‘Crises políticas não são justificativa para se atentar contra direitos humanos’, diz Anistia

O ano de 2017 foi marcado por enormes retrocessos, segundo a organização, que critica intervenção federal no Rio de Janeiro e manutenção de política de segurança “militarizada e falida”

Reportagem de Luiza Sansão

O ano de 2017 no Brasil foi marcado por retrocessos, pela ascensão de líderes políticos que incentivam o ódio na população, pelo aprofundamento da intolerância, da repressão do Estado às liberdades democráticas e do encarceramento em massa, além do aumento da violência letal. É o que mostra o relatório “O Estado dos Direitos Humanos no Mundo 2016/2017”, publicado pela Anistia Internacional Brasil na quinta-feira (22/02).

Fruto da experiência e da presença da organização em diferentes países, o documento é produzido anualmente a partir da análise de avanços e retrocessos no que diz respeito a diferentes temáticas: segurança pública, condições prisionais, liberdade de manifestação, conflitos por terra, liberdade religiosa, direitos dos povos indígenas, das crianças e da população LGBTI (lésbicas, gays, bissexuais, transexuais e intersexuais), entre outras.

“Entre 2017 e 2018, o mundo assistiu a crises, a uma série de iniciativas de líderes políticos incentivando o ódio, incentivando o medo. Na nossa região, das Américas e Caribe, o relatório assinala que, nesse contexto político, as discriminações, as violências, as desigualdades permaneceram e, em alguns casos, se ampliaram. No Brasil, o quadro segue, infelizmente, esse padrão de retrocesso”, afirmou a diretora executiva da Anistia Brasil, Jurema Werneck, em coletiva de imprensa realizada no lançamento do relatório.

Ponta de fuzil de policial militar em operação no Complexo do Alemão em 2017. | Foto: Bento Fábio / Coletivo Papo Reto

Ela destacou que, no Brasil, houve diversas “investidas do Congresso Nacional no sentido de cassar ou fazer retroceder direitos humanos já conquistados” e que a organização acompanhou uma série de iniciativas legislativas que representam verdadeiros retrocessos para o país.

“Quase 200 propostas diferentes de emendas constitucionais, novas leis e modificações da legislação existente ameaçavam uma série de direitos humanos. Entre essas medidas retrógradas, estavam propostas que reduziam para menos de 18 anos a idade em que crianças podem ser julgadas como adultos; alteravam ou revogavam o Estatuto do Desarmamento, facilitando o licenciamento e a compra de armas de fogo; restringiam o direito de manifestação pacífica e criminalizavam os protestos sociais; impunham a proibição absoluta do aborto, violando os direitos sexuais e reprodutivos de mulheres e meninas; mudavam o processo de demarcação de terras e a exigência do consentimento livre, prévio e informado dos povos indígenas e das comunidades quilombolas; e diminuíam a proteção aos direitos trabalhistas e o acesso à previdência social. A Lei Nº 13.491/2017, assinada pelo Presidente Temer em 13 de outubro, estabelecia que violações de direitos humanos, inclusive homicídio ou tentativa de homicídio, cometidas por militares contra civis seriam julgadas por tribunais militares. Esta lei viola o direito a um julgamento justo, uma vez que os tribunais militares no Brasil não oferecem garantia de independência judicial”, diz o relatório.

Este cenário desolador motivou, no ano passado, a criação da campanha Direitos não se liquidam (leia matéria minha sobre a campanha aqui), em que a Anistia mapeou projetos que, se aprovados, afetariam principalmente as parcelas mais vulneráveis da sociedade, conclamando os brasileiros a mobilizar-se para evitar tais retrocessos.

