Quando o dinheiro assume o comando da política

Crise e empobrecimento inédito da Argentina são sinal de alerta ao Brasil. Vivemos numa época em que os economistas ortodoxos ignoram até mesmo Hayek — quanto mais os sinais evidentes de que suas políticas conduzem ao desastre

Argentinos procuram comida e roupas num “lixão” nas cercanias de Buenos Aires — uma cena que não fazia parte da paisagem social do país vizinho
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Por Felipe Calabrez

Quem acompanha o noticiário econômico certamente já notou que o tom das análises, diagnósticos e projeções sobre do nível de atividade econômica interna (a “economia”) é essencialmente expectacional, isto é, baseado na noção de que os agentes econômicos orientam suas decisões de poupança e investimento em função das expectativas que constroem sobre cenários futuros. Em termos simples, os donos do dinheiro realizarão investimentos se olharem para o futuro e gostarem do que virem.

Há, no entanto, diversas maneiras de entender e mensurar o que seriam essas expectativas. No campo da teoria econômica, a abordagem dominante é chamada de expectativas racionais. Trata-se de um axioma, uma premissa inquestionável e segundo a qual os agentes econômicos, que seriam, por definição, racionais e maximizadores de seus retornos, agiriam no presente em função de suas expectativas de retorno futuro. Aqui vale mencionar dois pontos fundamentais:

Primeiro: A adoção dessa premissa por um pesquisador – podemos chamar de paradigma das expectativas racionais – não implica, a priori e necessariamente, em uma determinada orientação político-ideológica (liberal, conservadora, desenvolvimentista, “de esquerda”, “de direita”). Segundo: O número de elementos que poderiam balizar a formação dessas expectativas é infindável. Assim, o elemento expectacional aparece, na matriz liberal, no teorema da equivalência ricardiana, que propunha, em resumo, que o aumento do gasto público via endividamento produziria nos agentes (famílias) a expectativa de aumento futuro nos impostos, o que, por sua vez, os induziria a poupar no presente. Aqui o aumento da poupança significa redução no consumo. A conclusão lógica é a de que o deficit público (ou endividamento público) não produzirá efeitos nas variáveis reais da economia. Seria, portanto, contraproducente.

Ainda na linha liberal, fez sucesso durante um tempo a tese da “contração fiscal expansionista”, que argumentava que um severo ajuste fiscal feito pelos Estados produziria uma baixa nos juros e um aumento na confiança dos agentes privados. Essa tese tem sido cada vez mais desacreditada diante de seu retumbante fracasso nos países europeus e após pesquisas terem demonstrado que, na prática, a contração fiscal tem sido…contracionista.

Mas enganam-se aqueles que acoplam automaticamente o uso da noção de expectativas à ideologia econômica liberal. Keynes, ao distinguir, na esteira de Marx, os proprietários dos meios de produção daqueles que têm que vender seu trabalho, argumentou que os primeiros possuem o poder de comando sobre o nível de utilização desses meios. Nesse raciocínio, o consumo dos trabalhadores se subordina à decisão de gasto dos capitalistas. E a decisão de gasto dos capitalistas (investimento) depende de um conjunto de avaliações moldado por expectativas sobre o futuro, marcado sempre pela incerteza. Temos aqui o princípio da demanda efetiva, um conceito ex-ante, portanto, expectacional.

Esse elemento da teoria de Keynes – aliás, pouco lembrado – é o que lhe deu embasamento para sustentar a defesa do investimento público como atenuador de incertezas e alavanca do investimento privado. A solução proposta por Keynes dividiu e ainda divide o campo dos economistas e para cada artigo que utilize as técnicas econométricas mais avançadas para provar o efeito multiplicador do gasto público (seu impacto positivo na demanda agregada) parece existir outro artigo buscando provar o efeito crowding out (“expulsão” do setor privado diante da “intervenção” do Estado), que, sob esse ponto de vista, seria contraproducente.

No âmbito do debate acadêmico, a questão resumidamente apresentada acima é de grande valia, embora o fato de a controvérsia nunca poder ser inequivocamente superada deveria tornar os economistas mais comedidos aos declarar o que os governos devem ou não fazer. Afinal no mundo social o princípio da incerteza não é privilégio dos empresários.

Mas há algo de ainda mais grave nessa simbiose entre o saber do economista e as decisões da política: A noção de expectativa racional parece ter se degenerado e perdido os referenciais que seriam capazes de balizá-la. Abundam nos jornais diários diversas avaliações e projeções sobre a atividade econômica (a “economia”) baseadas em diferentes “índices de confiança” calculados por agências “de mercado”. E os cenários projetados incluem governos e partidos. Assim, quem não se lembra do alarde sobre a explosão de expectativas positivas que surgiriam com a saída do PT do Governo Federal?

