Ucrânia, uma história inconveniente

Presença de batalhões nazistas no exército ucraniano é inaceitável, mas vale conhecer suas origens históricas. País sofreu, como tragédia, a coletivização forçada do campo, por Stálin. Parte da população simpatizou com o invasor alemão

Família ucraniana em 1933, durante a Grande Fome, também conhecida no país como Holodomor
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Nas últimas semanas, os olhares do mundo se voltaram para a invasão russa da Ucrânia, colocando o Leste europeu no centro do debate público. Pouco antes do conflito, Vladimir Putin fez uma declaração polêmica: “a Ucrânia moderna foi criada inteiramente pela Rússia, mais precisamente pelos bolcheviques, a Rússia comunista”.

Nessa perspectiva, a Ucrânia seria uma nação artificial e ingrata, pois estaria rechaçando a herança comunista, responsáveis pela existência do país. O presidente russo disse ainda que o objetivo é “desnazificar” o governo de Volodymyr Zelensky, supostamente controlado por radicais neofascistas, que estaria praticando genocídio contra os russos étnicos na região de Donbass.

Por mais que haja exagero nesse tipo de acusação – a extrema direita nunca conseguiu votação acima de 3% – o colaboracionismo ucraniano durante a ocupação nazista é conhecido há muito tempo. O que não está sendo discutido, no entanto, é a origem desse radicalismo. Para isso, é necessário resgatar um passado que muitos preferem esquecer. É preciso contar uma histórica inconveniente.

Após a Primeira Guerra Mundial, os impérios Austro-húngaro e Otomano dissolveram-se, abrindo espaço para movimentos nacionalistas formados durante o século XIX. Em 1922, a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) foi criada como uma federação de Estados independentes, englobando Rússia, Ucrânia, Bielorrússia e a Transcaucásia. A promessa era libertar as nacionalidades que se sentiam oprimidas pela autocracia czarista.

Lideranças bolcheviques – como Trotsky, Rakovsky, Mdivani, Skrypinik, Makharadze, Sultan-Galiev (todos assassinados durante o Terror stalinista) e, principalmente, Lênin – defendiam a autonomia administrativa das repúblicas em relação ao governo central. Stálin, que após a Revolução assumiu a função de Comissário das Nacionalidade, ao contrário, propunha a subordinação das nacionalidades à Rússia, posição conhecida como “unitarista” (LEWIN, 2007).

Nos anos 1920, a liderança de Lênin permitiu que a cultura ucraniana florescesse. Enquanto no período czarista a alfabetização em russo era obrigatória, a partir de 1923 as identidades nacionais passaram a ser reconhecidas. Em 1928, 76% das crianças ucranianas já estavam sendo alfabetizadas na própria língua (KEVEZ, 2006). Esse foi o motivo da queixa de Putin em relação à herança leninista.

Após a ascensão de Stálin, contudo, o quadro foi revertido rapidamente. Nas suas memórias, o ucraniano Simon Starow deixou o seguinte relato: “a nossa liderança havia sido levada embora numa noite. Os fazendeiros, analfabetos e ignorantes em sua maioria, ficaram, assim, indefesos” (DOLOT, 2021, p.36). O objetivo era ampliar o controle sobre as minorias étnicas. Para tanto, em substituição às antigas lideranças, foram criadas Comissões locais controladas diretamente pelo Partido Comunista.

Após o início do Primeiro Plano Quinquenal, a industrialização tornar-se-ia prioridade. Nesse caso, num país majoritariamente agrário, a conta deveria ser pega pelos camponeses, sobretudo na Ucrânia, região mais fértil do país. Foi para aumentar o controle sobre a produção de grãos que Stálin iniciou a Coletivização Forçada, que, na prática, representou uma declaração de guerra à população rural, que terminou com milhões de mortos e deportados (KENEZ, 2006). No fim, os camponeses foram obrigados a ingressar nas fazendas coletivas, fato que muitos consideraram o retorno da servidão.

Subjacente à ideia de “socialismo num único país” estava o projeto de russificação da União Soviética. A partir de 1938, o ensino da língua russa voltou a ser obrigatória nas escolas. “As nacionalidades que apenas uma década antes tinham adquirido línguas escritas usando o alfabeto latino eram obrigadas a mudar para o cirílico, mesmo que isso tornasse mais difícil a aprendizagem da literacia” (KENEZ, 2006, p. 166/1967). Não por acaso, até hoje, a valorização da língua ucraniana é considerada prioridade pelos partidos de extrema direita, como o Svoboda e o Setor Direito, vista como símbolo da liberdade nacional.

