Resistência negra e as páginas rasgadas da ditadura

Lideranças perseguidas e assassinadas. Escolas de samba e bailes soul monitorados. Pesquisas e debates sufocados. Militares agiram para vender ao mundo a falaciosa “democracia racial” — uma história que, agora, começa a ser contada

Movimento Contra a Discriminação Racial, nas escadarias do Teatro Municipal, em São Paulo, no ano de 1978
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Por Flavia Rios, no Boletim Lua Nova

No carnaval passado, a Estação Primeira da Mangueira abalou a Sapucaí com o samba-enredo Histórias para ninar gente grande em que dizia cantar “A história que a História não conta”, seguindo uma tradição importante do samba brasileiro de crítica social e de transmissão de memória coletiva. Da mesma forma, faz quarenta anos que se conta na tradição oral das rodas de samba paulistas que a composição de Geraldo Filme, Silêncio no Bixiga, fora entoada no enterro de Pato N´água, exímio sambista, que teria sido assassinado pelos esquadrões da morte, na então “cidade da garoa”, nos tempos mais sombrios da ditadura militar.

Geraldo Filme, talvez já ciente dos apagamentos intencionais ou não da história, e frente ao contexto de forte repressão militar, deixou registrado na memória afetiva e intelectual afro-brasileira e popular o samba que até hoje faz parte das boas rodas de São Paulo. A homenagem que fez ao “sambista de rua” ficou conhecida também, em algumas versões, como um registro sensível da experiência negra durante os anos de chumbo.

(…) Escolas
Eu peço silêncio de um minuto
O Bixiga está de luto
O apito de Pato N’água emudeceu
Partiu
Não tem placa de bronze
Não fica na história
Sambista de rua morre sem glória (…) (FILME, 1969)

O icônico samba ainda é um guardião das memórias até hoje não reveladas da última ditadura, já que nenhum livro de História que circula nas salas de aula das  escolas brasileiras, públicas ou privadas, discute o impacto da ditadura militar sobre a população negra e suas expressões culturais e políticas. De fato, a historiografia nacional e a produção acadêmica especializada no assunto, no Brasil e fora dele, construíram uma narrativa sobre o período que deixou à margem segmentos sociais expressivos do povo brasileiro. A Comissão Nacional da Verdade, um marco para o escrutínio da memória do nosso passado recente e que trouxe grandes contribuições para o enfrentamento dos tabus do regime autoritário vigente entre 1964 e1985, reproduziu o racismo estrutural ao silenciar-se sobre a temática racial e sobre as formas de resistência negras durante o período. Essa lacuna tem efeitos perversos pelos menos em dois aspectos: 1) na invisibilidade ou no apagamento da presença negra nas lutas (armadas) e outras formas de resistência ao regime militar; e 2) nos desdobramentos dos efeitos da ditadura – sejam em termos de um pensamento autoritário ou em formas e técnicas de repressão – sobre a população negra e periférica durante e após o período autoritário. Não à toa, quando jornalistas e jovens investigadores se deparam com documentos oficias sobre a questão racial ou com casos no contexto democrático que se assemelham ao período do regime militar (a exemplo de prisões ilegais e arbitrárias, da tortura, dos assassinatos ou dos desaparecimentos forçados de pessoas negras e periféricas sob o poder das autoridades policiais) não sabem ao certo a quem recorrer para dar maior inteligibilidade à “caixa preta” do período autoritário e seus efeitos deletérios no período democrático.

Afinal, como a ditadura militar impactou a vida dos negros brasileiros?

O estabelecimento do regime militar teve múltiplos impactos sobre a questão racial no Brasil. Censura, controle de informação, guerra ideológica, vigilância, exílios, cassações, perseguições, prisões, remoções em favelas, tortura, assassinatos, omissões no enfrentamento aos grupos de extermínio, de justiçamento e de esquadrões da morte, desaparecimentos forçados, desarticulação do ativismo e de organizações negras, além do sufocamento do debate sobre o preconceito, a discriminação e as desigualdades raciais no país. Nos termos de Lélia Gonzalez, após o Golpe de 1964, houve um verdadeiro “silenciamento, a ferro e fogo, dos setores populares e de sua representação política” (1982, p.11).

