitos”, divorciando-se de suas responsabilidades. E, ao mesmo tempo, expressa que “os muitos” se manifestam contra “os poucos”, mas sem conseguir traduzir a convulsão em conflito. Como as elites se separaram de suas responsabilidades? Por que deveríamos agora pensar não apenas na rebelião dos “muitos” contra os “poucos”, mas dos “poucos” contra os “muitos”? Que ferramentas os “poucos” têm para se rebelar contra “os muitos”?

Nadia Urbinati – Comecei a pensar neste livro há alguns anos, a partir do desenvolvimento de alguns processos de mobilização social que me chamaram a atenção. Refiro-me, particularmente, à revolta popular no Chile em 2019, ao surgimento dos “coletes amarelos” na França e as mobilizações como as que ocorreram na Itália no início do século XXI com o chamado movimento rotundas [girotondi]. A princípio, foi interessante para mim analisar o impacto gerado por aquelas grandes convulsões sociais que tendiam a ser desencadeadas por situações que consideraríamos politicamente menores – o aumento do preço do metrô no Chile, o aumento do preço dos combustíveis na França –, mas que expressavam claramente algo mais do que o ponto específico que produziu a explosão inicial. Investigando essas barulhentas manifestações sociais, cheguei à conclusão de que havia definitivamente um ponto em comum entre elas. Todas foram formas de ação coletiva que assumiram a forma de motins raivosos, rebeliões e revoltas, mas nenhuma delas conseguiu se traduzir em conflito político. Nos termos da ciência política, o conflito tem algumas características bem definidas, que o diferenciam, justamente, da convulsão ou da rebelião. O conflito está associado a expressões e formas de protesto que são desenvolvidas com lideranças partidárias, sindicais ou sociais, e tem um objetivo específico que pode ser alcançado por meio da negociação. Quando há conflito, as organizações que realizam os protestos possuem representações capazes de operar não só fora, mas também dentro das instituições – por isso muitos de seus movimentos também são calculados. Disse muito especificamente: há conflito quando posso demonstrar minha força ao meu adversário, tenho representantes para negociar e organizações para representar. A razão pela qual essas rebeliões não assumem, em termos gerais, a forma de um conflito político é porque “os muitos” perderam aquelas organizações clássicas com as quais contavam para se rebelar contra “os poucos”. Essas organizações – especialmente as partidárias – mudaram tão fortemente sua forma e se distanciaram tanto de sua função mediadora entre a sociedade e as instituições que a sociedade só pode se manifestar de forma explosiva, mas sem canais que a conectem com a política institucional real. Isso logicamente faz com que, sem líderes partidários ou relações mediadoras, os protestos, por mais ruidosos que sejam, acabem se dissipando.

Esse processo me levou a investigar essa transformação dos partidos políticos. Tarefa que, claro, considero importante, porque não há regime político democrático apoiado em processos eleitorais que não tenha uma disposição natural para se organizar em formas partidárias. Se olharmos com atenção para esta esfera, percebemos que houve um claro declínio dos partidos organizados, ou seja, dos partidos como forças ideológicas, como forças que mobilizam, que informam, que formam uma classe dirigente a partir de baixo, que organizam, que educam, que procuram orientar os cidadãos e que procuram estabelecer-se como mediadores entre eles e as instituições. O que temos, em contrapartida, é uma desresponsabilização dos partidos e dos cargos eleitos de suas funções clássicas e o desenvolvimento de uma atividade que ocorre apenas dentro das instituições, usando a mídia para construir consensos. O que temos é uma democracia minimalista solapada por uma economia neoliberal. A democracia de partido foi substituída pela democracia de audiências. A política separou-se da sociedade, descartou sua função mediadora e decidiu mover-se como uma esfera diferente e diferenciada dos cidadãos.

Em outras palavras: “os muitos” perderam as organizações com as quais poderiam lutar politicamente e alcançar objetivos concretos. E, ainda assim, o século XXI parece ter inaugurado lutas constantes dos “muitos” contra “os poucos” – entendendo “os poucos” sob dois parâmetros: o economicamente poderoso (a oligarquia) e o politicamente poderoso (os partidos e seus representantes que se cindiram da sociedade). A novidade é que agora “os muitos” não têm capacidade – por falta de organizações mediadoras – de traduzir seu descontentamento e sua mobilização em conflito. A sociedade não consegue, como disse Antonio Gramsci, passar do estado de convulsão para o de conflito.

Em seu livro, você define claramente um cenário de mudança. Ele afirma que, enquanto no passado “os muitos” haviam conseguido certa estabilização do conflito com “os poucos” por meio da organização em partidos políticos, agora a contradição parece ter se invertido: são “os poucos” que se rebelaram contra “os muitos”. Como eles fizeram isso e como essa transformação ocorreu?