A “revolução cultural” de Stálin encerrou a pluralidade de ideias do período da NEP, impondo a versão oficial para quase todas as temáticas. Para legitimar o “culto à personalidade”, o governo soviético passou a destacar antigos governantes, sobretudo do período czarista, sobrepondo a história oficial à memória local.

A característica mais marcante do período stalinista foi a repressão. Entre 1932/33, as requisições governamentais, baseadas em metas irreais, provocaram uma fome que matou entre 3 e 12 milhões de pessoas. O aspecto mais cruel da Grande Fome (também conhecida como Holodomor) foi que, diferente das anteriores, o governo soviético instaurou um sistema de passaportes que impediu a migração das populações dos locais em que não havia comida, o Exército Vermelho ainda cercou essas áreas, enquanto os camponeses morriam de inanição (EVANS, 2018).

Por mais que o Holodomor não tenha sido voltado contra uma cultura específica, aproximadamente 80% das vítimas viviam na Ucrânia. (EVANS, 2018). Por isso, os ucranianos o interpretam como genocídio perpetrado pelos russos, com o objetivo de apagar identidade nacional. As feridas ainda não foram cicatrizadas.

O período stalinista promoveu ainda inúmeras limpezas étnicas, deportando dezenas de nacionalidades para regiões da Ásia Central e da Sibéria, como os chechenos e os tártaros da Crimeia. Atualmente, os historiadores têm demonstrado que o período do Terror foi, na verdade, ondas de repressão contra grupos específicos. Além dos Kulaks e das lideranças Bolcheviques, considerados elementos “antissoviéticos”, houve operações contra as “nacionalidades”, vistas como focos de espionagem em potencial (KHLEVNIUK, 2015).

O ressentimento provocado pelas medidas autoritárias ficou patente durante a Segunda Guerra Mundial. Em setembro de 1941, quando Hitler assumiu o controle da Ucrânia, parte da população passou a colaborar com os invasores, pois viam os nazistas como libertadores. Segundo o historiador Timothy Snyder, “a guerra fora a única esperança dos ucranianos terem alguma ajuda para se livrarem do domínio soviético” (SNYDER, p. 252, 2008).

Um dessas colaboracionistas foi o líder nacionalista Stepan Bandera. No início, Bandera jurou lealdade aos nazistas, mas, quando percebeu que a independência não seria facilitada pelos invasores, voltou-se contra os alemães. Atualmente, Bandera tem sido apresentado tanto como símbolo da autonomia nacional quanto como prova da inclinação dos ucranianos às ideologias extremistas. “Há um segmento da população ucraniana que relembra aquelas tentativas de alcançar a independência ucraniana sob (Joseph) Stalin, aliando-se a Hitler, não como uma colaboração com o nazifascismo, mas como a atuação de patriotas ucranianos e heróis nacionais” (TAYLOR apud BBC Brasil, 2022).  

Com o fim da Segunda Guerra Mundial, a estabilidade foi mantida pelo Estado soviético, fortalecido pelo impressionante crescimento econômico das décadas de 1950 e 1960. A estagnação dos países socialistas, sobretudo nos anos 1980, abriu espaço para o ressurgimento dos movimentos nacionalistas no Leste europeu.

Em outubro de 1990, um grupo de estudantes se reuniu na Praça da Revolução, renomada Praça da Independência (Maidan), reivindicando direitos políticos. A Revolução de Granito, como ficou conhecida, deu início a um conjunto de manifestações que culminaram com a independência do país no ano seguinte, selando definitivamente o destino da URSS. Quando declarou guerra, Putin lembrou que, quando a Ucrânia foi “criada” por Lênin, “ninguém perguntou às pessoas que viviam lá o que pensavam disso”. Pois bem, em 1991, essa pergunta foi feita e cerca de 90% da população referendou a separação definitiva entre as duas nações.

Após a dissolução da URSS, o nacionalismo ucraniano foi ressignificado (GONTIJO, 2020). A Independência foi vista como ruptura dos vínculos históricos com a Rússia, que incluía tanto o regime czarista quanto o período bolchevique, reanimando ressentimentos que muitos consideravam superados. Em 1991, por exemplo, o Museu Histórico da República Socialista passou a se chamar de Museu Nacional de História da Ucrânia e a privilegiar manifestações que simbolizam as particularidades locais e o passado de opressão, como a cultura Cucuteni e o Holodomor.

Até 2014, a estabilidade foi mantida por meio da alternância entre governos mais próximos e mais afastados de Moscou. O equilíbrio, contudo, mostrar-se-ia frágil. A partir de 2008, a crise econômica aumentou a pressão para o Ucrânia entrar na União Europeia, medida que tiraria definitivamente o país da esfera de influência do Kremlin. Em função disso, o presidente Victor Yankovich, aliado de Putin, recuou, dando início a uma série de protestos conhecidos como Euromaidan.