Após sucessivas projeções de crescimento do PIB produzidas pelo “mercado” terem demonstrado um fracasso retumbante, chama atenção a reportagem de capa do jornal Valor Econômico de 2/5:

“A eleição do presidente Jair Bolsonaro e a escolha de Paulo Guedes para comandar a Economia deram forte impulso aos índices de confiança de empresários e consumidores. Mas a melhora desses indicadores ainda não se traduziu em expansão de investimentos e os índices de confiança já voltaram a cair e as expectativas de crescimento a se deteriorar”

De fato, apesar de grande euforia com a equipe econômica dos “técnicos mais sábios do país”, todos os indicadores sobre aspectos reais e palpáveis da economia têm se mostrado catastróficos. De acordo com André Macedo, gerente da coordenação de Indústria do IBGE, a produção industrial no mês de março recuou 6,1% em relação ao mesmo mês do ano passado. E o que é mais grave: Não há qualquer perspectiva de recuperação. Ainda em sua avaliação, as razões para a queda da atividade industrial incluem também fatores conjunturais, como o elevado nível de desemprego, a redução das exportações para a Argentina, o rompimento da barragem de Brumadinho e, sim, a falta de confiança de investidores e famílias.h

De acordo com o economista José Luis Oureiro, atualmente a economia opera com razoável nível de capacidade ociosa. Em seus cálculos, o hiato do produto está em 4,3%, o que significa que a economia está operando 4,3% abaixo daquilo que seria capaz sem produzir pressões inflacionárias. Além de ser um sintoma de insuficiência de demanda, essa capacidade ociosa representa, de acordo com os cálculos de Oreiro, 90 bilhões a menos na arrecadação federal. Vale notar que ao tempo em que esses dados são divulgados, o secretário de Política Econômica do Ministério da Economia, Adolfo Saschida, afirma que o governo descarta qualquer medida fiscal para impulsionar a atividade econômica, pretendendo, de outro modo, ampliar o ajuste fiscal e atuar na economia “pelo lado da oferta”. De acordo com outro técnico do governo, a perda de dinamismo da economia, que se deu mesmo com a melhora nos “indicadores de confiança”, se deve às incertezas (!) em relação à “reforma” da previdência. O ministro da Economia, por sua vez, promete anos ininterruptos de crescimento econômico caso a “reforma” seja aprovada, para a estupefação de economistas comprometidos com a pesquisa séria, que se perguntam quais os dados utilizados em suas projeções.

A segurança com que Guedes apresenta projeções de crescimento condicionados à aprovação da reforma nos recomenda lembrá-lo da advertência de um autor de sua predileção. Hayek afirmava que a economia trata de fenômenos “essencialmente complexos”, de modo que os dados quantitativos levantados dão conta de apenas alguns aspectos que envolvem os fatos a serem explicados.

E aqui retorno ao primeiro ponto mencionado no início desse texto: Os elementos que balizam a formação das expectativas dos agentes são infindáveis. Como vemos pelo raciocínio tortuoso do técnico do governo, certos indicadores de “confiança” podem não nos dizer nada sobre a economia real. E como revela (ou seria confessa?) a manchete do Valor acima reproduzida, a melhora dos índices de confiança não se traduziram em expansão de investimentos. Os dados concretos demonstram capacidade ociosa na economia, com demanda desaquecida e desemprego em alta.

O que os sucessivos fracassos de previsões econômicas baseadas em expectativas parece revelar é que uma teoria econômica que se pretenda séria precisa construir parâmetros mais palpáveis para mensurar tais expectativas. Quanto a isso um retorno ao princípio de demanda efetiva de Keynes parece ser um grande avanço. Vale lembrar também que o sociólogo alemão Max Weber possuía uma teoria muito mais refinada sobre a racionalidade da ação do que aquela utilizada pelas teorias econômicas convencionais. Em sua construção teórica, uma ação orientada a valores também poderia ser dotada de racionalidade.

E aqui, para não cairmos na ingenuidade, é preciso separar as coisas. Por acaso os “economistas do mercado” estariam preocupados com o avanço do conhecimento ao fazer e divulgar suas previsões do PIB? Ouso dizer que sequer estão preocupados com o crescimento do PIB. Os sucessivos fracassos seriam motivo para lhes fazer corar de vergonha, mas, ao contrário disso, se mostram cada vez mais enfáticos em suas recomendações. Já o cenário na Argentina, por exemplo, escancara certa comicidade: A euforia e as previsões otimistas após as eleições de um candidato “do mercado” foram seguidas por continuados fracassos. Seguindo a cartilha neoliberal o país caminha a passos largos em direção ao precipício. Deu tudo errado, mas a possibilidade de mudança de governo gera pânico nos mercados!

A situação limite que se vê na Argentina tem muito a dizer sobre o Brasil atual. Os “economistas do mercado” previram que a saída do PT engendraria expectativas positivas. Previram crescimento diante das expectativas otimistas com a gestão de Paulo Guedes. Agora afirmam, sem se constranger, que a pesar das expectativas positivas, pairam incertezas por conta da reforma da previdência.

Note o leitor que aqui o termo “economista” – assim com aspas, sem ofensa – já se refere a algo completamente diferente daquele do início desse texto. Aqui estamos falando do dinheiro, em sua forma mais volátil, improdutiva e curto prazista, fazendo política.

Mas não seria isso uma obviedade que dispensaria tantas linhas?

Pode ser. Mas não é demais sempre lembrar disso ao acompanhar o debate econômico.

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Um comentario para "Quando o dinheiro assume o comando da política"

  1. josé mário ferraz disse:

    Só pode dar em desastre uma economia cuja finalidade é carrear para as mãos de um por cento da humanidade a riqueza que deveria ser utilizada pela sua totalidade. É muita ingenuidade dos arautos desta insensatez esperar que os despossuídos estarão eternamente conformados com o destino de requebrar os quadris, fazer orações e levar ferro.

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