Jung e a falibilidade humana

Uma polêmica tomou as redes: teria o analista suíço flertado com o nazismo? Analisar os erros de um grande pensador deveria servir não para condená-lo, mas para compreender sua humanidade, sobretudo em tempos obscuros – como, aliás, é o que vivemos

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Por Eduardo Guimarães

Título original: O caso Christian Dunker x Heráclito Pinheiro: um título irônico

Quase na metade do mês de abril, o psicanalista Christian Dunker postou um vídeo em seu canal Falando nisso que deu o que falar. Com o título “Jung e o Nacional Socialismo”, o vídeo aproveitou uma pergunta a respeito das relações entre Sigmund Freud e Carl Jung para propor uma discussão entre autor e sua obra com base em uma controvérsia a respeito de alguns eventos da vida de Jung no início da década de 1930. Essa controvérsia se baseia em uma participação institucional bastante pontual e em algumas declarações mais ou menos isoladas e diz respeito a uma suposta aproximação de Jung com o nazismo.

As reações negativas ao vídeo foram intensas. Centenas de internautas ficaram indignados, principalmente, com as supostas alusões tendenciosas de Dunker, que confirmariam a ligação de Jung com o nazismo, e com a utilização de uma bibliografia questionável. O auge dessas reações foi um React do historiador Heráclito Pinheiro com o título “Vídeo de Dunker sobre Jung”. A proposta desse React foi desmentir quaisquer possíveis insinuações que o psicanalista houvera feito em seu vídeo sobre a associação entre Jung e o nazismo.

Diante das inúmeras e intensas reações negativas, Christian postou um outro vídeo, intitulado “Resposta Jung e o Nacional Socialismo”, no qual pretendeu esclarecer seu ponto de vista e a proposta de seu vídeo anterior. Quem tiver interesse em se aprofundar nesse debate, sugiro assistir aos três vídeos, que se encontram disponíveis nos canais do YouTube dos respectivos pesquisadores. Como vou aproveitar esse debate para tratar de uma questão bastante atual e que merece consideração, vocês vão notar que alguns dos pontos expostos aqui neste artigo já foram abordados por Christian e por Heráclito.

Afinal, Jung era nazista? Não, não era. Não é verdadeiro afirmar que Jung era nazista. Não somente Jung jamais foi afiliado ao partido nazista, como também vale lembrar sua importante participação como espião dos aliados durante a Segunda Guerra. No entanto, essa participação não foi suficiente para impedir que Jung fosse acusado de ser nazista ou pelo menos de nutrir alguma simpatia pelo nazismo. Por esse motivo, talvez seja necessário darmos um passo atrás e abandonarmos a pergunta “Jung era nazista?” para a pergunta “por que se pergunta se Jung era nazista?”. Trata-se, em certa medida, de traçarmos a genealogia dessa pergunta, de entender o que fez com que essa pergunta se tornasse uma pergunta.

Dois argumentos têm sido especialmente lembrados para abordar essa suposta relação de Jung com o nazismo: um institucional e outro teórico. Em primeiro lugar, o argumento institucional. Em 1930, Carl Jung se tornou vice-presidente da Sociedade Médica Geral de Psicoterapia, uma associação alemã que abrangia diferentes correntes psicoterapêuticas e congregava não somente profissionais alemães, mas também colegas de outros países europeus. Em 1933, por conta da ascensão política do nazismo, o presidente da Sociedade Médica Geral de Psicoterapia, Ernst Kretschmer, renunciou ao cargo, levando Jung a assumir a recém-criada seção internacional dessa associação, que ficou conhecida como Sociedade Médica Geral Internacional de Psicoterapia. A direção da seção alemã foi assumida por Mathias Göring, reconhecidamente nazista.