Quando os partidos foram capazes de organizar a sociedade, eles também foram capazes de colocar “os muitos” em uma posição de poder. Como vocês sabem, desde a velha democracia, “os muitos” precisaram criar instituições coletivas – assembleias, parlamentos, associações, partidos – mas também uma identidade coletiva como atores políticos, como cidadãos. Isso permitiu estabilizar a tensão de classe entre os que têm poder – e não precisam de organização partidária – e os que não têm poder – e precisam de muita organização partidária. Hoje essa situação se inverteu. Enquanto os partidos já não conseguem (ou não querem) organizar-se, os cidadãos encontram-se numa condição de horizontalidade desorganizada, que os revela sem força e sem capacidade de impor limites ao poder de “poucos” . Se os limites que “muitos” podem impor aos “poucos” são removidos – como tem acontecido – estes últimos facilmente usam instituições e Estados para aumentar seu próprio poder. No Ocidente, isso é particularmente visível no declínio do imposto sobre a herança ou sobre a renda. Neste sentido, assim como assistimos a uma desresponsabilização das partes da sua função mediadora e representativa, assistimos também a um processo de desresponsabilização dos mais ricos e poderosos relativamente às suas obrigações para com a sociedade. A democracia minimalista – na qual os partidos se separam do corpo social – e o neoliberalismo – na qual “os poucos” não assumem nenhuma responsabilidade por suas obrigações para com o conjunto dos cidadãos – confluem.

“Os poucos”, em suma, decidiram divorciar-se da sociedade…

Exatamente. Eles se divorciaram de suas responsabilidades e decidiram produzir uma espécie de autossecessão em relação ao corpo social. Claro que isso é muito problemático, porque, como sabemos, a responsabilidade deve ser sempre proporcional ao poder que temos. Não é à toa que acreditamos que, por exemplo, a tributação deve ser proporcional à nossa capacidade econômica. Quanto mais você tem, mais você contribui. Hoje é exatamente o contrário. Quem tem mais é quem contribui menos.

Ao contrário dos antagonismos de classe e da forma que as lutas sociopolíticas assumiram após a Segunda Guerra Mundial, você entende que o conflito entre poucos e muitos, como está hoje, não é produtivo. Não se resolve, os setores de poder se mantêm e os movimentos de protesto expressam críticas, mas sem conseguir realizar reformas substanciais. Quais são as razões para a improdutividade desse conflito?

Acredito que haja pelo menos duas razões fundamentais. Uma é, como eu disse antes, a transformação dos partidos políticos. Essa transformação está ligada, é claro, a profundas mudanças sociológicas e econômicas, como o declínio do trabalho como cimento da sociedade. Basta olhar para trás para verificar que toda a arena política se substanciava a partir de conflitos ligados ao trabalho e ao salário: falávamos de seguro-desemprego, aposentadoria, jornada de trabalho, aumento da tabela salarial. Essas eram as questões fundamentais do conflito político do segundo pós-guerra. A segunda questão está ligada à forma como a economia global foi transformada. O poder das finanças é muito mais importante hoje do que no passado. Esse poder tem reduzido a capacidade de manobra dos Estados – especialmente os pequenos e médios, que se encontram em situação de impotência e perda de margem de manobra em relação a esse poder. Os partidos políticos não podem, internamente, prometer grandes reformas ou transformações, o que leva, em muitos casos, a um descontentamento político por parte dos cidadãos, que percebem e sentem que a política tradicional já não lhes serve, já não ajuda a resolver o conflito. Enquanto isso, do outro lado, os poucos estão bem organizados, mesmo em nível global, e usam os Estados para conter e reprimir os muitos, mas não mais para criar as condições necessárias para uma boa democracia coletiva em que poucos e muitos possam conviver.

Esse processo de conflito e tensão entre os “poucos” e os “muitos” está associado, em sua obra, a uma concepção de democracia. Defende, a rigor, a existência de duas perspectivas democráticas: uma que podemos definir como social, que assume que garantir a igualdade e a liberdade dos cidadãos requer não apenas canais de participação, mas também políticas que garantam as condições sociais da cidadania, e uma concepção minimalista, focada apenas no aspecto processual, no acesso ao direito de voto e na garantia dos direitos civis. Até que ponto a renúncia à social-democracia permitiu que “uns poucos” se desvinculassem do sentido de responsabilidade pela maioria?

