Como a Itália se levantou contra o genocídio
Duas ações concretas inspiraram 500 mil a saírem às ruas contra o genocídio em Gaza: bloqueio dos estivadores aos “navios da morte” e ação solidária de um coletivo de ativistas. Jornada mostrou: uma potente força popular pode emergir fora dos mapas da política tradicional
Publicado 30/09/2025 às 17:09

Brasil e Itália, setembro de 2025: o povo ganha a cena. Não faz sentido comparar a situação social e política dos dois países, claro, nem as razões que levam o povo a transformar-se nesses dias em maré. O que Brasil e Itália partilham, porém, é a intensidade da força popular, o impacto que exerce em diferentes níveis. Constituído por multidões que escapam às análises ortodoxas da consciência, da progressão linear, na confiança no papel de um sujeito histórico único e eterno, o povo enche as ruas, derruba as estratégias, varre as explicações dos porquês de determinadas escolhas e alianças, os pedidos de moderação, de compreensão “dos tempos da política”.
Os espaços políticos institucionais — saturados pela dialética muitas vezes estéril — são abalados por uma força incontornável que não deixa lugar a outras ações. As instituições políticas — de governo e de oposição —, os sindicatos confederais têm de encontrar a maneira de enfrentar aquelas multidões, ignorá-las é impossível. Significaria ficar ao lado de eventos que marcam a vida de um país. Conforme as várias orientações, alguns tentam estigmatizá-las como inúteis ou contraproducentes, outros de saltar por cima do carro.
O que isso significa para o Brasil e para a política brasileira foi bem descrito por Antonio Martins num recente artigo no Outras Palavras, acerca das manifestações contra a anistia para os golpistas. Entre os cinco pontos que António destaca na sua análise, o terceiro é o que mais aproxima o Brasil da Itália: “Os partidos e suas frentes sociais não têm mais o monopólio da convocação popular. Felizmente, entraram em ação outros atores — o que garantiu o enorme sucesso da jornada de domingo”.
É o mesmo que está acontecendo na Itália, onde — como todos sabem — se vivenciam tempos sombrios. A aliança de ferro entre Meloni e Trump — puxada ao extremo pelas externações delirantes do Salvini — não parece afrouxar-se à frente das políticas criminosas do segundo. Pelo contrário, são tomadas como referência na definição das relações com a justiça, nos conflitos sociais, nas desigualdades, assim como na política externa. A esquerda institucional, presa nas eternas contradições que a conotam há décadas e sem uma visão clara do que quer ser quando crescer, fica no banco dos suplentes, sem perspectiva de entrar no campo de jogo principal para os próximos dois, três campeonatos.
Neste cenário, e com as imagens de Gaza a entrarem diariamente nos ecrãs de todos, de um lado, e a hipocrisia e má-fé dos políticos nacionais e europeus, do outro, o povo tomou a cena.
Não foram organizações políticas que puxaram isso. Foram duas estruturas bastante diferentes entre si: o CALP (Collettivo Autonomo dei Lavoratori portuali), uma organização de base dos estivadores do porto de Gênova, e a Music for Peace, uma estrutura de voluntariado muito ativa, tanto no âmbito local, como em paises com fortes necessidades de apoio logístico e humanitário (Sudão e, até há dois anos, Gaza).
O CALP tem organizado o bloqueio dos navios para o transporte de armas no porto de Gênova desde 2019. Construiu, ao longo desses seis anos, ligações estreitas com organizações sociais e políticas, coletivos de estudantes, centros sociais autônomos. A participação nos bloqueios sempre viu uma participação que ia muito para além dos estivadores em si, mas nunca chegou a números realmente elevados.
A saída do CALP da CGIL (Confederação Geral Italiana do Trabalho) em 2020 e a adesão ao sindicato de base USB (União Sindical de Base) deram-lhe mais autonomia de iniciativa. USB é o sindicato bem enraizado entre quem trabalha na logística e transportes — sobretudo os mais marginalizados — e no setor público. A partir daí, o CALP alcançou uma posição de destaque nas relações com outros estivadores, tanto na Itália quanto na Europa. Até chegou a ser recebido pelo papa Bento, que valorizou muito as ações levadas a cabo pelo Coletivo contra o tráfico de armas.
