O amargo sabor da “nutrição” enganosa

Finalmente publicado no Brasil livro que expõe os métodos promíscuos da indústria alimentícia para fazer crer — com auxílio de “cientistas” — que seus produtos são “saudáveis”. Grandes corporações são principais manipuladoras. Leia trecho

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Por Marion Nestle

MAIS:
O texto a seguir é um trecho de
Uma verdade indigesta
De Marion Nestle, publicado pela Editora Elefante, parceira do site.
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Eu amo a ciência da nutrição. Em meu primeiro trabalho como professora, dei aulas sobre isso. Fiquei apaixonada. Até hoje, adoro o desafio intelectual de descobrir o que comemos, por que comemos o que comemos e como as dietas afetam a nossa saúde.

Não é fácil estudar essas questões em todos os contextos — genética, formação cultural, estilo de vida, renda e educação — que influenciam nosso bem-estar. Também tenho um fascínio infinito pela maneira como as escolhas alimentares se relacionam com muitos dos problemas mais desafiadores da sociedade, entre os quais a saúde é apenas o mais óbvio. O que comemos está relacionado com pobreza, desigualdade, raça, classe, imigração, conflitos sociais e políticos, degradação ambiental, mudanças climáticas e muito mais. O alimento é uma lente através da qual podemos examinar todas essas preocupações.

Eu amo a complexidade das questões alimentícias e a paixão com a qual as pessoas tratam delas. Não amo, porém, o modo como a indústria alimentícia acrescentou a essa complexidade uma complicação desnecessária: o envolvimento dos profissionais de nutrição em metas de marketing muitas vezes contrárias aos interesses da saúde pública.

Uma verdade indigesta se dedica a compreender como empresas de alimentos, bebidas e suplementos financiam pesquisadores e profissionais de nutrição, e como isso se associa com o objetivo final do lucro. O livro surge em um momento em que os escândalos criados por esse tipo de financiamento são notícia de primeira página. Cito aqui um exemplo inesperado — e altamente surreal — de por que os assuntos tratados aqui devem ser importantes para todos nós. 

Durante a particularmente controversa disputa presidencial de 2016 nos Estados Unidos, hackers russos roubaram valiosas mensagens eletrônicas de funcionários do Partido Democrata e as publicaram no site WikiLeaks. Roubaram também emails de pessoas que trabalhavam na campanha de Hillary Clinton e as publicaram em outro site — dcLeaks. Esse nível maquiavélico de intriga internacional deveria estar a anos-luz de distância do financiamento da indústria alimentícia a profissionais de nutrição, exceto por uma coincidência verdadeiramente bizarra: os dados armazenados no dcLeaks incluíam mensagens trocadas entre uma conselheira da campanha do ex-presidente Bill Clinton, Capricia Marshall, e Michael Goltzman, vice-presidente da Coca-Cola. Enquanto trabalhava com Clinton, Marshall também fazia consultoria para a multinacional, cobrando sete mil dólares por mês.[1]

Marion Nestle: sem nenhum parantesco com a marca suíça…

Os e-mails da Coca-Cola podem ter sido um efeito colateral da interferência russa nas eleições norte-americanas, mas, para mim, foram um presente. As mensagens tocam nos principais temas deste livro — e, não menos importante, expõem meu nome. Os e-mails revelados incluíam uma mensagem de janeiro de 2016 do diretor de uma agência australiana que fazia relações públicas para a empresa. O texto trazia anotações feitas em uma palestra que eu havia acabado de dar na Austrália. Na época, eu era pesquisadora visitante na Universidade de Sydney, ligada ao grupo de pesquisa da professora Lisa Bero, cujos estudos sobre a influência corporativa na pesquisa científica aparecem com frequência neste livro. As anotações sobre minha palestra — muito bem-feitas, na verdade — citam alguns dos participantes da conferência, analisam o conteúdo apresentado e aconselham a CocaCola a monitorar futuras comunicações, pesquisas e presença nas mídias sociais, além de acompanhar o trabalho de Lisa Bero.[2]

Lembro-me vagamente de que alguém me disse que um representante da Coca-Cola estivera em minha palestra, mas, na época, não parei para pensar nisso. Meu livro de 2015 sobre a indústria de refrigerantes — Soda Politics: Taking on Big Soda (and Winning) [ Políticas do refrigerante: desafiando os grandes fabricantes (e vencendo)] — tinha acabado de ser publicado, e presumi que alguém da indústria estaria na plateia em todas as minhas palestras. Os e-mails revelados pelo dcLeaks demonstram o grande interesse da Coca-Cola nas atividades de indivíduos de qualquer lugar do mundo que possam questionar os efeitos de seus produtos sobre a saúde, além das pressões da empresa sobre jornalistas que escrevem sobre o assunto.