“Direitos devem ser garantidos. Governantes têm a obrigação de respeitar os direitos e garantir o pleno funcionamento dos mecanismos para que os direitos sejam respeitados. Crises institucional, política e econômica não são justificativa para se atentar contra os direitos humanos”, disse Werneck

O único dado animador no relatório publicado esta semana diz respeito à mobilização dos brasileiros no ano que passou, segundo a diretora da Anistia. “A sociedade se mobilizou, em diferentes áreas, de diferentes modos, e foi capaz de mandar uma mensagem ao Congresso Nacional. No campo dos direitos reprodutivos, por exemplo, diante da tramitação da PEC 181, mulheres mandaram uma forte mensagem ao Congresso Nacional, que, felizmente, foi capaz de ouvir essa mensagem e essa PEC, que retrocederia no direito ao aborto não foi aprovada. E isso ocorreu graças à força da mobilização”, celebrou.

De fato, alguns dos protestos mais acalorados que tomaram as ruas das capitais do país em 2017 foram pela descriminalização do aborto e contra a PEC 181 — como contei em matéria sobre a manifestação das mulheres no Rio de Janeiro em novembro. Em outros casos, entretanto, não vimos manifestações tão fortes — nem mesmo contra a “reforma” Trabalhista do governo Temer.

Além da diretora da Anistia Internacional Brasil, participaram da coletiva sobre o relatório a assessora de Direitos Humanos da organização, Renata Neder; a antropóloga Juliana Melo, que pesquisa o sistema prisional; a moradora do Complexo do Chapadão, conjunto de favelas na Zona Norte do Rio de Janeiro, Glaucia Santos, cujo filho, Fabrício, foi assassinado por policiais; o líder indígena Getúlio Juca, do Conselho Continental da Nação Guarani (CCNAGUA); a cearense Raimunda Dias, do grupo de mulheres mães do sistema socioeducativo do Ceará; e o advogado José Vargas Sobrinho Júnior, professor de Direito Constitucional, Direitos Humanos e Direito Eleitoral da Faculdade de Ensino Superior da Amazônia Reunida (FESAR).

Quem mais viola os direitos humanos é exatamente aquele que tem o dever constitucional de garantir os direitos de todos os cidadãos: o Estado

O Estado brasileiro, segundo a Anistia, é duplamente responsável pelo aumento da violência letal no Brasil — que registrou mais de 61 mil homicídios em 2017, o número mais alto de sua história.

“De um lado, o Estado é responsável por conta de sua omissão e por não implementar políticas públicas de redução de homicídios. De outro, é responsável porque uma porcentagem significativa dos homicídios é cometida por policiais em serviço. Ou seja, são os próprios agentes do Estado que violam diretamente o direito à vida”, criticou a assessora de Direitos Humanos da Anistia, Renata Neder.

Parte significativa do total de homicídios registrados em 2017 foi cometida por policiais em serviço. Como a maior parte dos estados, segundo Neder, não compila os homicídios praticados por policiais em serviço, esses dados são subnotificados. “Nos estados que registram dados confiáveis de mortes praticadas por policiais, vimos que esses homicídios aumentaram significativamente. Um desses estados é o Rio de Janeiro, onde mais de mil pessoas foram mortas pela polícia”, afirmou.

“Segundo estatísticas oficiais, policiais em serviço mataram 494 pessoas no estado de São Paulo até setembro, 1.035 no estado do Rio até novembro e 148 no Ceará até novembro”, diz o documento

Das 644 pessoas mortas por policiais no Rio de Janeiro em 2015, 77,2% eram negras ou pardas, de acordo com dados do Instituto de Segurança Pública (ISP).

De acordo com o relatório, “os casos de ‘homicídios múltiplos’ (evento único com mais de três vítimas) e de ‘chacinas’ (homicídios múltiplos com características de execuções) aumentaram em diversas cidades; geralmente, sem que as autoridades investigassem adequadamente”.

Gláucia dos Santos, moradora do Complexo do Chapadão, na Zona Norte do Rio, onde seu filho, Fabrício, foi morto por policiais em 1º de janeiro de 2014. | Foto: Luiza Sansão

E, se a maior parte dos homicídios do país é cometida com uso de armas de fogo, o Estado brasileiro, mais uma vez, caminhou na direção oposta à do combate a esse tipo de crime. “Vimos avançar, no ano passado, no Congresso Nacional, o debate sobre a flexibilização ou revogação do Estatuto do Desarmamento, o que obviamente somente agravaria esse quadro”, afirmou Neder.

