Guerra híbrida para cercar a Rússia

Num cenário global instável, Washington tenta desestabilizar Moscou na Ásia. Operação permite enxergar melhor o feixe de ações desencadeadas contra governos da América do Sul. Mas operação patina, em sinal de que pode ser vencida

Ucrânia, 2020: Grupos de ultra-direita que protagonizaram há seis anos a derrubada do governo comemoram aniversário do nazista Josep Bandera. Ele liderou milícias aliadas ao exército alemão na invasão da União Soviética, durante a II Guerra
.

Por Vicky Peláez, na Sputnik Mundo | Tradução e texto introdutório: Ricardo Cavalcanti-Schiel


1ª parte: Considerações preliminares do tradutor

O artigo que se segue foi escrito por uma veterana jornalista e também insider do mundo da inteligência estratégica. Por muitos anos Vicky Peláez teve contato com as entranhas das corporações neocons norte-americanas. E transmitiu suas informações… à Rússia… razão pela qual foi acusada de espionagem nos Estados Unidos e deportada.

O artigo que se segue se baseia em um documento público já bem conhecido, da famigerada Rand Corporation, o mais influente e mais bem financiado (mais de 1 bilhão de dólares entre 2014 e 2019) think tank do Estado Profundo norte-americano. O que o artigo faz é confrontar o que a Rand prescreveu, em termos de movimentos estratégicos, com o que vem acontecendo recentemente nos países que formavam o entorno do antigo mundo soviético. E o que isso confirma são as táticas usuais da guerra híbrida e das revoluções coloridas.

Estas últimas não são mais que uma modalidade específica (e não isolada) da primeira. A ela se combinam ações em muitas outras frentes: mecanismos econômicos e financeiros, lawfare, cooptação e chantagem dos operadores políticos e institucionais ― de ministros de Estado e juízes de tribunais superiores a comandantes de forças militares ―, guerra cibernética e digital, ações terroristas e de sabotagem, apoio flexível ao crime organizado e a forças paramilitares, controle de mídia e da agenda de debate intelectual, até as assim chamadas “operações psicológicas”, que procuram se estender para todo o espectro da interação social, a começar pela discursividade política, como bem o caracteriza a discursividade bolsonarista.

No caso das revoluções coloridas, sua lógica parece ancorar-se não na promoção de mobilizações, mas antes no uso oportuno delas para, por qualquer meio ou tática, potencializar ao máximo a tensão conflitiva, seja no fornecimento generoso de coquetéis molotov, como ocorreu na localidade de Muxidi, em Pequim, por ocasião dos protestos da Praça Tiananmen, em 1989, seja no uso de franco-atiradores, como ocorreu no caso da Praça Maidan, em Kiev, na Ucrânia, em 2014.

O passo seguinte ao da potencialização do conflito é o bombardeamento massivo de uma narrativa útil. É esse ― e não o momento em si das mobilizações ― o momento por excelência da efetivação da revolução colorida, porque é o momento de fabricação da legitimidade política. Não por casualidade, o cerne da guerra híbrida é algo que se poderia chamar de “guerra cultural”.

O aproveitamento das mobilizações de junho de 2013 no Brasil pode ilustrar essa especificidade com razoável acuidade. As mobilizações não foram, em si, um ensaio de revolução colorida, como defendem alguns mais exaltados com o espantalho da conspiração (e melindrados com a interpelação que aquelas mobilizações fizeram ao pretenso ― e fajuto ― paraíso social dos governos petistas), mesmo que, em alguns casos, tenham abundado os coquetéis molotov entre os trouxas dos Black Blocs. Mas seu enquadramento midiático e sua incorporação a uma pauta antiprogressista, pela ação dos movimentos ligados à Rede Atlas e ao seu generoso esquema de financiamento internacional, isso sim, foi típico de revoluções coloridas.

Os trouxas dos Black Blocs (e poderíamos estender essa percepção a outros black mais recentes), evidentemente, são incapazes de (e intrinsecamente incompetentes para) identificar onde estão os verdadeiros inimigos. Acabaram enquadrados sob o estigma genérico de “terroristas”, já que, em países como o Brasil, a lógica policial (ou jagunça, tanto faz) de confrontação a algum “terrorismo” não faz mais que reiterar a tradição da repressão social, seguindo a cartilha da contrainsurgência norte-americana, quando, na verdade, “terroristas” são bem outros, em geral, financiados pela maior e mais poderosa organização terrorista internacional contemporânea, a CIA.

Em termos mais gerais, no sentido do aproveitamento do conflito para a disseminação de uma narrativa útil, o caso da Praça da Paz Celestial, na China, em 1989, foi talvez o mais exemplar de todos, pela sua novidade, escala e grau de manipulação, ainda que não tenha alcançado seus objetivos: corroer os cimentos de legitimidade do governo chinês. A operação conquistou, ao menos, dividendos de opinião pública internacional: a consagração de uma suspeita renitente e reiteradamente alimentada sobre “o regime” chinês, a partir do seu julgamento pelo crivo de verdades liberais irrefletidas (o que os antropólogos chamamos de etnocentrismo). Aquele fracasso relativo, no entanto, demonstrou ao menos uma coisa: esse tipo de operação tem uma efetividade restrita, e precisa ser complementado por outros instrumentos. Eles podem vir a ser eficientes (como a operação de lawfare e seus sucedâneos, no Brasil) ou não.

A citação que faz o artigo ao texto da página 113 do documento da Rand é bastante sugestiva. O documento original da Rand diz: “Começar revoluções [coloridas] não é fácil, e que os Estados Unidos deem apoio público aos movimentos de oposição não garante que eles terão sucesso” (tradução minha). Se isso dizem alguns dos maiores especialistas nesse tipo de operação, então parece razoável considerar que, apesar da enormidade de recursos que possa mobilizar e o vale-tudo (ou, em anódinos termos técnicos, o “amplo espectro”) das suas táticas, há, como é natural haver, um horizonte de imponderável em toda guerra híbrida. É disso que também nos fala o artigo que se segue.