Em 2015, a repórter da agência Associated Press (AP) Candice Choi investigava o recrutamento de especialistas em dietas pela Coca-Cola para promover os refrigerantes nas redes sociais. A equipe de relações públicas da empresa havia trabalhado durante anos com esses profissionais para fazê-los divulgar “conteúdo patrocinado” que anunciasse “como nossas bebidas podem se encaixar em uma dieta saudável e balanceada”. Como esperavam que o artigo de Choi “tivesse uma perspectiva negativa e cínica”, os funcionários da empresa “procuraram os editores da AP para registrar formalmente preocupações acerca da matéria” em que a repórter estava trabalhando, prometendo “continuar a incentivá-los a não divulgar” suas descobertas. Nesse caso, as pressões não funcionaram. A reportagem descreveu como as empresas alimentícias trabalhavam “nos bastidores para apresentar seus produtos de forma positiva, muitas vezes com ajuda de terceiros, vistos como autoridades confiáveis”. Candice Choi publicou a alegação de um porta-voz da Coca-Cola sobre aquela estratégia: “temos uma rede de especialistas em dietética com os quais trabalhamos. Toda grande marca trabalha com blogueiros ou pessoas pagas”.[3]Graças aos e-mails, agora sabemos como esse sistema funciona.

As mensagens mostram como a Coca-Cola influencia os repórteres que escrevem sobre esses tópicos. A equipe da empresa se relacionava com Mike Esterl, repórter do The Wall Street Journal. Havia uma pesquisa que demonstrava os benefícios dos impostos sobre refrigerantes, e a ideia era ter certeza de que “Mike entendeu a fonte do estudo, e que este ainda não havia sido publicado ou avaliado por um grupo de especialistas da área”.[4]Outra mensagem dizia: “para sua informação, por favor, note que temos envolvido a repórter da AP Candice Choi nesse assunto desde abril, e tem havido numerosos compromissos — verbais e escritos”.[5]

O mesmo e-mail também se refere ao relacionamento confortável entre a então diretora científica da Coca-Cola, Rhona Applebaum — guarde esse nome —, e os cientistas que realizavam pesquisas acadêmicas financiadas pela empresa. A equipe da Coca-Cola escreveu que sabia que a reportagem de Choi incluiria uma troca de e-mails na qual Applebaum se referia com frequência ao grupo de cientistas como “Cartel” e aos críticos, como “trolls”. O texto levantou dois pontos: a pesquisa financiada pela indústria normalmente promove os interesses do patrocinador; e alguns pesquisadores ganham a vida com trabalhos financiados por corporações alimentícias e associações empresariais. Choi apontou que um desses grupos “transmitiu regularmente conclusões favoráveis para os financiadores — ou “clientes”, como esses cientistas preferem chamá-los.[6]

Outras mensagens se referiam ao lobby da companhia para influenciar a conduta de nutricionistas. A equipe de relações públicas se preocupou com a possibilidade de que o comitê acadêmico responsável por revisar as evidências científicas usadas no Guia Alimentar dos Estados Unidos de 2015 propusesse “eliminar as bebidas com açúcar das escolas, taxá-las e restringir a publicidade de alimentos e bebidas com alto nível de sódio ou adição de açúcares” para todos os segmentos da população. Com isso, a equipe sugeriu que a empresa “deve estar preparada para que este relatório seja frequentemente citado por ativistas” e “deve trabalhar em conjunto para equilibrar a cobertura”.[7]Posteriormente, o diretor de Relações Governamentais da Coca-Cola assegurou aos colegas que havia trabalhado em estreita colaboração com o Congresso e as agências federais “para garantir que a recomendação política acerca de um imposto sobre refrigerantes não fosse incluída nas diretrizes finais”. Esses esforços foram bem-sucedidos: a palavra “imposto” não aparece em nenhuma parte do documento.

Os e-mails revelados pelo dcLeaks oferecem um vislumbre precioso de como a empresa de bebidas tentou influenciar nutricionistas, pesquisas nutricionais, jornalistas que cobrem a área e recomendações dietéticas. Quando podem, outras empresas alimentícias também fazem isso.[8]A diferença é que a Coca-Cola foi flagrada em ação.