Apesar de tudo isso, as iniciativas promovidas pelo CALP tinham sempre o caráter de manifestações de “militantes”. Não conseguiam derrubar a barreira que as mantinha separadas do resto da cidade. Também a maioria dos estivadores não participava dos bloqueios: entre eles existe uma organização política muito forte e incrivelmente ortodoxa e anacrônica — Lotta Comunista — que sempre se declarou contra esse tipo de iniciativas.
Em agosto, a situação mudou de repente. O CALP e Music for Peace organizaram uma recolha de bens alimentares para serem transportados a Gaza, pela Global Sumud Flotilla. Em cinco dias, foram recolhidas 300 toneladas. Foi um sucesso incrível. Havia filas de pessoas e carros a qualquer hora do dia para entregarem na sede de Music for Peace os produtos que haviam sido elencados pelos organizadores. Milhares e milhares de cidadãos de qualquer extração e idade, também vindo de outras localidades, faziam a fila para entregar o que compraram. Os supermercados nos arredores chegaram a esvaziar as prateleiras.
A manifestação que encerrou a recolha viu um rio de dezenas de milhares de pessoas acompanharem os bens até serem entregues aos barcos.
Aí estava o povo. O que aconteceu ecoa nas palavras do Antonio Martins: trata-se de um povo que não respondeu à convocação de uma organização política. Respondeu, sim, a um apelo interior, se assim o quisermos nomear, que atravessou a cidade toda e mais além. E não parou aí. A greve geral convocada pela USB foi um sucesso sem precedentes: centenas de milhares de pessoas participaram em muitas cidades italianas. A CGIL tentou boicotá-la, convocando ela mesma outra greve geral três dias antes, mas fracassou totalmente: participaram alguns milhares. Estamos falando do maior sindicato da Itália.
O atraso — na melhor das hipóteses — dos partidos e das organizações institucionais da esquerda tornou-se algo embaraçador. O povo, por sua vez, mostrou-se mais adiantado por uma distância sideral.
Seria uma ingenuidade não tomar em conta a situação dramática em que esse movimento surgiu e ver nele logo algo que indique uma mudança de longo prazo. As experiências francesas no recente passado mostram que as mobilizações — também as com maior participação popular — acabam após um tempo mais ou menos longo. Mas há uma outra consequência: sempre que o povo enche as ruas, algo fica, às vezes sob a cinza, uma brasa prestes a chispar de novo. A França Insubmissa nasceu assim.
Mas há também outro ponto. Esse movimento surgiu em consequência de uma tomada de posição face a um dos elementos nevrálgicos da fase atual da história do capitalismo: a guerra e o regime que a produz e reproduz enquanto sua condição de existência.
Neste sentido, o movimento que nasceu no verão (europeu) de 2025 pode e deveria tornar-se algo diferente. Já se fala na USB de objeção de consciência para todos os que trabalham direta ou indiretamente na produção e manuseio de armas. Isso significaria ampliar brutalmente o “campo de batalha”, contra uma das produções estratégicas no plano global, que chegaria muito além da dramaticidade do genocídio em Gaza.
O trabalho será muito complicado, pois irá mexer nos equilíbrios entre poderes políticos e econômicos em diferentes níveis. Por isso, esse movimento precisará de articulações entre uma multidão de sujeitos que, para ter o impacto desejado, deverão estender-se horizontal e verticalmente, tendo como âmbito de referência o cenário internacional.
É mesmo nesse sentido que a mobilização já está envolvendo a sociedade. No dia 27 de setembro, teve lugar uma assembleia em Gênova, com a participação de delegações de estivadores gregos, espanhóis e franceses. Todos estão pactuando com as mesmas práticas de boicote dos navios da morte, contra a ordem que o “regime de guerra” quer impor. Seguindo o rumo que levou à articulação de forças sociais localmente, o desafio agora é deslocar o conflito para um plano supranacional.
A articulação entre atores diferentes, porém, significa também a produção de um nível “político”, que seja a síntese das “políticas” específicas. Essa é a condição para manter, consolidar e desenvolver uma força popular.
O CALP e Music for Peace estão mostrando que trabalhar neste sentido é possível e produtivo. Cabe a nós todos contribuir para o alcance dos próximos objetivos, que serão logo ultrapassados por novos.
O que temos à nossa frente é uma aposta demasiado elevada para podermos nos permitir distrações.
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