Algumas medidas anteriores de Yankovich, inclusive, como a lei sobre as línguas regionais, que colocou o idioma russo como segunda língua oficial, já haviam sido alvo do clamor nacionalista. Mas foi em 2014, com a repressão das manifestações e a ocupação russa da Crimeia, que o país entrou em ebulição, abrindo caminho para o crescimento dos movimentos extremistas.

Em suma, o patriotismo ucraniano resultou do choque entre duas forças antagônicas: a autonomia dos anos 20 e a centralização do período stalinista. Em função disso, o sentimento nacional costuma ser fortalecido nas crises que envolvem a Rússia. Ao longo da história, os movimentos fascistas emergiram como consequência de dois fatores: guerra e humilhação, justamente o que está sendo imposto nesse momento ao povo ucraniano. A tendência, portanto, é que essa suposta desnazificação fortaleça o radicalismo, não o contrário. Antes que o extremismo possa ser de fato combatido, o passado precisa ser conhecido, mesmo que para isso seja preciso contar uma história inconveniente.


Referências:

BBC Brasil. SOL negro: o que é o símbolo associado ao nazismo usado por militar ucraniano em foto viral da guerra. BBC News Brasil, [S. l.], p. 1, 7 mar. 2022. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/internacional-60646562. Acesso em: 10 mar. 2022.

DOLOT, Miron. Holodomor: o holocausto esquecido. 1ª ed. São Paulo: Vide Editorial, 2021.

EVANS, Richard. Terceiro Reich na memória e na história. 1º. ed. São Paulo: Planeta do Brasil, 2018.

GONTIJO, Fabiano. Nação, simbolismo e revolução na Ucrânia: experiência etnográfica tensa na/da linearidade. Revista Antropológica da USP, São Paulo, v. 63, n. 3, 17 dez. 2020. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/ra/article/view/178853. Acesso em: 10 mar. 2022.

LEWIN, Moshe. O Século soviético. 1º ed. Rio de Janeiro: Record. 2007

KENEZ, Peter. História da União Soviética. 1º. ed. Lisboa: Almedina, 2005.

KHLEVNIUK, Oleg. Stálin: nova biografia de um ditador. 1º. ed. São Paulo: Amarilys, 2015.

SNYDER, Timothy. O príncipe vermelho: as vidas secretas de Wilhelm von Habsburgo: de líder nacionalista ucraniano a espião na União Soviética. 1º ed. Rio de Janeiro: Record, 2012.

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4 comentários para "Ucrânia, uma história inconveniente"

  1. Alexandre disse:

    Eu sou um tanto cético com relação à essa tese do Holomodor. Claro, a coletivização teve consequências. A fome que matou milhões foi a principal delas. Mas é questionável se isso pode ser interpretado como um genocídio promovido pelo governo soviético. Geralmente quem defende essa tese está com o pé mais fincado em uma agenda anticomunista. Entre 3 e 12 milhões de pessoas parece ser uma margem de erro muito ampla para atestar veracidade. E mesmo a proporção de 80% de ucranianos é um dado questionável, embora seja incontestável que os ucranianos foram muito assolados pelas politicas de coletivização, dada a forte vocação agrícola da região, na época.

    No mais eu gostei bastante do artigo, porque essa nuance entre o surgimento recente da direita fascista e o papel da Rússia nesse processo tem sido muito mal interpretado na guerra atual. Por mais que o Pútin de fato seja inimigo desses grupos (por questões estratégicas, não ideológicas, já que é tão conservador quanto eles), a materialidade da guerra, por si só, joga toda a população para o lado deles, alimentando ainda mais o já existente sentimento antirusso e pró-ocidente. Parece que mesmo que a Ucrânia se renda e aceite não entrar na OTAN, nos termos internos da luta de classes ucraniana os grupos conservadores se fortalecerão.

  2. Celio de Jesus Ribeiro disse:

    Texto baseado em fontes anti soviéticas. E ainda batendo na tecla do Holodomor, uma farsa criada por nazistas e simpatizantes, incluindo Randolph Hearst. Fico negativamente surpreso em ver texto deste tipo em OUTRASPALAVRAS.

  3. Nicholas Davies disse:

    Estranho que o autor não mencione o que foi a “revolução colorida de 2014” e o envolvimento dos EUA e da extrema direita. Estranho que dá a entender que o país entrou em ebulição (eufemismo para golpe) depois da ocupação russa da Crimeia, que só aconteceu depois da dita “revolução colorida”. Se o autor pretende algum grau de isenção, pelo menos use as informações corretas.

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