Não foi a primeira vez, e nisso está a gênese deste livro. Em agosto de 2015, enquanto Soda Politics estava na gráfica, o New York Times publicou uma reportagem de primeira página sobre o fato de a empresa financiar pesquisadores universitários, que criaram um grupo chamado Global Energy Balance Network [Rede Global de Balanço Energético] (GEBN). O propósito era convencer o público — contrariando muitas evidências — de que a atividade física é mais eficaz que a dieta como meio de controle do peso corporal.[9]Como eu tinha sido citada naquela matéria, repórteres me ligaram em busca de comentários. Eles quase não acreditaram que uma empresa tão proeminente como a Coca-Cola tivesse financiado uma pesquisa escancaradamente voltada aos próprios interesses, que pesquisadores de universidades respeitadas tivessem aceitado recursos para tal ou que instituições acadêmicas tivessem permitido que o corpo docente o fizesse. Se os repórteres não tinham ideia de que essas práticas existiam, ficou claro, então, que eu devia escrever outro livro.

Na verdade, eu já estava pronta para isso. Produzi meu primeiro artigo sobre essas questões em 2001[10]e, em agosto de 2015, estava no meio do que acabou sendo um projeto de um ano para coletar estudos financiados pela indústria que produziam resultados favoráveis para os interesses dos patrocinadores. Poucos meses antes, eu havia começado a publicar resumos dessas pesquisas no blog que mantenho desde 2007, FoodPolitics.com. Continuei a fazer postagens até março de 2016. Mencionarei os resultados desse exercício depois, mas, por ora, vamos a alguns exemplos, a começar pela Rede Global de Balanço Energético.

A Coca-Cola tinha financiado pesquisas sobre os efeitos da atividade física no balanço energético e na gordura corporal. Os cientistas relataram que as pessoas que participaram do estudo equilibraram a ingestão de calorias com apenas 7.116 passos por dia — “uma quantidade possível para a maioria dos adultos”.[11]Esta pode parecer uma pesquisa básica sobre fisiologia do exercício, mas implica que a atividade física — e nem tanta assim — é tudo o que precisamos para controlar nosso peso, independentemente de quanta Coca-Cola tomemos.

A corporação não está sozinha no patrocínio de pesquisas de marketing disfarçadas de ciência básica. No final de 2017, o Journal of the American Heart Association publicou os resultados de um teste clínico que concluiu que a incorporação de chocolate amargo e amêndoas à nossa dieta pode reduzir o risco de doenças coronarianas.[12]Adoro isso. Você consegue adivinhar quem pagou por esse estudo? A Hershey Company, fabricante de chocolate, e a Almond Board, uma organização empresarial dos produtores de amêndoas da Califórnia. Eles também pagaram a sete dos nove autores por terem participado do teste — os outros dois eram funcionários da Hershey.

E se as descobertas desses estudos forem verdadeiras? E se exercício, chocolate e amêndoas forem bons para a saúde? O que há de errado em financiar pesquisas para provar isso? Essa é uma questão séria que merece uma resposta séria: este livro. Laços financeiros com empresas alimentícias não são necessariamente causa de corrupção. É possível que um pesquisador seja financiado por uma companhia e mantenha a independência e a integridade. O financiamento por empresas alimentícias, porém, costuma exercer influência indevida, e invariavelmente pareceque é assim. Ou seja, uma simples insinuação de financiamento empresarial à pesquisa é suficiente para reduzir a confiança de alguns segmentos do público. Profissionais de nutrição reconheceram os riscos de aceitar patrocínio de empresas alimentícias há muito tempo, mas a maior parte deles tem considerado que os benefícios — dinheiro, recursos, contatos — superam os riscos. Do ponto de vista da indústria alimentícia, “capturar” cientistas e profissionais de nutrição é uma estratégia bem estabelecida para influenciar as recomendações dietéticas e as políticas públicas.[13]

As empresas entendem que precisam dessas estratégias para sobreviver no mercado ferozmente competitivo de hoje. O fornecimento de alimentos nos Estados Unidos provê cerca de quatro mil calorias por dia per capita, incluindo desde bebês pequenos até lutadores de sumô. Isso é o dobro da necessidade média de uma pessoa. Wall Street, porém, espera que as corporações com ações na bolsa de valores façam mais do que obter lucros: espera que elas aumentem a remuneração do acionista a cada trimestre.[14]A concorrência obriga as empresas alimentícias a se esforçarem para convencer os clientes a optar por seus produtos, a comer mais e a comprar produtos mais lucrativos. Os mais lucrativos, de longe, são os alimentos e as bebidas ultraprocessados[15]— junk food, em inglês —, que são ricos em calorias, mas têm baixo valor nutricional. Recorrer a profissionais de nutrição para declarar a inocuidade desses produtos faz sentido para os negócios. Então, finalmente essas empresas passam a promover alimentos supostamente mais saudáveis: os “superalimentos” — termo de marketing sem significado nutricional.