O fato de podermos medir duas concepções de democracia claramente diferentes – uma que podemos chamar de social e outra que podemos designar de minimalista – não implica que a concepção social esteja em desacordo com os procedimentos. Ao contrário, aqueles de nós que, seguindo autores como Bobbio e Kelsen, nos colocamos nos termos de uma social-democracia, entendemos que os procedimentos constituem parte da própria substância da democracia, desde que coloquem a situação e a oposição numa posição de cooperação e compromisso com o regime político. No entanto, e seguindo a argumentação destes mesmos autores, considero que a democracia não pode esgotar-se apenas nestes procedimentos. A razão é muito simples de entender: a democracia é formada por cidadãos que possuem uma série de direitos e que lutam para melhorar de vida. E o fazem por meio de instituições, conformando-se como uma sociedade civil politicamente engajada. Neste sentido, e ao contrário dos que apelam ao minimalismo democrático, esta perspetiva considera que a sociedade não constitui um corpo estranho à democracia, mas é a sua própria substância. Os cidadãos envolvem-se no sentido de satisfazer as suas necessidades e aspirações, cabendo à democracia desenvolver os mecanismos que garantam essa satisfação. Os partidos, nesse sentido, têm um papel fundamental, pois interagem com os cidadãos – que deles participam – e, ao mesmo tempo, atuam dentro das instituições. Já a leitura minimalista parte de pressupostos muito diversos, a ponto de considerar que os cidadãos são, fundamentalmente, indivíduos que só se encontram e se associam quando precisam, reduzindo assim a democracia ao momento do voto e da eleição dos representantes. Eles são, de fato, indivíduos e não cidadãos. Na concepção minimalista de democracia, o que define a liberdade política é, quase exclusivamente, a possibilidade de acesso ao sufrágio democrático. Em suma, o setor social não faz parte dessa concepção. E o problema, nesse sentido, não tarda a aparecer, porque a possibilidade de ir votar não garante as condições de uma vida digna. Mas se as condições para uma vida digna não forem garantidas, a confiança na democracia diminui. Dito de forma bem clara: se a democracia só pode me prometer pobreza, miséria e condições humilhantes, por que devo ser democrático? Sou democrático porque minha liberdade política tem valor e tem valor porque através dela posso construir uma vida digna. Ora, se a democracia não pode mais fazer isso e se torna apenas as regras do jogo de uns poucos que têm algo próprio a defender, é evidente que a democracia carece do mesmo valor para uns e para outros. Esse minimalismo, que permite que as instituições sejam usadas como ferramenta por elites que não se importam com as condições sociais da democracia, presta um desserviço ao regime democrático. Por que muitos de nossos concidadãos vão cada vez menos votar e se preocupam cada vez menos com os processos democráticos? Não porque tenham se tornado consumistas ou individualistas – ou pelo menos não apenas por isso –, mas porque percebem que, quando a democracia é concebida em termos minimalistas, a política não é uma ferramenta muito poderosa para defender o projeto social comum.

Você analisa cuidadosamente os documentos elaborados pela Comissão Trilateral – formada por Michael Crozier, Samuel P. Huntington e Jõji Watanuki – em 1975. Segundo esta Comissão, a causa da crise da democracia vigente durante os chamados “trinta anos gloriosos” foi o resultado do modelo do próprio Estado de Bem-Estar Social. A proposta da Comissão era, claro, acabar com esse modelo em que a democracia era compreendida em seu aspecto social e optar por uma democracia mais procedimental ou mínima, que privilegiasse o indivíduo. Certamente, esse modelo triunfou politicamente, especialmente após a revolução conservadora de Margaret Thatcher e Ronald Reagan. No entanto, o conflito não desapareceu, mas assumiu novas formas e viu o surgimento de novos atores. Por que esse modelo, nascido de críticas como as da Comissão Trilateral, fraturou o corpo social? Até que ponto ela está ligada à tradição republicana?

Com efeito, parto do documento da Comissão Trilateral de 1975, na medida em que revela uma série de mudanças na concepção democrática, especialmente no que diz respeito à Europa Ocidental e aos Estados Unidos. Até então, e desde o final da Segunda Guerra Mundial, era claro que o estabelecimento do pacto democrático implicava uma concepção social. Desenvolveu-se o Plano Marshall, produziu-se um acordo monetário para permitir a cooperação entre os diversos países e forjaram-se sólidas democracias nas quais a preocupação com a dignidade da vida dos cidadãos era um dos aspectos fundamentais. No entanto, a Comissão Trilateral considerou que essas democracias estavam em crise porque os governos haviam sobrecarregado o Estado por meio de políticas sociais que tornavam esse mesmo Estado dependente das associações e movimentos da sociedade. Segundo a Comissão Trilateral, os partidos organizados e os cidadãos, que desenvolveram diversas demandas de redistribuição, foram os responsáveis ​​pelo que chamaram de “crise da democracia”. O argumento fundamental era que as políticas sociais e distributivas não apenas sobrecarregaram o Estado, mas geraram uma sociedade que manifestava cada vez mais demandas e reivindicações, o que levava a protestos e greves permanentes. A recomendação da Trilateral era redirecionar a democracia para dar-lhe “governabilidade”. E para redirecioná-la, o que tinha que ser feito era apostar em uma concepção minimalista. 

