Milton Santos e a avenida da memória

Após mobilização popular, importante via de Salvador é, enfim, rebatizada com nome do grande geógrafo baiano, perseguido pela ditadura. O que vitória ensina sobre o resgate da história em tempo de encobrimento das violências de ontem e hoje

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Quando a Universidade Federal da Bahia decidiu compor, no ano de 2013, sua própria Comissão da Verdade, encarregada de analisar os casos de violações aos direitos humanos ocorridos em seu âmbito, durante os anos da ditadura civil-militar, o nome de Milton Santos foi o escolhido para intitulá-la. A escolha do Conselho Universitário da UFBA vinha do fato de Santos ter sido um dos membros da sua comunidade acadêmica perseguido pelo regime autoritário inaugurado em 1964, e de tê-lo sido no pleno exercício de suas funções de professor1. Obrigado a partir para o exílio, Santos precisou se exonerar da Universidade em 1968. De fato, a relação desta instituição com seu filho ilustre foi marcada por capítulos diversos, alguns muito honrosos, porém alguns descaminhos.

Formado em Direito pela Universidade, Milton Santos seguiu, no entanto, o caminho da docência em Geografia, influenciado por professores marcantes do seu ensino secundário, e também pela obra seminal de Josué de Castro, médico e geógrafo pernambucano ao qual sempre declarou filiação intelectual. Durante alguns anos, Santos atuou como professor de Geografia na cidade de Ilhéus, interior da Bahia, tendo retornado a Salvador nos idos de 1954. Na capital, firmou uma atuação destacada como jornalista e passou a atuar no nível superior de Ensino, inicialmente na Universidade Católica, e posteriormente na Universidade da Bahia2.

Em 1959, Santos passou a integrar o quadro de funcionários da Universidade no cargo de Assistente de Ensino, para fundar o Laboratório de Geomorfologia e Estudos Regionais, a convite do então reitor Edgard Santos. Era, no entanto, um contrato temporário. Seu ingresso como professor efetivo concursado dar-se-ia somente após uma batalha judicial que percorreu os anos de 1954 a 1960, quando foi representado pelo seu então advogado e político baiano Nelson Carneiro. A universidade inicialmente rejeitou sua inscrição no concurso para Docente Livre, alegando que o candidato não tinha formação específica na área pretendida (Geografia Humana). Porém este era o caso de muitos dos professores ali lotados, numa época em que várias destas formações em Humanidades eram escassas ou inexistentes no país. Milton Santos foi à imprensa e à Justiça questionar a decisão, amparado no regimento da própria Faculdade de Filosofia. Conseguiu sua efetivação em 1961, quando tomou posse como professor catedrático. A esta altura, já possuía o doutorado em Geografia pela Universidade de Estrasburgo, França3.

Com o golpe de Estado de 1964, Milton Santos foi preso por razões políticas. Ocupava àquela altura, além da cadeira de docente da universidade, outros postos importantes. Era editorialista do jornal A Tarde, o mais importante veículo de comunicação baiano à época, e exercia ainda o expressivo cargo de presidente da Comissão de Planejamento Econômico da Bahia, cargo que equivalia a de um secretário de Estado. Conectado à atmosfera de reformas defendidas no âmbito federal pelo então presidente João Goulart, representava na Bahia as intenções do governo estadual em propor estudos técnicos e reformas estruturais para o Estado. Intelectual público interessado pela dinâmica do Planejamento, era o principal interlocutor do então governador Lomanto Júnior na seara das reformas. Todos estes percursos foram abruptamente interrompidos, interditados pela eclosão do regime ditatorial4.

Como muitos outros de sua geração, Milton Santos foi acusado de envolvimento com “subversivos” pelo regime de exceção instalado em 1964. Encarcerado durante cerca de cem dias numa cela do 19º Batalhão de Caçadores, no bairro do Cabula da capital baiana, adoeceu na prisão, e conseguiu sua soltura somente após negociações do governo francês, e possivelmente de outras autoridades baianas. Durante treze anos, Milton Santos viveria seu exílio, de afastamento forçado de sua terra, porém de consolidação do seu prestígio internacional como geógrafo e intérprete das contradições do mundo. Somente em 1994, trinta anos após o golpe de Estado, o professor foi reincorporado à UFBA, por uma iniciativa do Departamento de Geografia, e com o apoio do reitor Luiz Felippe Serpa.

Essa digressão histórico-biográfica toma essas vielas da memória pra desembocar na assinatura da lei que nomeia de “Avenida Milton Santos” uma importante rua da cidade do Salvador. Trata-se da avenida que margeia o principal campus da UFBA, e que antes era intitulada de “Avenida Adhemar de Barros” (homenagem controversa ao ex-governador de São Paulo). O pleito já tinha mais de dez anos, e a discussão foi reacendida recentemente por uma nova proposta à Câmara feita pelo vereador Augusto Vasconcelos (PCdoB). Contando com o fomento ativo das redes sociais, em especial do perfil @avmiltonsantos, o pedido foi ganhando força com uma petição pública virtual que chegou a recolher mais de cinco mil assinaturas. O próprio reitor da Universidade, João Carlos Salles, engajou-se na campanha. Aprovado pela Câmara Municipal de Vereadores, a lei foi sancionada pelo prefeito Bruno Reis no último dia 21 de fevereiro. A placa com o nome do intelectual, aliás, já foi alocada em diversos pontos da via, que passa por uma etapa final de requalificação, e que será oficialmente inaugurada em breve.