“Em janeiro [de 2017], o Ministério da Justiça anunciou um Plano Nacional de Segurança Pública que deveria se concentrar na redução dos homicídios, no enfrentamento do tráfico de drogas e numa

revisão do sistema prisional. Entretanto, um plano detalhado e abrangente jamais foi apresentado ou implementado, e a situação da segurança pública se deteriorou durante o ano”, diz o relatório.

Também retrocedemos quando o assunto é desmilitarização. “A política de segurança seguiu o modelo já falido dos últimos anos, voltado ao confronto, focado na ‘guerra às drogas’, com uma polícia profundamente militarizada”, criticou Neder.

Além da manutenção de um modelo de segurança pública fracassado, “as Forças Armadas foram cada vez mais designadas a cumprir funções policiais e de manutenção da ordem pública” em 2017, de acordo com a Anistia. O maior exemplo disto está ocorrendo no Rio de Janeiro, que vive uma intervenção federal, decretada no dia 16 de fevereiro pelo presidente Michel Temer, que ocupa, desde 2016, o posto para o qual não foi eleito. Hoje o Exército está atuando na segurança pública do estado, um desvio de função que afeta especialmente a população das favelas, que já sofre cotidianamente os efeitos diretos da militarização da segurança pública.

“Acreditamos que é uma medida inadequada e extrema que nos preocupa terrivelmente porque coloca em grave risco os direitos humanos da população”, disse Jurema Werneck. “A presença militar não garantiu nenhuma melhora nos indicadores de violência e na preservação dos direitos. Ao contrário, vimos graves violações de direitos humanos”.

Helicóptero da Polícia Militar sobrevoa favela no Complexo do Alemão, Zona Norte do Rio de Janeiro. | Foto: Bento Fábio / Coletivo Papo Reto

Segundo Renata Neder, o decreto de Temer “é amplo, impreciso e deixa inúmeras brechas e incertezas”. “Há muitas incertezas inclusive acerca de como irão funcionar as diversas instituições do próprio estado em relação à intervenção federal, como o Ministério Público Estadual, a Assembleia Legislativa, e isso é muito preocupante. Uma medida efetiva não se faz sem um pkanejamento, sem um plano de trabalho concreto”, critica. “Outra preocupação tem a ver com a falta de transparência e falta de mecanismos de responsabilização por abusos cometidos [por agentes do Estado] e impunidade”.

Neder criticou ainda projeto de lei aprovado no ano passado, que prevê que crimes praticados por militares contra civis sejam julgados pela Justiça Militar. A aprovação do PL indica, segundo a assessora, que o Governo já tinha a intenção de realizar uma intervenção e ter “garantias de impunidade” com relação às violações praticadas. Para ela, a narrativa adotada pelo Estado, de que o Rio está em guerra, é uma forma de justificar as violências praticadas por seus agentes contra as parcelas mais vulneráveis da população.

“O ministro da Justiça afirmou que o que acontece no Rio de Janeiro é uma guerra assimétrica e que não há guerra sem mortes. Ou seja, eles estão, de antemão, dizendo que haverá mortes e que este é um dano colateral aceitável. Não aceitamos essa narrativa, não aceitamos essas mortes e, muito menos, que isso seja anunciado previamente”, criticou. Neder fez referência também à declaração do comandante do Exército, general Eduardo Villas Bôas, que disse ser necessário dar aos militares “garantia para agir sem o risco de surgir uma nova Comissão da Verdade” no futuro. “Mias uma vez, mostram claramente uma intenção de cometer graves violações de direitos humanos durante a intervenção federal, o que é uma grande preocupação para a Anistia”.