Logicamente, o objetivo traçado pela Trilateral era liquefazer a democracia dos partidos, converter as eleições, não mais em um mecanismo de representação de demandas, mas apenas para a eleição autorizada de líderes políticos, e fortalecer o indivíduo sobre o cidadão. A concepção que norteou essas propostas foi a de diferenciar Estado e sociedade: a sociedade está fora, é um corpo diferente e estranho ao corpo político. Neste quadro, as responsabilidades da política são reduzidas: têm a ver com a ordem pública, com a moeda, com as relações internacionais. As restantes intervenções são de apoio e infraestruturas, mas já não de políticas sociais, porque se considera que estas sobrecarregam o Estado, o tornam pretensioso e mantêm a tributação em níveis elevados. Este ataque à social-democracia foi acompanhado por toda uma série de processos, entre os quais podemos destacar o fim do Acordo de Bretton Woods tal como o conhecíamos e a passagem dos Estados Unidos para uma posição ofensiva à escala internacional, manifestando-se em tensões mesmo com a própria Europa. E, de fato, o programa da Comissão Trilateral foi o que se desenvolveu e levou a uma passagem da social-democracia à democracia minimalista. 

Isso obviamente levou a um divórcio dos “poucos” em relação aos “muitos”, enquanto com um capitalismo liberado e uma estrutura democrática mínima, estes últimos não sentiam mais nenhum tipo de responsabilidade pelo corpo social. Os ricos e poderosos divorciaram-se desse corpo social, dissociaram-se das suas responsabilidades. E o que esse processo implicou em termos democráticos? Que não há mais um corpo social, mas dois. A democracia perdeu suas bases sociais organizadas, as mediações partidárias que caracterizaram o pós-guerra, e assumiu uma dimensão republicana. Nessa tradição, a republicana, o corpo social é constituído por duas partes e não por uma. Para nós, herdeiros da Revolução Francesa, a democracia é uma e o povo é um, o que inclui todos os cidadãos. Mas a concepção minimalista de democracia, agora ligada ao neoliberalismo em termos econômicos, fratura esse demos e retorna ao republicanismo. No mundo da República Romana, o Senado e o povo eram duas partes, e a liberdade residia na capacidade dessas duas partes de se limitarem mutuamente. Hoje temos um retorno a essa tradição, que se manifesta em um demos fraturado: de um lado, “os muitos” que não têm poder social e econômico e, de outro lado, “os poucos” que o têm.

Deixe-me fazer uma pergunta sobre os movimentos de protesto, que você aborda extensivamente em seu ensaio. Um dos pontos norteadores de sua análise é que o divórcio entre as elites e o povo deu origem a movimentos sociais muito diferentes daqueles que conhecemos no passado. Você cita como exemplos o movimento rotundas – que ocorreu na Itália no início de 2002 –, Occupy Wall Street nos EUA e os “coletes amarelos” na França. Quais você acha que são as principais características desses movimentos, o que está por trás de sua narrativa e por que eles são fundamentalmente diferentes das organizações de classe que conhecemos no século XX?

Uma das características centrais desses movimentos é seu marcado caráter estético. São, de fato, movimentos muito marcantes e provocativos, o que lhes permite atrair a mídia. Na medida em que as mediações políticas institucionais são rompidas, essa presença midiática se torna essencial para sua sobrevivência, o que explica, ao menos em parte, por que suas ações são cada vez mais barulhentas e radicais. Em outras palavras: quanto mais radical, maior a presença na mídia. Mesmo quando podem protestar, por exemplo, contra o neoliberalismo, suas ações estão de acordo com a estrutura neoliberal: o que eles procuram é uma audiência. Em última análise, isso revela não sua força, mas a falta dela: evidência de que eles não têm o poder que organizações clássicas como os partidos políticos tinham. Na verdade, carecem de elementos unificadores claros e reivindicações comuns, como se verificou no caso dos “coletes amarelos”. Quando os manifestantes eram entrevistados individualmente, as respostas eram quase sempre as mesmas: “eu falo por mim”, “eu me represento”, “não represento ninguém e ninguém me representa”. Isso os coloca em um plano muito diferente daquele dos movimentos clássicos de protesto social, que eram canalizados e organizados por meio de instituições mediadoras como partidos ou sindicatos. Esses novos movimentos não pretendem ser – pelo menos não diretamente – representativos de uma ideia ou perspectiva comum. Expressam raiva, indignação, descontentamento e frustração. Mas isso não constitui necessariamente um ponto de vista político compartilhado. É por isso que, quando esses movimentos saem espontaneamente às ruas e buscam resolver uma questão específica, muitas vezes não obtêm a resposta adequada ou esperada, por falta de apoios institucionais para isso. Eles não têm mais partidos ou organizações que os representem nas instituições porque, como dissemos, na democracia minimalista houve uma divisão entre os que estão dentro do corpo político e os que estão fora dele. E é justamente por isso que esses movimentos são altamente explosivos em determinado momento, mas depois se dissipam e, simplesmente, as pessoas param de falar deles. No final, não sabemos se conseguiram alguma coisa ou não: simplesmente desaparecem, desintegram-se. O que esses movimentos expressam é, em última análise, a ruptura entre o povo e a política institucional, e a fissura entre “os poucos” e “os muitos”. São evidências da ruptura das mediações clássicas da política.