Um exemplo paradigmático, porém pouco conhecido, é o caso de Esmeraldo Tarquinio, deputado negro pela Baixada Santista. Atento às demandas populares e negras da região, a trajetória do então deputado foi marcada por um conflito racial com os militares. Logo após o Golpe, Tarquino fez discurso sobre a retração democrática no país, ao que um general violentamente retrucou: “Se no Brasil não tivesse democracia, um preto comunista que nem você não seria deputado”.  E logo acrescentou: “Vá para Rússia lavar latrina. Lá que é o seu lugar!”. O referido episódio permaneceu na memória do ex-deputado e, sempre que teve oportunidade, remontava esse caso como fator explicativo para a sua cassação anos depois, o que o impediu de assumir o cargo de prefeito na cidade de Santos, para o qual fora eleito democraticamente. Em seu lugar, o General Costa e Silva nomeou um interventor federal, já que Tarquinío teve seus direitos políticos suspensos por dez anos e nunca mais teve oportunidade de exercer sua vocação política; em 1982, quando novamente pôde se candidatar, morreu às vésperas das eleições.

Poucos sabem, mas o silenciamento oficial durante o regime também gerou a supressão da pergunta sobre raça/cor no censo de 1970.  Pela primeira vez na história do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), não se pôde coletar dados capazes de informar sobre as diferenças nas condições de vida da população brasileira segundo o seu pertencimento racial. A supressão da pergunta impactou diretamente a produção acadêmica e a luta antirracista, que se nutria desses dados oficiais para realizar as análises e denúncias sobre as fortes e persistentes desigualdades raciais brasileiras.

Acrescente-se a este a retração dos estudos acadêmicos sobre a temática racial. A agenda de pesquisa sobre relações raciais desenvolvida no processo de institucionalização do campo científico das ciências sociais, a exemplo das pesquisas realizadas por Florestan Fernandes e seus orientandos, perdeu o espaço que tinha na principal universidade brasileira, posto que os militares interferiram diretamente na carreira universitária de estudiosos cujos resultados das investigações questionavam o mito da democracia racial, de um lado, e o argumento da ausência de preconceito racial, de outro.  Como certa vez disse o historiador Thomas Skidmore, os militares não chamavam de subversivos apenas os guerrilheiros com suas armas, mas também os cientistas com suas ideias.  Nas palavras do sociólogo Antônio Sérgio Guimarães, “foi nesse período que a democracia racial passou a ser um dogma, uma espécie de ideologia do Estado brasileiro” (1999, p. 66). É irônico notar que, em pleno contexto de retração de direitos civis, políticos e sociais, a diplomacia brasileira tenha insistido tanto em mostrar para o mundo as supostas relações harmônicas entre negros e brancos, livres de preconceitos e discriminações de cunho racial, escondendo graves violações aos direitos humanos e negando ou minimizando os casos de crescentes desigualdades.

Esse discurso ideológico, no entanto, foi confrontado pelas lideranças negras. Talvez, uma das mais expressivas delas tenha sido aquela realizada pelo exilado Abdias do Nascimento, fundador do Teatro Experimental do Negro, que deixou o Brasil, em 1968, rumo aos Estados Unidos, de onde passou a denunciar para o mundo a existência de racismo no Brasil. O confronto entre Nascimento e o governo militar ficou registrado no livro Sitiado em Lagos (1981), em que o autor revela as tentativas de difamação e de guerra ideológica do Itamaraty para colocar em descrédito e silenciar as denúncias do intelectual negro exilado.

Internamente, a forma coletiva de confronto mais expressiva desse contexto foi a formação do Movimento Contra a Discriminação Racial, nas escadarias do Teatro Municipal, em São Paulo, no ano de 1978. Sublinhe-se que um dos motores daquela manifestação foi o caso de Robson Silveira da Luz, que, acusado de roubar frutas, foi levado à delegacia da zona Leste de São Paulo, onde veio a óbito.  Mortes como essa, com nítidas evidências de tortura  sequer são arroladas no quadro das vítimas da ditadura militar. Isso revela que há muito a se problematizar sobre a frágil, mas “sagrada” divisão entre “presos políticos” e “presos comuns” no período de 1964 a 1985.

Assim como muitas organizações críticas ao regime, lideranças, atos, encontros e seminários negros estiveram sob vigilância cerrada dos agentes de segurança, uma vez que, sob aquele regime, falar do racismo era entendido como um ato subversivo, como se tratar do assunto gerasse o “ódio racial”,  tema arrolado na lei de segurança nacional, conforme nos revelou a pesquisa pioneira de Karin Kössling. Curiosamente, até onde se sabe, nenhum grupo ou ato racista foi investigado pelos militares, os militantes negros que combatiam a discriminação racial, todavia, tiveram suas vidas sistematicamente controladas pelos aparatos da repressão.