Em segundo lugar, o argumento teórico. Em junho de 1933, Jung deu um seminário em Berlim (uma visão geral sobre sua Psicologia Analítica). Um dia antes do seminário, em entrevista à rádio com Adolf Weizsacker, Jung citou uma afirmação de Hitler sobre liderança, acrescentando que o líder deve ser capaz de olhar nos próprios olhos. Em 1933-1934, Jung publicou um prefácio e um artigo (A situação atual da psicoterapia), em que estabelecia a distinção entre uma psicologia judaica e uma psicologia ariana.

Esses dois argumentos não esgotam a polêmica, mas eu os apresento aqui apenas para apresentar o estado de coisas. O primeiro argumento é utilizado para condenar Jung por sua participação em uma associação que estivera de alguma forma vinculada ao regime nazista alemão. Evidentemente, a decisão de assumir a presidência da Sociedade Médica Geral Internacional de Psicoterapia não tornou Jung um nazista, mas há que se admitir que essa decisão foi arriscada. Se levarmos em consideração o momento histórico em que se encontrava a Alemanha, a decisão de Jung podia ser interpretada tanto como um esforço para salvar as diversas correntes psicoterapêuticas da influência nazista quanto como uma posição de neutralidade diante do nazismo. Ainda que Jung tivesse boas intenções, sabemos – bem, pelo menos, todo psicanalista e historiador deveria saber – que o sentido das ações humanas não é determinado de uma vez por todas por suas intenções declaradas.

Já o segundo argumento é utilizado para acusar Jung de antissemitismo. Hoje, quase cem anos depois daquele momento, pode-se fazer uma interpretação mais distanciada do prefácio e do artigo publicados entre 1933 e 1934, mas acreditar que não haveria mal nenhum em estabelecer a distinção entre alemães e judeus com base em sua psicologia logo depois da ascensão de Hitler ao poder foi, no mínimo, um ponto de vista profundamente ingênuo e pouco antenado com a realidade política europeia. Vale dizer que o próprio Jung reconsiderou suas declarações desse período após o fim da Segunda Guerra.

Hoje, existe um consenso a respeito do nazismo: todas as nações ditas democráticas o repudiam – pelo menos publicamente. Esse repúdio, no entanto, se tornou um consenso somente depois do fim da Segunda Guerra e da massiva divulgação dos terrores nazistas. Vale lembrar que as potências ocidentais demoraram muito para assumir uma posição declaradamente contrária à Alemanha nazista. Vale lembrar, também, que o próprio Freud nutria esperanças de que a ideologia nazista jamais alcançaria a Áustria, permitindo que pudesse permanecer e morrer em sua terra. Somente depois de uma admoestação de Ernest Jones e da convocação de seus dois filhos para um interrogatório nazista que Freud percebeu haver chegado o momento de partir da Áustria para a Inglaterra. Ou seja: mesmo depois da ascensão de Hitler na Alemanha em 1933, não se sabia exatamente o que ocorreria, nem na Alemanha nem no resto do mundo. E é nesse contexto que devemos compreender Jung.

Podemos dizer que o nazismo em 1933 era um nazismo antes do nazismo, ou seja, antes de o entendermos em todo seu alcance. Em períodos de crise da humanidade, não há nenhuma certeza sobre o momento em que se deve estabelecer alianças, em que se deve recuar, em que se deve quebrar os pactos e em que se deve lutar. São períodos em que as cartilhas e morais bem estabelecidas tornam-se inúteis para fundamentar grandes interpretações e decisões relevantes. Cada palavra e cada gesto são subestimados ou superestimados por conta de uma enorme dificuldade – por que não dizer resistência – das próprias pessoas em reconhecer nesses grandes homens, não o heroísmo, e sim sua humanidade. As decisões e os pensamentos de Jung em 1933 e 1934 serão mais bem aproveitados se forem utilizados, não para inocentá-lo ou condená-lo, e sim para nos lembrar das decisões sem garantia, principalmente em momentos de crise, como o momento em que por ora nos encontramos.

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