Na sua opinião, esses novos movimentos “anti-establishment” constituem o “espírito” do que você chama de “política populista”. Como você sabe, o populismo é um conceito que tende a ser confuso, pois seu uso generalizado o tornou uma arma de ataque de crítica política e um termo pejorativo. Nos meios jornalísticos e políticos, há quem a equipare à demagogia, quem a relacione com autoritarismos de vários tipos, e quem simplesmente a utilize para se referir a qualquer um que invoque a ideia de soberania popular. Em sua obra, porém, a categoria de populismo é assumida a partir de uma análise política, conforme refletido em seus livros Yo, el pueblo [Eu, o povo]1 e La democracia desfigurada [A democracia desfigurada]2. Você afirma, ao mesmo tempo, que o populismo não é uma ideologia, mas também não pode ser reduzido a uma retórica. Então, o que exatamente define o populismo e quem pode se enquadrar nessa categoria política?

Com efeito, o populismo não constitui uma ideologia – aliás, pode assumir-se sob posições de direita e esquerda – e também não pode ser definido meramente como retórica. É claro que os movimentos populistas usam a retórica, mas isso não é exclusivo deles: afinal, quando os períodos eleitorais se aproximam, todos os partidos, inclusive os não populistas, tornam-se, nesse aspecto, um pouco populistas, na medida em que tendem a se apresentar como os melhores, culpam os demais por serem os piores e estabelecem uma lógica dualista e binária baseada no antagonismo entre “eles” e “nós”.

O que define o populismo é sua forma de conceber a representação. O que o populismo faz é eliminar – ou tentar eliminar – uma série de mediações que correspondem à nossa tradição democrático-representativa. Nessa tradição, consideramos que os partidos políticos têm a função de se constituir como mediadores entre o que está fora e o que está dentro do Estado. Nesse sentido, são necessários para sustentar uma esfera de separação – mediada – entre Estado e sociedade. Essa separação nunca é total, justamente porque as próprias partes agem dentro e fora das instituições. Eles são, enfatizo, uma instituição mediadora. Eles interagem com a sociedade civil ao mesmo tempo em que desenvolvem uma representação nas instituições estatais. Em nossa ideia de representação também existem outras instituições transcendentais: sindicatos, universidades, movimentos sociais, a própria imprensa. Por quê? Porque elas nos permitem participar da vida política. Mas, se prestarmos atenção, percebemos que essa participação é sempre mediada, e se é mediada é porque há uma separação de esferas. Se nossa democracia representativa tem essa separação é porque considera que não estabelecemos um processo de identificação absoluta com nossos representantes, mas sim, sendo uma sociedade plural, não somos iguais a eles.

Se a democracia representativa se baseia nessa separação, o populismo se baseia na ideia de representação como identificação. O populismo elimina a mediação e a separação – porque quer unir o que está fora e o que está dentro – e, nesse sentido, sustenta que o povo pode ser uno identificando-se com um líder. Através do líder, a pluralidade e a complexidade são dissipadas, e as pessoas se articulam como uma unidade. Para conseguir essa articulação do povo como unidade, o líder unifica demandas muito diversas por meio de um antagonismo (que às vezes pode ser mais fraco e outras vezes mais forte). Esse antagonismo pode ser dirigido na forma do “povo” contra os ricos, contra os imigrantes, contra os movimentos de diversidade, contra as mulheres ou contra o establishment. Mas o líder populista precisa necessariamente de um ponto de união para constituir esse povo unitário. Requer um antagonismo para unificar o povo. E, ao unificar, homogeneíza. Em suma, anula o pluralismo interno do povo em nome de uma unidade que se baseia nesse antagonismo. É precisamente por isso que o uso da categoria de povo, pelos populistas, carece de pluralismo: há um povo (um só) – que, naturalmente, é bom – e há alguns “inimigos do povo” – que logicamente são ruins.

E por que, segundo sua análise, a emergência do populismo corresponderia à ascensão do neoliberalismo? O que é que os torna pares?

Que a política populista emerge fortemente em tempos neoliberais não é surpreendente. Na verdade, é muito lógico e ambos andam de mãos dadas. Dissemos que o colapso das mediações políticas clássicas provocou uma crise e que, como afirma Bernard Manin no final de seu livro Os princípios do governo representativo,3 já não vivemos em uma sociedade democrática de partidos, mas em uma sociedade democrática de audiências. Nesse sentido, constituímos um público desagregado e carente de organizações políticas que produzam utopias e perspectivas de futuro. E, numa sociedade deste tipo, em que as mediações foram rompidas, a forma mais fácil de unificar um povo desagregado é através de um projeto populista. É aqui que a democracia minimalista, ligada ao neoliberalismo, encontra a política populista.