As ações de monitoramento e de censura não se limitavam aos espaços tradicionais do “fazer política”, a exemplo de sindicatos, jornais, movimentos sociais, organizações estudantis e partidos, havia também monitoramento constante dos agentes de segurança e repressão aos territórios e espaços de sociabilidade negra – como escolas de samba e bailes soul. Sem contar, as censuras e alterações de trechos de letras das composições de samba-enredo. Ainda no plano da produção artística, o crítico de cinema e sociólogo Noel Carvalho mostrou o impacto da censura no filme Compasso de espera, que tinha como tema central os preconceitos e conflitos raciais na sociedade brasileira. O conteúdo era considerado de teor subversivo, em contraste com a imagem de paraíso racial que o regime imprimia para dentro e para fora do país.

Talvez sejam por essas e outras razões que o diretor baiano Wagner Moura escolheu negritar as linhas tortuosas da ditadura militar, ao levar para telas de cinema a vida do guerrilheiro Carlos Marighella, na pele de Seu Jorge. Guardadas as devidas peculiaridades históricas, em som e em imagem, há que se notar em Moura, assim como em Geraldo Filme, a preocupação de demover dos escombros da ditadura alguns dos seus silêncios e silenciamentos. Cada um a seu modo, ambos registram fatos e experiências históricas, disputam os símbolos e as narrativas vividas sob a ditadura militar e trazem à memória social dos brasileiros e das brasileiras seus traumas coletivos. Tarefa ainda mais urgente num contexto político assolado por apologia à tortura, pelos clamores de grupos  (ainda) minoritários nas ruas em favor do retorno ao regime militar, pelo aparelhamento ideológico da extrema direita nas instituições de cultura (a exemplo da Cinemateca), pela desqualificação das comissões da verdade e das investigações sobre as vítimas, os crimes e criminosos da ditadura (vide as recentes bravatas presidenciais  e suas declarações indignas  direcionadas ao presidente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e à ex-presidente  do Chile e atual Alta Comissária da ONU para os Direitos Humanos (ACNUDH), Michelle Bachelet, pela legitimação das violações aos direitos humanos por parte de governantes do poder executivo (casos das declarações e atos aberrantes dos governadores do Rio de Janeiro e de São Paulo, que incentivam e legitimam assassinatos em favelas e em territórios periféricos), pela censura às expressões plurais de ideias e formas de viver o amor (a recente cruzada ideológica do Crivella na Bienal do livro), pela militarização das favelas, pelas intervenções nas universidades públicas, pelas ameaças às liberdades  de cátedra, de associação e organização política, aos direitos individuais e conquistas sociais.

Com efeito, falar da ditadura militar e trazer os fatos e a verdade sobre esse período tornou-se, mais do que nunca, dever imperioso e ético de nossos tempos, seja para explicar o passado e seus vínculos com o presente ou para compreender e confrontar os agentes, os discursos e as práticas de violência rotinizadas pelos atuais representantes do Estado brasileiro. Em tempo: confrontar a história é lição que aprendemos no carnaval passado.  É aprendizado para não esquecer jamais.

Referências:

CARVALHO, Noel. Cinema e representação racial: cinema negro de Zózimo Bulbul. 2005. Tese (Doutorado) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo. São Paulo, 2005.

GONZALEZ, Lélia. O movimento negro na última década. In: HASENBALG, Carlos; GONZALEZ, Lélia (org.). O lugar do Negro. Rio de Janeiro: Marco Zero, 1982.

GUIMARÃES, A. Sérgio. Racismo e antirracismo no Brasil. São Paulo: Ed. 34, 2004.

KÖSSLING, Karin. As lutas anti-racistas de afro-descendentes sob vigilância do Deops/Sp (1964-1983). Dissertação (Mestrado em História) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo. São Paulo, 2007.

RIOS, Flavia. Esmeraldo Tarquínio de Campos Filho. In: Dictionary of Caribbean and Afro-Latin American Biography. New York City: Oxford University Press, 2016.

CNV e negros. In: MEMÓRIAS da ditadura, 2018.  Disponível em: http://memoriasdaditadura.org.br/cnv-e-negros/. Acesso em: 08 set. 2019.

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