Quando os ditadores despencaram da parede

Memória do presidente Nestor Kirchner, numa Argentina que ensaia ser rebelde de novo. O gesto inesperado que antecedeu a prisão dos torturadores. Em um mês outra tirania, a de Macri, pode cair. Apoio de Bolsonaro ajuda a afundá-la

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“Proceda”. Ao proferir esta ordem em 24 de março de 2004, aniversário do golpe de Estado na Argentina, o então presidente Nestor Kirchner consumou um dos atos mais simbólicos na luta pelo direito a verdade, memória e justiça na América Latina: a retirada dos quadros dos ditadores Rafael Videla e Reynaldo Bignone da Escola Militar de El Palomar. (Assista a cerimônia)

A história começa em 1976, com o golpe militar autodenominado Proceso de Reorganización Nacional (PRN), que inauguraria uma das ditaduras mais sanguinárias do continente, responsável pela morte e desaparecimento de, segundo estimativas, 30.000 argentinos (destes, 500 eram crianças). O regime, que perduraria até 1983, foi marcado pela utilização da “Guerra Suja”, método empregado pelos franceses na ocupação da Argélia, caracterizado pelo combate aos opositores através de assassinatos, tortura e sequestro de crianças. Foram criados 364 campos de concentração e centros clandestinos de detenção e extermínio.

Já no final do regime, o último ditador militar, Reynaldo Bignone, elaborou uma lei de autoanistia para os crimes cometidos no período. Posteriormente, o presidente Raul Afonsín (1983-1989) revoga essa anistia e estabelece a Comissão Nacional sobre o Desparecimento de pessoas. Em 1986/87, Raul cede às pressões de setores militares e promulga a Lei de Ponto final e Obediência devida (leis do perdão), interrompendo os processos judiciais.

Em 2003, Kirchner assume o poder e recebe as mães da Praça de Maio na Casa Rosada. Iniciava-se uma nova era para os direitos humanos no país. Em 2004, cria o Museu da Memória, cujas instalações estão localizadas na Escola de Mecânica da Armada (Esma), um dos principais centros de detenção da ditadura.  No ano de 2005 o Supremo Tribunal de Justiça declara inconstitucionais as leis do perdão. A partir daí, até 2018 foram 1.000 julgamentos e 700 condenações, dentre elas a de Bignone e Videla que, condenados à prisão perpétua, faleceram na prisão. A Argentina é considerada por especialistas internacionais como modelo de justiça de transição.

Nestor faz parte de uma geração que perdeu muitos dos seus melhores quadros na luta contra a ditadura. Vale a pena relembrar algumas de suas palavras:

Discurso inauguração Centro de Memória na Esma

Las casas hay que llamarlas por su nombre y acá si ustedes me permiten, ya no como compañero y hermando de tantos compañeros y hermanos que compartimos aquel tiempo, sino como Presidente de la Nación Argentina vengo a pedir perdón de parte del Estado nacional por la vergüenza de haber callado durante 20 años de democracia por tantas atrocidades”
[Temos que chamar as casas por seus nomes e aqui, se vocês me permitem, já não como companheiro e irmão de tantos companheiros e irmãos que compartilharam aquele tempo, mas como Presidente da Nação Argentina, venho pedir perdão por parte do Estado nacional pela vergonha de haver se calado, durante 20 anos de democracia, diante de tantas atrocidades”

Na ocasião em que baixou os quadros.

“Señores integrantes del Colegio Militar de la Nación y de las Fuerzas Armadas, señores generales y oficiales superiores: nunca más, nunca más tiene que volver a subvertirse el orden institucional en la Argentina. Es el pueblo argentino por el voto y la decisión del mismo, quien decide el destino de la Argentina; definitivamente terminar con las mentes iluminadas y los salvadores mesiánicos que sólo traen dolor y sangre a los argentinos”.
“Senhores integrantes do Colégio Militar da Nação e das Forças Armadas, senhores generais e oficiais superiores: nunca mais, nunca mais hão de voltar a subverter a ordem institucional na Argentina. É o povo argentino pelo voto e a decisão do mesmo, quem decide o destino da Argentina; definitivamente acabará com as mentes iluminadas e os salvadores messiânicos que só trazem dor e sangue aos argentino”.  

Cerimônia de aniversário do Exército argentino, em 2006.

“Como presidente de la Nación no tengo miedo ni les tengo miedo (…) Queremos al Ejército de San Martín, Belgrano, Savio y Mosconi, y no de aquellos que asesinaron a sus propios hermanos, que fueron el ejército de Videla, Galtieri, Viola y Bignone
“Como presidente da Nação não tenho medo nem tenho lhe tenho medo (…) Queremos ao Exército de San Martín, Belgrano, Savio e Mosconi, e não daqueles que assassinaram a seus próprios irmãos, que formaram o exército de Videla, Galtieri, Viola e Bignone”.

***

A sociedade argentina, ciente de seu passado, não deseja a volta do Terrorismo de Estado. O apoio de Jair Bolsonaro a Macri acabou gerando tanto repúdio que beneficiou a chapa adversária, formada por Alberto Fernandez e Cristina Kirchner.

Relembrar esse ato simbólico, cantado até hoje pela juventude peronista (La Campora), é um alento e um exemplo para a luta contra a barbárie e retrocesso que travamos no Brasil de hoje.

Assista ao vídeo de La Cámpora, organização da juventude kirchnerista.

Ya de bebé
En mi casa había una foto de Perón en la cocina
Y ahora de grande
Unidos y Organizados junto a Néstor y Cristina
Yo voy a seguir
La doctrina peronista porque yo no tengo dudas
Yo voy a seguir
La bandera de Evita
De la cuna hasta la tumba
Peroncho siempre, nunca me voy a olvidar
Cuando bajaste los cuadros
Todo empezó a cambiar
Dijimos no al ALCA, también al FMI
A todos los gorilas y al monopolio Clarín

[Desde bebe
Na minha casa havia uma foto de Perón na cozinha
E agora adulto
Unidos e Organizados com Néstor e Cristina
Eu vou seguir
A doutrina peronista por não tenho dúvidas
Eu vou seguir
A bandeira de Evita
Do berço até a sepultura
“Peroncho” sempre, nunca vou me esquecer
Quando baixaste os quadros
Tudo começou a mudar
Dissemos não a ALCA, também ao FMI
A todos os gorilas e ao monopólio Clarín]

Nota

Três dias antes da cerimônia na escola militar, o quadro original de Videla foi roubado para evitar que fosse baixado. Quando soube do roubo, Nestor ordenou a reposição do quadro, e manteve a solenidade.

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2 comentários para "Quando os ditadores despencaram da parede"

  1. Dan disse:

    Por ter faltado um Nestor Kirchner no Brasil, o espirito perverso dos que por aqui torturaram, perseguiram, censuraram e assassinaram inda assombra nossos caminhos. Ate quando?

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