É claro que o populismo pode assumir diversas formas, inclusive a tecnocrática – como se verificou com o governo de Mario Draghi na Itália, que pretendia representar todo o povo e não os partidos. O que é substancial, o que é característico, o que define o populismo é a vocação de unir esse povo desorganizado em torno da figura de um líder. O populismo não é, portanto, algo externo à democracia, mas sim uma transformação interna dela. É uma forma política que ocorre dentro da democracia representativa e não constitui um regime: não possui instituições ou procedimentos próprios. Usa os da democracia, parasitando-os. E quando a democracia é minimalista, tanto mais fácil. Se há mediações e partidos clássicos, uma cidadania ativa e uma social-democracia, a política populista penetra com muito menos facilidade.

Numa democracia organizada em partidos, em que a sociedade civil também se articula em sindicatos, em associações intermediárias, em que existem, enfim, instituições mediadoras fortes, é mais difícil desenvolver uma política populista do que em uma democracia minimalista. Ao reduzir a representação à participação em momentos eleitorais, a democracia minimalista rompe com a clássica estrutura partidária e, portanto, com a articulação entre sociedade civil e sociedade política. Ainda que os partidos não desapareçam, eles se transformam a tal ponto que deixam de ser máquinas de educação política, conhecimento e mediação, para se tornarem máquinas eleitorais. Sua função passa a ser apenas a seleção de candidatos, sucedendo e apoiando uma elite política. Em suma, renunciam à sua função mediadora, à sua função educativa, à sua função verdadeiramente representativa. Desta forma, a separação entre cidadãos e instituições se alarga a ponto de a representação se fissurar e, como disse antes, se formarem dois corpos sem ligação entre si. O populismo faz pleno uso dessa democracia minimalista e da democracia de audiências típica do neoliberalismo. Porque, se a separação for ampla, pode unificar a ideia do povo contra a elite política. O populismo está, nesse sentido, em total sintonia com a democracia minimalista e o neoliberalismo.

Por que você diz que o populismo desfigura a democracia? Como ele faz isso?

Primeiro, o populismo redefine o povo. Nas constituições democráticas, o povo não constitui uma entidade social, mas sim uma entidade normativa e constitucional que inclui a todos da mesma forma: todos somos cidadãos. O populismo modifica essa ideia e passa da ideia de povo normativo e constitucional – que impõe limites à política – para a de povo social e político: o povo como verdadeira maioria. Nesse sentido, instala a ideia de “povo verdadeiro” contra a de “povo formal”. Isto implica que o líder define o povo, de modo que o povo, sendo, em última análise, uma entidade definida, é ao mesmo tempo uma entidade fechada, com limites e, por isso mesmo, a meu ver, aberta à intolerância. Se o povo está encerrado em certos limites ou fronteiras, ocorre necessariamente uma forma de exclusão. 

O segundo elemento da desfiguração democrática interna produzida pelo populismo está ligado à modificação de um princípio substancial da tradição democrática: o da maioria. Na tradição clássica, entendemos que há uma maioria e uma oposição, que pode posteriormente constituir-se também em maioria. O populismo, por outro lado, vê as coisas de uma maneira muito diferente. Em seu argumento, a ideia de maioria está ligada à de um poder permanente do povo – definido em seus próprios termos – que sempre é majoritário. Assim, rompe a dialética de maiorias e oposições circunstanciais, pautada, logicamente, no pluralismo existente no povo. Em terceiro lugar, modifica a ideia de representação, que não é mais a do mandato político plural (um partido com algumas ideias versus outro com outras ideias) e, portanto, na diferença, para se basear na ideia de semelhança: as pessoas são representadas pelo líder e são semelhantes a ele. Similaridade com o líder, ao invés da diferença de ideias e mediações institucionais.

Em seu país, a Itália, talvez isso seja visível se o compararmos com a ordem que surgiu após a Segunda Guerra Mundial. Era muito comum o Partido Comunista, principalmente a partir da liderança de Palmiro Togliatti, falar do “povo comunista”, enquanto os democratas-cristãos falavam do “povo democrata-cristão” e os socialistas do “povo socialista”. Estaria a diferença no fato de que esses atores partidários, ao assumirem a existência de sua própria cultura política e, nesse sentido, de seu “próprio povo”, estariam também assumindo a existência de um povo mais amplo, mais plural, mais diverso?