Memória

Quando o conjunto de favelas da Maré, na Zona Norte do Rio foi ocupado pelas Forças Armadas (Exército e Marinha) por um ano e três meses, substituindo os efetivos da Polícia Militar na região até junho de 2015, foram muitos os relatos de violações de direitos humanos praticadas contra moradores. Um dos casos que marcaram o período foi o do morador da favela Vila do Pinheiro, Vitor Santiago. Ele perdeu uma perna e ficou paraplégico, após ser baleado por militares em fevereiro de 2015, quando voltava com amigos de um bar onde haviam assistido a uma partida de futebol — história que contei em 2016, ao descobrir que sequer havia sido aberto um inquérito para apurar as circunstâncias do crime.

Parede de casa perfurada por tiros no Complexo do Alemão. | Foto: Bento Fábio / Coletivo Papo Reto

“Enquanto eu viver vou ser a voz do meu filho”

Moradora do complexo de favelas do Chapadão, na Zona Norte do Rio, Glaucia dos Santos teve o filho, Fabrício, morto aos 17 anos por policiais na favela na virada do ano de 2013 para 2014. “Ele foi abastecer a moto e calibrar o pneu e, saindo do posto, foi baleado na testa, com tiro de fuzil, por dois policiais militares”, disse.

Ela contou como a morte do filho transformou sua vida em luta e falou sobre as violações praticadas por agentes do Estado contra moradores de favelas e aintervenção federal na segurança pública do Rio. “Quando a gente vê eles já estão dentro da nossa casa, abrem nossa porta, roubam nossas coisas. Se a gente falar alguma coisa, nos xingam dos nomes mais absurdos que você pode imaginar. Misturam nosso sabão em pó, misturam nossa comida, além de matarem, mexerem na cena do crime e incriminarem os trabalhadores”.

 

Sistema prisional superlotado e presos em condições degradantes

Em janeiro de 2017, houve rebeliões em diversos presídios do país, com pelo menos 123 mortes. “A população carcerária era de 727.000 pessoas, das quais 55% tinham entre 18 e 29 anos e 64% eram afrodescendentes, segundo o Ministério da Justiça. Uma parcela significativa dos internos – 40% no âmbito nacional – estava detida provisoriamente, situação em que costumam permanecer por vários meses até serem julgados”, diz o relatório.

A situação do sistema prisional do Rio de Janeiro foi agravada em 2017. De acordo com a Anistia, “no estado do Rio de Janeiro, as condições prisionais desumanas foram ainda mais degradadas pela crise financeira, pondo em risco o abastecimento de comida, água e medicamentos para mais de 50.800 presos. A tuberculose e as doenças de pele atingiram proporções epidêmicas nas prisões do estado”.

Um dos maiores símbolos brasileiros da seletividade do sistema penal, o ex-catador de latas Rafael Braga, preso injustamente em 2013 e em 2016, contraiu tuberculose em Bangu II. Diferentemente de outros jovens que também contraíram a doença, ele ao menos pôde fazer o tratamento em prisão domiciliar, graças à persistência de seus advogados de defesa  – do Instituto de Defensores de Direitos Humanos (DDH). Mas a maioria passa pelo tratamento em condições inadequadas, dentro do próprio sistema onde a doença se espalha.

A antropóloga Juliana Melo, professora da Universidade do Rio Grande do Norte (UFRN) que pesquisa o sistema prisional brasileiro e acompanhou de perto o episódio do massacre na Penitenciária Estadual de Alcaçuz (RN) em janeiro de 2017. “Quando as pessoas reproduzem o discurso de que ‘é bandido matando bandido, então eles que se matem’, o Estado é quem sai ganhando. E o resultado é terrível”, disse.

“Se naquele contexto, houve assassinatos brutais de presos que o Estado permitiu, hoje o que temos é um assassinato lento e gradual, porque, passado um ano, a situação de Alcaçuz é pior do que antes. Porque, se naquele período, de acordo com dados não oficiais, havia 1200 presos separados em facções, hoje temos quase 2100 presos e as facções estão juntas e ameaçando constantemente de começar uma nova guerra”, contou Melo.

O quadro de Alcaçuz hoje, segundo Melo, é de superlotação e torturas sistemáticas, não só dos presos, com relatos inclusive de choques elétricos (método utilizado contra presos políticos no período da Ditadura Militar), mas de seus familiares, que são submetidos a revistas vexatórias. Além disso, não há mais visitas íntimas, presos estão passando fome e sede.