Como professora de nutrição, todos os dias lido com a perplexidade das pessoas acerca das escolhas alimentares. Em 2006, escrevi What to Eat [O que comer] na esperança de reduzir parte da confusão e incentivar os leitores a desfrutar a comida — um dos maiores prazeres da vida. Ao final, a recomendação dietética básica é tão constante e simples que o jornalista Michael Pollan a resumiu em poucas palavras: “coma comida, não demais, principalmente verduras”.[16]Infelizmente, porém, recomendações como essa não vendem produtos alimentícios. A influência de profissionais de nutrição, sim.

Muito do que sabemos sobre a influência corporativa na ciência vem de estudos sobre as indústrias de tabaco, química e farmacêutica. O exemplo mais relevante, no nosso caso, diz respeito à maneira como as farmacêuticas induzem os médicos a prescrever medicamentos mais caros — e às vezes desnecessários — e encomendam pesquisas para demonstrar que suas drogas são mais seguras e mais eficazes que genéricos ou concorrentes. Décadas atrás, médicos reconheceram os efeitos negativos criados pela ação da indústria, registraram as distorções e deram passos para combatê-las. Publicações médicas exigiram que os autores divulgassem laços financeiros com farmacêuticas que pudessem lucrar com os resultados de seus estudos. Em 2010, o Congresso dos Estados Unidos exigiu que as farmacêuticas divulgassem pagamentos a médicos. Nada próximo a esse nível de preocupação, escrutínio ou ação, porém, se aplica aos esforços das empresas alimentícias em acionar profissionais de nutrição.[17]

Talvez porque as práticas dessa indústria sejam mais difíceis de mensurar, os profissionais de nutrição têm falhado em reconhecer e em lidar com os riscos à própria reputação advindos de tais parcerias. A pesquisa nessa área é relativamente nova, mas os poucos estudos publicados sugerem paralelos próximos aos efeitos da indústria farmacêutica. Trata-se de um problema tanto sistêmico quanto pessoal.[18]As empresas de ultraprocessados também distorcem pesquisas com o objetivo de colocar em foco questões úteis para o desenvolvimento de produtos e para o marketing; influenciam pesquisadores a enfatizar resultados equivocados; e encorajam profissionais de nutrição a oferecer opiniões laudatórias sobre patrocinadores e produtos — ou a permanecer em silêncio acerca dos efeitos desfavoráveis. Quando esses profissionais colaboram com empresas alimentícias, portanto, podem parecer mais interessados em marketing do que em saúde pública.

Deixo claro que não é fácil falar sobre essas questões. Uma razão para isso é que os efeitos do financiamento da indústria parecem ocorrer em um nível inconsciente, tão abaixo do radar do raciocínio que sua influência não é reconhecida. Além disso, a revelação dos relacionamentos financeiros com as empresas alimentícias é tão constrangedora que ninguém quer falar sobre isso. Minha própria situação ilustra essas dificuldades.

Como deve estar evidente, além de escrever sobre essa história, estou inserida nela e tenho minhas questões — profissionais e pessoais — ao lidar com as empresas alimentícias. No lado profissional, trabalho com colegas que aceitam esse tipo de financiamento e ficam ressentidos com a menor sugestão de que isso pode influenciar a pesquisa. Editores de revistas são cautelosos para publicar artigos sobre conflitos induzidos pela indústria. Ao escrever sobre esses tópicos, enfrentei minha própria parcela de dificuldades para publicá-los: várias rodadas de revisão pelos meus pares, rejeição de comentários que havia sido convidada a enviar e, em um caso especialmente doloroso, uma obrigação de retratação.[19]

Eu mesma não consigo evitar me envolver com empresas de alimentos, bebidas e suplementos. Elas me enviam amostras de produtos. Patrocinam as reuniões que frequento, as sociedades a que pertenço e as publicações que leio. Entregam informativos, livros, releases, materiais pedagógicos, pequenos presentes (canetas, brinquedos, lanternas e pen-drives) e grandes presentes (você acreditaria em um saco de pancadas com o formato de uma lata de refrigerante?). De vez em quando, forneço consultoria a empresas alimentícias, respondo às suas perguntas e falo em reuniões que elas patrocinam. Como expliquei no livro Food Politics [Políticas alimentares], essas interações são comuns entre os nutricionistas acadêmicos. Incomum é questioná-las.