Exatamente. Essa é a diferença e, como vocês podem ver, é enorme, desde que esses “povos plurais” se reconheçam como plurais. Em outras palavras, o Partido Comunista sabia que existia a Democracia Cristã e a Democracia Cristã sabia que existia o Partido Comunista e não questionavam sua existência e sua representação popular. Obviamente, tentavam obter mais votos, afastando-os do outro partido, mas assumiam a existência de um pluralismo internamente ao povo, o que implicava, por sua vez, a existência de sensibilidades diferentes no seu interior. Ao povo populista falta, por outro lado, pluralismo interno. “O povo populista é um diante do líder”, como bem disse Ernesto Laclau. E internamente não é formado por partidos diferentes. Nenhum partido diz “eu sou o povo”, enquanto o líder populista o faz. De um povo plural há uma mudança para um povo singular e unitário, o que modifica radicalmente a forma como se pensa e se assume a democracia e se assume e se pensa a própria ideia de mudança e transformação.

O que você descreve é ​​um cenário que podemos definir, minimamente, como perturbador. Não apenas temos uma democracia minimalista e uma estrutura econômica neoliberal, mas também estão rompidas as mediações políticas que permitiriam reconstruir uma esfera possível para a social-democracia. Você pertence, como é sabido, à tradição da esquerda democrática. Que responsabilidade tem a esquerda neste processo, tendo em conta que, historicamente, e sobretudo no segundo pós-guerra, foi a esquerda que construiu, pelo menos em parte, uma sólida democracia política e social?

Acho que uma parte da esquerda teve uma forte responsabilidade em alguns desses processos. Seu principal erro, ou pelo menos um de seus principais erros, foi acreditar que o progresso poderia vir do mercado. Após o fim da Guerra Fria, uma parte da esquerda democrática assumiu que era possível desenvolver políticas de justiça através do mercado, entendendo que havia nele uma força virtuosa capaz de distribuir por mérito e intervir em áreas em que o Estado não poderia fazê-lo. Eram, por exemplo, as ideias de Tony Blair e de outros dirigentes da social-democracia. Segundo a concepção da chamada Terceira Via, o mercado era dotado de algum tipo de inteligência ética. Essa concepção foi tremendamente nociva para a esquerda, pois os cidadãos deixaram de considerá-la como uma força emancipatória. Hoje, muitos cidadãos desconfiam dessa clássica esquerda democrática, por não perceberem nela uma força política capaz de dar respostas aos seus reais problemas. Na Itália não são poucos os que, tendo votado à esquerda, escorregaram para a direita. Tanto Giorgia Meloni quanto a Liga receberam votos de muitos ex-comunistas que acreditam que a esquerda abandonou não apenas seu projeto político, mas também seu próprio povo.

Essa mesma esquerda, aliás, foi uma das que levantou a necessidade de liquefazer as estruturas partidárias clássicas… certo?

Claro. E no meu país tem a ver claramente com o caso do Partido Democrático.

Partido, aliás, herdeiro da tradição do Partido Comunista, depois rebatizado de Partido Democrático de Esquerda, e por fim apenas Partido Democrático. Você o definiu como um “hiperpartido pelo número de eleitores, mas um micropartido pelo conteúdo”…

De fato. E é conveniente voltar a essa história. Quando, no início da década de 1990, o antigo sistema político italiano entrou em crise devido a uma série de escândalos de corrupção, gerou-se uma espécie de vontade de abandonar as formas clássicas. Um dos casos mais sintomáticos foi, justamente, o do Partido Comunista. Este partido, que fora um dos que mais havia contribuído para o fortalecimento da democracia partidária e para o desenvolvimento de uma vida interna sempre relacionada com a sua atuação nas instituições, foi completamente desarticulado. Na sua mutação, que se completou com o desenvolvimento do Partido Democrático, afirmou-se que este deveria passar de um partido fortemente organizado, vivo e militante, para outro mais centrado nos apoiantes e eleitores. Não é por acaso que o Partido Democrático é hoje um partido light ou líquido, que carece de estruturas clássicas de liderança e sustentação em organizações ou diretórios locais.

Esse tipo de posição também levou o Partido Democrático a ser equiparado aos partidos liberais. Algo que, a meu ver, constitui um erro. É claro que, como partido de esquerda, deve defender princípios e valores liberais, especialmente em termos de “liberalismo de direitos”, mas não pode defender uma plataforma liberal em outras áreas. Simplesmente, entre outras coisas, porque isso não é crível. Já não se trata de um liberalismo de esquerda, mas de uma esquerda que aceitou a própria ideia da privatização do Estado e que rompeu a conexão sentimental – como chamava Gramsci – com os setores populares. A reivindicação da esquerda reformista e democrática não era desenvolver um liberalismo “seco”, mas unificar as demandas dos setores médios e das classes populares sob a ideia da igualdade como estrela polar, respeitando e ampliando, é claro, as liberdades e os direitos de cidadania. Mas a isto junta-se outra dimensão, que é aquela que você aponta: é um partido com eleitores, sim, mas com pouco conteúdo. Sua ligação com os bairros populares é escassa, mas seu apelo ao triunfo é permanente (“o que importa é vencer”). O problema é que os partidos não têm apenas por natureza sua vocação para o sucesso, mas uma série de motivações políticas que podem levá-los à vitória. Essas motivações não são claras. É por isso que o Partido Democrático é um hiperpartido em termos de número de eleitores, mas um micropartido em termos de conteúdo. Ele tem votos suficientes, mas não tem vida política.