“Bandido bom não é bandido morto, bandido bom é bandido ressocializado, porque ele volta e o tratamento que ele recebe dentro da prisão, absolutamente desumano, vai reverberar quando ele voltar para a sociedade. Então, tratando-os como monstros, que é o que fazemos tanto nas penitenciárias quanto no sistema socioeducativo, eles serão monstros mesmo. E este é um projeto do próprio Estado, legitimado por nossas políticas, principalmente por meio da ‘guerra às drogas’ e pela sociedade, porque a gente pensa que não há relação entre quem está fora e quem está dentro da prisão”, criticou a pesquisadora.

“Foram nove vezes de tortura pra ele e também pra mim”

Com relação aos direitos das crianças, o cenário descrito pela Anistia é desolador. As unidades do sistema socioeducativo continuam superlotadas e os internos, submetidos a condições desumanas e degradantes. No caso do Ceará, há prática sistemática de tortura por agentes do Estado no interior das instituições. “No decorrer do ano, aconteceram pelo menos 20 rebeliões e 37 fugas das unidades do estado. De 200 denúncias formais de tortura de adolescentes nas unidades do sistema socioeducativo do Ceará entre 2016 e setembro de 2017, somente duas resultaram na abertura de inquérito formal pelo estado, para mais investigações. As denúncias sobre a situação caótica do sistema socioeducativo do Ceará motivaram uma visita formal do Conselho Nacional de Direitos Humanos em setembro”, diz o documento da Anistia.

A cearense Raimunda Dias, 63, avó de João Eduardo Macedo Dias, assassinado aos 18 anos em favela de Fortaleza, após nove detenções no sistema socioeducativo, em cinco anos. | Foto: Luiza Sansão

João Eduardo Macedo Dias passou quase cinco anos intermitentes no sistema socioeducativo de Fortaleza, Ceará, em nove apreensões entre seus 13 e seus 18 anos de idade, por furto de motos. “O sonho dele era ter uma moto”, conta sua avó, Raimunda Dias, que nunca teve condições de comprar uma moto para o neto. “É muito caro”.

Raimunda viu o adolescente que ela criou desde que nasceu mudar durante a internação, que o afastou da possibilidade de estudar e o submetia a maus tratos, inclusive torturas. Dois meses depois de ser libertado do sistema, João Eduardo foi assassinado na favela Picuí, onde vivia com a avó. Raimunda integra o grupo de mulheres mães do socioeducativo do Ceará e luta contra a prática de violações de direitos humanos no interior do sistema.

Outros retrocessos

Liberdade de manifestação: a polícia reprimiu protestos com violência em diversas regiões do país ao longo de 2017, usando “força desnecessária e excessiva contra manifestantes pacíficos”, de acordo com a Anistia. “No que se refere ao direito a protestos, vimos iniciativas que poderiam cassar nossos direitos de reclamar, dizer não e apresentar propostas”, disse Jurema Werneck.

Defensores de direitos humanos continuaram a ser perseguidos, ameaçados, atacados e assassinados. “O Brasil em 2017 foi também um país onde defender os direitos humanos foi uma atividade de altíssimo risco. Esteve entre os principais países onde defensores de direitos humanos tiveram sua vida ameaçada e muitos foram mortos. O Estado já conhece o problema, conhece essa realidade e, no entanto, não toma as medidas necessárias para proteger a vida dessas pessoas. A maioria desses defensores ameaçados ou mortos foram aqueles que entraram na questão das terras e dos recursos naturais. São quilombolas, indígenas, trabalhadores rurais ameaçados ou ameaçados e mortos. E enquanto o Estado brasileiro não avançar na demarcação, na titulação das terras, os conflitos e as mortes vão continuar. Está nas mãos do Estado brasileiro apresentar uma solução para essa situação o quanto antes”, cobrou a diretora da Anistia.