Como professora de nutrição, preciso saber o que as empresas alimentícias estão fazendo. Interagir é um aprendizado, embora, às vezes, constrangedor. Eu estava escrevendo este livro quando Daniel Lubetzky, carismático proprietário da empresa de frutas e nozes Kind, pediu-me para ajudá-lo a selecionar o conselho da sua nova fundação sem fins lucrativos, a Feed the Truth [Alimente a verdade]. Ele havia prometido 25 milhões de dólares ao longo de dez anos para a organização, que tinha por objetivo “melhorar a saúde pública, fazendo da verdade, da transparência e da integridade os principais valores do atual sistema alimentar”.[20]Para isso, patrocinaria pesquisas científicas e programas de educação para expor os esforços das empresas alimentícias em distorcer estudos e ir contra a saúde pública. Eu não poderia recusar.

Sempre atenta, a repórter Candice Choi, da AP, escreveu a respeito. Ela registrou minha explicação, dizendo que Marion Nestle “normalmente, mantém a indústria à distância, mas achou Lubetzky ‘muito persuasivo’ e sentiu que a Feed the Truth poderia aumentar a conscientização sobre a influência corporativa na pesquisa nutricional”.[21] O artigo de Choi também apontou que a organização tinha pagado minhas despesas de viagem para uma reunião em Washington. Choi merece todo o crédito por apurar os pagamentos recebidos, mas, particularmente, não me agradou ter esse reembolso divulgado no The Washington Post.

Deixe-me contextualizar esse dinheiro. Ao longo dos anos, precisei desenvolver uma política de gestão para lidar com pagamentos e presentes de empresas alimentícias — o que posso e o que não posso aceitar — para minimizar a influência delas e para permanecer vigilante sobre a influência exercida de modo inconsciente. De acordo com essa política, aceito reembolso de despesas de viagem, hospedagem e refeições, mas, pessoalmente, não aceito honorários, taxas de consultoria ou quaisquer outros pagamentos diretos. Em vez disso, peço às empresas alimentícias que façam uma doação equivalente à Marion Nestle Food Studies Collection, na biblioteca da Universidade de Nova York, ou, agora que estou oficialmente aposentada, ao fundo de viagens estudantis do meu departamento. Quando os pagamentos são feitos a mim, endosso os cheques a uma ou ao outro (e declaro tudo no imposto de renda).

Como veremos, muitas evidências demonstram que o pagamento de viagens, hotéis, refeições, registros de reuniões e pequenos presentes são o suficiente para influenciar o resultado de pesquisas e a prática de prescrição de médicos.[22]Não tenho motivos para pensar que eu seja particularmente imune à influência de pagamento para uma coleção de biblioteca ou para um fundo que beneficia minha reputação. Apesar de imperfeita, minha política exige que eu pense cuidadosamente sobre cada interação com uma empresa alimentícia que envolva pagamentos ou benefícios.

Mais um exemplo: em 2017, fui convidada para falar em um simpósio na Suíça organizado pela Nestlé (com a qual não tenho parentesco), empresa há muito acusada de evadir-se ou violar os códigos éticos de comercialização de substitutos do leite materno e alimentos para desmame.[23]Aceitei porque estava curiosa para saber mais sobre o empreendimento científico da empresa, e queria uma oportunidade de compartilhar minhas opiniões com uma audiência à qual normalmente não tenho acesso. Críticos das ações da Nestlé, porém, avaliaram os riscos de eu ser usada pela empresa, entenderam que os prejuízos à minha reputação seriam muito grandes e me pediram para recusar o convite. A política que instituí me forçou a pensar muito sobre as possíveis consequências da escolha de falar naquele simpósio.

Estou ciente de que tenho a sorte de estar em uma posição que me permite manter tal política, tomar essas decisões e escrever livros sobre esses tópicos. Nunca dependi da concessão de fundos. Durante as três décadas que passei na Universidade de Nova York, fui privilegiada — acredite em mim, pois sei exatamente o quanto — com um cargo de professora titular que pagava todo o meu salário e fornecia bolsas de estudo, telefone, computador e biblioteca de primeira linha, tudo que preciso para o tipo de pesquisa que faço.