E temos pela frente uma extrema-direita cada vez mais dura, como demonstra o governo Meloni…

Claro. E nesse sentido o desafio é enorme. Se a esquerda não recuperar sua posição sobre a social-democracia, nem fará sentido que ela exista. E digo isto num país como a Itália, que é hoje um laboratório para o destino da democracia europeia. Meloni e a extrema-direita estão mudando a cara da Europa: querem uma Europa das nações, fechada à imigração, fechada aos feminismos, ao mesmo tempo neoliberal e privatista (porque a extrema-direita italiana não rompe com esse paradigma). O desafio que a esquerda tem pela frente é enorme, mas deve assumi-lo e recuperar a dimensão partidária e a ideologia da social-democracia.

Eu me pergunto se esse é um problema que diz respeito apenas aos partidos de esquerda ou à própria tradição política do socialismo democrático. Você sempre fez parte dessa linha de pensamento que, em termos de filosofia política, teve expoentes proeminentes na Itália, como Norberto Bobbio, mas também outros precedentes, como Carlo Rosselli – sobre quem você escreveu um belo texto que serviu de prólogo à reedição de Socialismo liberal. O que aconteceu com essa tradição político-intelectual? Onde pode ir hoje uma renovação dessa tradição ideológica daquela esquerda que tinha, como disse Bobbio, a igualdade como estrela polar?

Acho que é aí que está o grande desafio. Devemos repensar essa tradição. Como você sabe, em 1994, Bobbio escreveu seu livro Direita e esquerda. Ele o fez precisamente no momento em que o neoliberalismo e a democracia minimalista propostos pela Comissão Trilateral – de que falamos anteriormente – estavam em pleno desenvolvimento. Eram tempos de desmonte da social-democracia, em que os partidos clássicos perdiam o seu papel mediador, em que se proclamava o triunfo total da sociedade de mercado e de um modelo de consumo que parecia avassalador. Nesse contexto, em que a democracia apoiada em partidos fortes e organizados perdia peso, Bobbio levantou uma ideia fundamental: a de que a igualdade deveria continuar sendo a “estrela polar” da esquerda. Disse-o, repito, numa altura em que se rompeu o compromisso entre capital e trabalho, e em que a democracia se tornou minimalista: todos aspiravam apenas à “governabilidade”. E então Bobbio disse isso. É claro que, como bom socialista democrático, ao afirmar que a igualdade deveria ser o eixo da esquerda, não quis colocar a liberdade em tensão: para Bobbio, a igualdade implicava a extensão e a expansão da liberdade, entendida como “não dominação”. Hoje estou convencida de que devemos retomar essa ideia. Acho que ficou claro que quem detém o poder, principalmente o econômico, não está interessado em igualdade. Já são iguais entre si: são iguais entre “os poucos”. Já para “os muitos”, a igualdade nos importa porque nos falta poder: só temos o do Estado para nos tratar como iguais, para nos dar um estatuto de defesa perante a lei.

Agora, qual é a igualdade que importa para nós, como pessoas de esquerda? Não uma igualdade que torna uniforme, mas uma igualdade que é conflituosa. Não uma igualdade que é imposta pelo Estado, mas uma igualdade que pressupõe pluralidade social e conflito. Na tradição de Maquiavel, mas também de Piero Gobetti, o conflito é uma alavanca para a liberdade. É a alma da política e é necessária para a democracia. É precisamente por isso que os partidos são importantes, que as ideias políticas são importantes, que as alternativas são importantes. As grandes mobilizações e levantes populares expressam essa necessidade do conflito, mas, como dissemos antes, não conseguem produzi-lo por falta de estruturas que deem real sentido político a esse conflito. Hoje, mais do que nunca, uma tradição da esquerda democrática e reformista tem que pensar nesses eixos: na importância dos atores coletivos como os sindicatos, como os partidos, como as associações sociais. Precisamos de instituições mediadoras, formas de agregação de solidariedade entre pessoas que têm algo em comum a defender ou pelo qual lutar. A associação, a organização, o conflito e a contestação constituem os fundamentos de uma democracia aberta. E hoje, infelizmente, a democracia está fechada porque nos falta essa dimensão, esse horizonte em que, como disse Bobbio, temos consciência de que existe a possibilidade de fazer diferente. Perceber essa possibilidade já seria, para a esquerda, um enorme avanço.

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