Nossos históricos conflitos por terra resultaram em muitas mortes no ano passado. O relatório cita alguns episódios especialmente violentos, como o de Colniza, no Mato Grosso, quando homens armados atacaram o assentamento de Taquaruçu do Norte, mataram nove homens e feriram várias pessoas, em abril, e o Massacre de Pau D’Arco, no Pará, em que dez trabalhadores rurais foram mortos a tiros em uma operação conjunta das polícias civil e militar, em maio, e pouco depois, em julho, um dos líderes do grupo de trabalhadores rurais, Rosenildo Pereira de Almeida, foi assassinado.

O líder indígena Getúlio Juca, do Conselho Continental da Nação Guarani (CCNAGUA). | Foto: Luiza Sansão

Com relação aos direitos dos povos indígenas, houve cortes no orçamento da Fundação Nacional do Índio (FUNAI), prejudicando o trabalho da instituição, segundo o relatório. Houve relatos de assassinatos de indígenas durante o ano, além de ameaças e ataques por parte de garimpeiros e madeireiros ilegais. “Estruturas institucionais e políticas nacionais foram minadas pelo governo e pelos tribunais, que atrasaram ainda mais o já demorado processo de demarcação de terras, agravando os conflitos fundiários nos territórios indígenas. Dados divulgados pelo Conselho Indigenista Missionário durante o ano revelaram que pelo menos 118 indígenas foram mortos em 2016. Em janeiro, o Ministério da Justiça emitiu um decreto alterando o processo de demarcação de terras, tornando-o ainda mais lento e vulnerável às pressões dos proprietários rurais”, diz o relatório da Anistia.

“Nós queremos respeito aos nossos direitos. O índio sempre existe, não acaba, não, porque estamos lutando”, diz o líder indígena Nhanderu Kaiowá Getúlio Jucá vive na Aldeia Jaguapiru, na Reserva de Dourados. no Mato Grosso, a mais populosa do país. Ele é membro do Conselho da Aty Guasu Guaranie Kaiowá no Mato Grosso do Sul e do Conselho Continental da Nação Guarani– CCNAGUA, que reúne lideranças Guarani de quatro países. Ao lado de outras lideranças Kaiowá e Guarani, está à frente do processo de Retomada das Terras Tradicionais Guarani e Kaiowá no Mato Grosso do Sul.

A violência contra LGBTIs aumentou em 2017. “Segundo o Grupo Gay da Bahia, 277 pessoas LGBTI foram assassinadas no Brasil entre 1º de janeiro e 20 de setembro, o maior número registrado desde que o grupo começou a compilar esses dados em 1980”, de acordo com o documento, que menciona casos como da transgênero Dandara dos Santos, espancada até a morte em Fortaleza, tendo as investigações concluído que pelo menos 12 pessoas participaram do crime.

Contrariando uma resolução do Conselho Federal de Psicologia, que confirma que “psicólogos não podem exercer qualquer atividade de ‘patologização da homossexualidade’”, em setembro do ano passado “um juiz da Vara Federal do Distrito Federal autorizou que psicólogos aplicassem práticas antiéticas e prejudiciais, conhecidas como ‘terapias de conversão’, para tentar modificar a orientação sexual das pessoas”.

No Rio de Janeiro, a 22ª Parada do Orgulho Gay reuniu milhares de pessoas na orla de Copacabana em novembro, dizendo ‘não’ aos retrocessos nos direitos da população LGBTI e passando uma importante mensagem ao prefeito e bispo da Igreja Universal do Reino de Deus (IURD) Marcelo Crivella, que cortou o apoio da Prefeitura ao evento.

A intolerância religiosa também se manifestou violentamente no ano passado. Diversos locais de culto de religiões de matriz africana, como a Umbanda e o Candomblé, foram atacados gangues criminosas e pessoas adeptas de outras religiões, que depredaram os terreiros e agrediram Mães e Pais de Santo. “Em agosto e setembro, pelo menos oito centros religiosos foram atacados e destruídos, a maioria na cidade do Rio de Janeiro e nos municípios da Baixada Fluminense, na região metropolitana do Rio”, diz o relatório.

 

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