Ao escrever este livro, também enfrentei outra decisão difícil: o que não incluir nele. Para limitar o escopo, optei por enfatizar a influência da indústria alimentícia sobre o consumo — empresas que produzem alimentos e bebidas que as pessoas normalmente consomem. Ainda assim, decidi excluir várias categorias: bebidas alcoólicas, suplementos dietéticos e adoçantes artificiais. A similaridade da indústria do álcool com a indústria do tabaco na manipulação de pesquisas e políticas está consolidada.[24]

Em Food Politics, escrevi bastante sobre a escassez de evidências quanto aos benefícios dos suplementos alimentares para quem tem uma dieta razoavelmente variada. Esse segmento financia muitos estudos que demonstram as vantagens para a saúde de se tomar um produto ou outro, mas pesquisadores independentes não chegam ao mesmo resultado — algumas vezes, inclusive, sugerem que ingerir nutrientes em forma de comprimido pode ser prejudicial. Apesar disso, metade dos adultos norte-americanos toma suplementos, acreditando compensar dietas inadequadas.[25]Essa indústria é muito hábil em obter a pesquisa de que necessita para explorar as ansiedades em torno da alimentação: caveat emptor, o risco é do consumidor.

Quanto aos adoçantes artificiais, as empresas muitas vezes financiam estudos para provar que, isoladamente e em conjunto, as substâncias são seguras e eficazes para perda de peso. Pesquisas independentes questionam esse resultado.[26]Enquanto aguardo mais evidências para determinar a segurança ou a eficácia desses produtos químicos, sigo uma regra alimentar pessoal: nunca como nada artificial.

Além disso, para evitar que este livro tenha o dobro do tamanho, pouco ou nada se dirá sobre as empresas envolvidas na agricultura — alimentos geneticamente modificados, agroquímicos e alimentos orgânicos. Os esforços dessas indústrias para influenciar pesquisas, opiniões e políticas também foram minuciosamente investigados e documentados.[27]Mesmo com essas omissões deliberadas, ainda temos muito sobre o que falar.

Uma verdade indigesta aborda conflitos de interesses induzidos pelas interações da indústria alimentícia com os profissionais de nutrição e os efeitos sistêmicos desses conflitos na política pública e na saúde pública. Para os fins dessa nossa conversa, isso pode ocorrer quando pesquisadores ou nutricionistas, cujo principal interesse é produzir uma nova evidência ou oferecer recomendações sobre nutrição e saúde, distorcem — ou parecem distorcer — suas descobertas ou opiniões devido a laços financeiros com empresas de alimentos.

Em termos de saúde pública, os conflitos induzidos pela indústria constituem um problema “perverso” sem solução fácil, além da recusa da verba oferecida. No mundo real da pesquisa e da prática de nutrição, no entanto, é mais fácil falar em não aceitar dinheiro do que efetivamente não o aceitar, sobretudo entre os que dependem mais do que eu de financiamentos externos para pesquisas e salários. Mesmo assim, creio que seria mais saudável para todos nós que os profissionais de nutrição — tanto os que atendem em consultórios quanto os acadêmicos — resistissem muito mais aos riscos e às consequências do patrocínio e estabelecessem medidas claras para minimizar esses problemas.

E quanto a você? A verdadeira questão é como você — leitor, consumidor de alimentos, cidadão — pode reconhecer e se proteger contra o ataque de informações enganosas e recomendações resultantes da manipulação de pesquisas e práticas de nutrição das empresas alimentícias. Todo mundo come. A comida é importante. Todos precisamos e merecemos uma recomendação nutricional saudável, destinada a promover a saúde pública — e não os interesses comerciais corporativos. Como podemos fazer isso? Continue a ler.


  1. “Following the links from Russian hackers to the U.S. election”. TheNew York Times, 6 jan. 2017; Office of the Director of National Intelligence, Intelligence Community Assessment: Assessing Russian Activities and Intentions in Recent usElections, ica2017-01D, 6 jan. 2017. Para os arquivos do dcLeaks, consulte a Biblioteca de Documentos da Indústria de Alimentos da Universidade da Califórnia, em San Francisco, que identifica cada e-mail pelo código único anexado ao urldo site. Disponível em <www.industrydocumentslibrary.ucsf.edu/food/docs/>.

2. “Hillary Clinton campaign officials helped Coca-Cola fight soda tax”. The Russells, 12 out. 2016; “Leaked: Coca-Cola’s worldwide political strategy to kill soda taxes”. Medium.com, 14 out. 2016; “Coca-Cola’s secret plan to monitor Sydney University academic Lisa Bero”. Sydney Morning Herald, 22 out. 2016.

3. “Coke as a sensible snack? Coca-Cola works with dietitians who suggest cola as snack”. Associated Press, 16 mar. 2015.