No debate público, a memória foi acionada ao longo da tramitação. Perguntas de fundo foram enfrentadas. No reencontro tardio com sua memória, parte dos citadinos foi conhecendo um pouco mais da biografia deste homem negro baiano, um dos maiores intelectuais do mundo. Nas pesquisas e intervenções feitas em nome da campanha, a Avenida Milton Santos foi se pavimentando (simbólico e materialmente). E o debate público, por sinal tão caro na trajetória deste intelectual, foi cumprindo seu papel.

Entre as demandas de memória que emergem da superação de um passado ditatorial, está o soerguimento de símbolos partilhados que recuperem as trajetórias atravessadas pelo fluxo repressivo, a larga disponibilização dos vestígios materiais e imateriais produzidos naqueles tempos, além da institucionalização de uma memória que aponte para as marcas da repressão. Evidentemente, a razão da escolha do nome de Milton Santos para a avenida vem da sua grandiosidade e alcance intelectual, e em torno disso girou a justificativa do projeto submetido. Mas também assume particular importância o fato de fazer emergir a trajetória de alguém cuja interdição autoritária pela ditadura tentou apagar sua influência. É o papel da memória coletiva se impondo, ainda que em fluxos e refluxos, e mediante disputas acirradas.

É a memória que compartilhamos no espaço público que constitui a identidade da nossa morada. A escolha do nome de Milton Santos para identificar a importante avenida é um capítulo honroso do reencontro da cidade com fragmentos de sua memória, além de estimular sua Universidade mais antiga a se reconectar com seus pressupostos mais essenciais. Afinal, uma Universidade como repositório de experiências compartilhadas, é também um espaço de memória. Em tempos de negacionismos, de apagamentos sobre a natureza da ditadura civil-militar que vitimou e perseguiu uma geração de intelectuais progressistas, a placa com o nome do notável baiano na avenida que abriga os portões da UFBA é a insurgência justa da memória e da verdade. Não é só uma placa, é um gesto e um discurso. Uma vitória política.

Ademais, vale ressaltar que é possível ir além. Para as instâncias de poder público (e da sociedade civil organizada), abre-se a oportunidade de tornar esta via um lugar de memória, que adense a relação do nome impresso com a história que a justifica, com a trajetória do baiano notável que a intitula. É preciso dá-la a ler numa dimensão que extrapole as letras impressas, mas que oferte um rosto, uma trajetória, e uma maneira de compreender o mundo inspirada no intelectual ali homenageado. Neste sentido, outras demarcações físicas na avenida poderiam ser introduzidas como uma experiência de ativação da trajetória do geógrafo, de suas ideias e de seu legado. Uma exposição permanente, um memorial, instalações físicas que acionem e mobilizem a memória, podem ser recursos estratégicos a serem instalados nesta região universitária da capital baiana.

O fato é que um passo importante foi dado. Em tempos de violências políticas diversas, a vitória desta campanha faz recordar a importância do diálogo como motor da sociabilidade política. A escolha do nome de um intelectual negro para intitulá-la é também uma reclamação pública da que é preciso rediscutir os símbolos de colonialidade que demarcam nossa história. Nenhum ato de memória é inocente. Ou entramos nestas disputas, ou consentimos com as barbáries.

Placa da Avenida Milton Santos, na cidade de Salvador (Foto do autor).

1 A criação da Comissão Milton Santos de Memória e Verdade da UFBA deu-se na gestão da Reitora Dora Leal Rosa, e desenvolveu seus trabalhos no período de outubro de 2013 a agosto de 2014. Ver Golpe civil-militar de 1964 na UFBA: Rompendo o silêncio do Estado e reduzindo o espaço de negação. Relatório Final da Comissão Milton Santos de Memória e Verdade. Salvador, UFBA, 2014.

2 Desde 1965, chamada Universidade Federal da Bahia.

3 As informações coletadas sobre a trajetória de Santos na UFBA foram obtidas a partir de documentos da própria Universidade (CAD/UFBA), e também no arquivo pessoal do intelectual, abrigado no Instituto de Estudos Brasileiros, da Universidade de São Paulo (IEB – USP).

4 Para uma reconstituição biográfica de Milton Santos, ver Fernando Conceição. Milton Santos, uma biografia. 2015. Para uma incursão historiográfica, em forma de artigo, sobre o impacto do golpe de 1964 na trajetória de Milton Santos, ver Thiago Machado de Lima. Um intelectual na mira da repressão: Milton Santos e o golpe de 1964. Revista de História (USP), 2018.

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