4. Karyn Harrington para Matt Echols, 6 mai. 2016. Em: Michael Goltzman para Adrian Ristow, Brian Michael Frere, Capricia Penavic Marshall et al., 19 mai. 2016.

5. Amanda Rosseter para Joanna Price, 26 mai. 2016. A resposta de Price tem a mesma data. Em: Michael Goltzman para Darlene Hayes, Missy Owens, Elaine Bowers Coventry et al., 27 mai. 2016, ucsf id: qpcl0226.

6. “AP Exclusive: How candy makers shape nutrition science”. Associated Press, 2 jun. 2016.

7. Kate Loatman para o Conselho Internacional de Associações de Bebidas, 19 fev. 2015, ucsf id: gqdl0226.

8. “Monsanto and the organics industry pay to train journalists: What could go wrong?”. Forbes, 31 mai. 2016.

9. “Coca-Cola funds scientists who shift blame for obesity away from bad diets”. TheNew York Times, 9 ago. 2015.

10. Nestle, Marion. “Food company sponsorship of nutrition research and professional activities: A conflict of interest?”. Public Health Nutritrion, 2001, v. 4, n. 5, pp. 1015-22.

11. shook, R. P.; handG. A.; drenowatz,C. et al. “Low levels of physical activity are associated with dysregulation of energy intake and fat mass gain over year”. American Journal of Clinical Nutrition, 2015, v. 102, n. 6, pp. 1332-8.

12. lee,Y.; berryman, C. E.; west, S. G. et al. “Effects of dark chocolate and almonds on cardiovascular risk factors in overweight and obese individuals: A randomized controlled-feeding trial”. Journal of the American Heart Association, 2017.

13. besley,J. C.; mccright, A. M.; zahry,N. R. et al. “Perceived conflict of interest in health science partnerships”. plosOne,2017, v. 12, n. 4, e0175643; kroeger,C. M.; garza,C.; lynch,C. J. et al. “Scientific rigor and credibility in the nutrition research landscape”. American Journal of Clinical Nutrition, 2018, v. 107, n. 3, pp. 484-94; miller,D.; harkins,C. “Corporate strategy and corporate capture: Food and alcohol industry and lobbying and public health”. CritSoc Policy, 2010, v. 30, pp. 564-89.

14. USDA. “Food availability (per capita) data system”; mialon,M.; swinburn, B.; allender, S.; sacks, G. “‘Maximising shareholder value’: A detailed insight into the corporate political activity of the Australian food industry”.Australian and New Zealand Journal of Public Health, 2017, v. 41, n. 2, pp. 165-71.

[15]A classificação dos alimentos pelo grau e propósito de processamento foi criada em 2009 por Carlos Augusto Monteiro, professor da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo. Essa classificação é a base do Guia Alimentar para a População Brasileira, do Ministério da Saúde, de 2014, e por isso é a adotada ao longo do livro. O documento oficial recomenda evitar o consumo desses produtos. [n.e.] 

[16]pollan, Michael. Em defesa da comida. São Paulo: Intrínseca, 2008.

17. krimsky,S. Science in the Private Interest: Has the Lure of Profits Corrupted Medical Research?Lanham: Rowman & Littlefield, 2004; lo,B.; field, M. J. Conflict of Interest in Medical Research, Education, and Practice. Washington: National Academies Press, 2009; oreskes,N.; conway,E. M. Merchants of Doubt: How a Handful of Scientists Obscured the Truth on Issues from Tobacco Smoke to Global Warming.Londres: Bloomsbury Press, 2010; freudenberg,N., Lethal but Legal: Corporations, Consumption, and Protecting Public Health. Oxford: Oxford University Press, 2014; miller, D.; harkins, C.; schlögl,M.; montague,B. Impact of Market Forces on Addictive Substances and Behaviours. Oxford: Oxford University Press, 2018.

18.  marks,J. H.; thompson, D. B. “Shifting the focus: Conflict of interest and te food industry”. American Journal of Bioethics, 2011, v. 11, n. 1, pp. 44-46; marks,J. H. “Toward a systemic ethics of public-private partnerships related to food and health”. Kennedy Institute of Ethics Journal, 2014, v. 24, n. 3, pp. 267-99.

[19]barnoya,J.;nestle,M. “The food industry and conflicts of interest in nutrition research: A Latin American perspective”.Journal of Public Health Policy, 2016, v. 37, n. 4, pp. 552-9; nestle,M. “A retraction and apology”. FoodPolitics.com, 25 nov. 2015; “Retraction published for nutrition researcher Marion Nestle”. RetractionWatch.com, 31 dez. 2015.

[20]“kindsnacks founder & ceocreates new organization to promote public health over special interests”. prnewswire.com, 15 fev. 2017.

[21]“Millions to fight food industry sway, from a snack bar ceo”. The Washington Post, 15 fev. 2017.

[22]wood,S. F.;podraskyJ.; mcmonagle, M. A. et al. “Influence of pharmaceutical marketing on Medicare prescriptions in the District of Columbia”. plosOne, 2017, v. 12, n. 10, e0186060.

[23]World Health Organization. World Health Assembly, International Code of Marketing of Breast-Milk Substitutes, maio de 1981; richter,J., Public-Private Partnerships and International Health Policy-Making: How Can Public Interests Be Safeguarded?Helsinque: Hakapaino Oy, 2004; Nestlé Public Affairs, “Nestlé Policy and Instructions for Implementation of the whoInternational Code of Marketing of Breast-Milk Substitutes”, jul. 2010; Changing Markets Foundation, “Busting the Myth of Science-Based Formula: An Investigation into Nestlé Infant Milk Products and Claims”, fev. 2018.

[24]adams,P. J.Moral Jeopardy: Risks of Accepting Money from the Alcohol, Tobacco and Gambling Industries. Cambridge: Cambridge University Press, 2016; room,R. “Sources of funding as an influence on alcohol studies”. Int J Alcohol Drug Res, 2016, v. 5, n. 1, pp. 15-6.

[25]cohen,P. A. “The supplement paradox: Negligible benefits, robust consumption”. jama,2016, v. 316, n. 14, pp. 1453-4; kantor, E. D.; rehm,C. D.; du,M. et al. “Trends in dietary supplement use among usadults from 1999-2012”. jama, 2016, v. 316, n. 14, pp. 1464-74.

[26]rogers,P. J.; hogenkamp,P. S.; de graaf,C. et al. “Does low-energy sweetener consumption affect energy intake and body weight? A systematic review, including meta-analyses, of the evidence from human and animal studies”. International Journal of Obesity, 2016, v. 40, n. 3, pp. 381-94; pase,M. P.; himali, J. J.; beiser, A. S. et al. “Sugar and artificially sweetened beverages and the risks of incident stroke and dementia: A prospective cohort study”. Stroke, 2017, v. 48, pp. 1139-46.

[27]krimsky,S.;gruber,J. (orgs.). The gmoDeception: What You Need to Know about the Food, Corporations, and Government Agencies. Nova York: Skyhorse Publishing, 2014; “Food industry enlisted academics in gmolobbying war, emails show”. TheNew York Times, 5 set. 2015; “Scientists loved and loathed by an agrochemical colossus”. TheNew York Times, 2 jan. 2017; gilliam,C. Whitewashed: The Story of a Weed Killer, Cancer, and the Corruption of Science. Washington: Island Press, 2017.

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10 comentários para "O amargo sabor da “nutrição” enganosa"

  1. DBS company disse:

    Seu conteudo foi de grande ajuda para mim.

  2. Artigo muito inspirador e informativo sobre nutrição. Me elucidou um monte de coisa.
    Muito bom!

  3. Luis disse:

    Vim esperando encontrar horrores.. mas o que vejo é o que eu já sabia.. afinal antes que alguém venha acabar com sua empresa detonando seus produtos, você faz o dever de casa patrocinando estudos que mostrem o quanto ele pode ser favorável em dietas controladas.. ou ainda o estudo pode apontar a necessidade de mudança num ou outro ingrediente, diminuição de peso, menos sódio.. etc.

    O esquema todo da politicagem e pagamentos aqui e ali.. normal.. a própria autora afirma a participação em grupos de pesquisa pagos e recebimento de itens/brindes/lançamentos em casa..

    Senti foi um tempo perdido aqui..

    O que a coca fez de modo simplificado foi se defender de imbecis que só sabem dizer: “faz mal”..

    Eles dizem de forma subjetiva que faz mal SE não for acompanhado de uma dieta e atividades físicas. Ora, até eu, como empresário e criador de novos produtos farei e faria o mesmo..

    A culpa do sedentarismo, da inércia das pessoas é de cada um, não dá indústria alimentícia.. o que hora gente gosta é de apontar dedos.. ao invés de ajudar se fato e mostrar todos os lados da história..

    Cara.. Big Mac todo dia não né.. de vez em quando é uma delícia mas todo dia pega mal.. como se Super size me fosse um herói.. fala sério..

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