E é também isso o que o caso recente das eleições bolivianas parece ilustrar. E aqui, as estepes e montanhas da Europa Oriental e da Ásia Central a que o artigo se remete tornam-se inusualmente vizinhas da Nossa América. Em algum momento, no caso boliviano, o movimento da guerra híbrida parece ter falhado. Eis aí o Imponderável de Almeida, para parodiar nosso genial Nelson Rodrigues. E isso pode ter aberto um flanco, por onde venham a deslizar outros desdobramentos à escala continental. Mas não sejamos afoitos!

Meu colega antropólogo Piero Leirner, um dos principais analistas, no Brasil, do fenômeno da guerra híbrida, especula que o rumo das eleições bolivianas, em face do arsenal de recursos que ainda poderia ter sido utilizado pelos promotores desse recurso por lá, pode ter sido, na realidade, um movimento calculado, de mais amplo alcance regional, para alimentar a ilusão (em termos mais propriamente antropológicos, poderíamos até falar de: alimentar a eficácia simbólica do discurso) de que a democracia liberal é suficiente para reger a superfície da ordem institucional nas nossas repúblicas de bananas, enquanto essa mesma ordem é carcomida, a partir de dentro, por mecanismos bem mais sofisticados de colonialidade (e citá-los incidiria em uma abundância que requereria um artigo inteiro). É uma bela hipótese.

Leirner pretende chamar a atenção, com ela, exatamente para os mecanismos mais sutis, sofisticados e insidiosos que nos alcançam a todos aqui nos quintais do Império, recusando um certo oba-oba irresponsavelmente triunfalista pela vitória eleitoral do MAS (Movimiento al Socialismo) por parte de uma esquerda um tanto festeira. Apesar de ser uma bela hipótese e aportar advertências que não devem ser de modo algum desprezadas (e talvez as advertências tenham mais relevância que a hipótese em si), pesa contra ela, no entanto, o excesso de complicação explicativa ― além dos fios soltos que deixa. Assim, na ausência de mais dados e em nome da elegância lógica, eu ainda preferiria a irrupção do Imponderável de Almeida, já que essa mesma irrupção não seria tão imponderável assim, como não o é nas fronteiras da Rússia.

Em artigo publicado dois dias depois das eleições, argumentei que, numa Bolívia nem tão profunda assim, a do mundo indígena andino e mesmo de alguns desdobramentos pelo mundo “cholo”, as decisões comunitárias são usualmente consensuadas, constroem unanimidade, e que aí o coletivo se sobrepõe ao individual. Nesse sentido, até mesmo a dinâmica do voto não responde necessariamente à lógica liberal de que ele seja expressão necessária de uma consciência individual. Assim, quando a OEA (Organização dos Estados Americanos), sob a batuta de seu presidente Luis Almagro, declarou as eleições bolivianas de 2019 suspeitas de fraude, por encontrar seções eleitorais em que Evo Morales conquistara 91% dos votos, não só impôs ao voto boliviano uma forma que não lhe diz respeito como também pavimentou o caminho para o golpe de Estado contra Morales. Nessas mesmas seções, na eleição há pouco realizada, o candidato do MAS, Luis Arce, veio agora a conquistar, ao invés de 91, uns miseráveis 97% dos votos.

Bem ou mal, é de dinâmica de representação que estamos tratando… e de movimentações políticas por trás delas, que engendram condições de legitimação. De outra forma, qual o limite de um governo sem legitimidade? No caso do neoliberal Gonzalo Sánchez de Lozada, o limite foi de 1.000 mortos. Quando esse limite foi cruzado em 2003, não apenas o ex-presidente se viu obrigado a abandonar o país como também deu passo à ascensão do MAS e de Evo Morales.

E casualmente, é por conta do não-tão-imponderável-assim boliviano que, agora, o grande perdedor das eleições naquele país não é outro que o presidente da OEA, Luis Almagro, questionado e interpelado, do México à Argentina, amargando uma notável perda de credibilidade e um quase isolamento. Eis um dos flancos colaterais abertos. E é isso que nos permite até mesmo considerar que, apesar das condições consideravelmente desfavoráveis, a luta (no continente todo) continua.

Mas é bom que ninguém se embale em triunfalismos e em simplificações voluntaristas! Sugerir, por exemplo, como receita para todos, que o povo nas ruas decidiu a eleição boliviana pode ser não mais que uma temeridade. Povo na rua sem trabalho político de base e sem um projeto consistente pode não significar outra coisa que oferecer munição para uma revolução colorida. Hoje, depois de junho de 2013, nunca é demais lembrar disso. (Ricardo Cavalcanti-Schiel)

* * *

O Ocidente, na realidade, nunca lutou
contra o marxismo, o comunismo,
o totalitarismo ou o socialismo soviético.
Lutou, sim, contra o império euro-asiático
da Rússia, não importava qual fosse seu nome
nos diferentes momentos históricos”.

(Vsévolod Kóchetov)

Tudo se deve a uma impiedosa luta geopolítica, geoeconômica, ideológica e informacional cuidadosamente planejada há tempos pelos estrategistas norte-americanos, e posta em ação para liberar o espaço pós-soviético da influência russa.

Para Washington e seu satélite incondicional, Bruxelas, criar em torno da Rússia o máximo possível de focos de instabilidade, tensão e conflitos locais, levaria seu governo ao desespero de tentar tapar todos os buracos ― algo impossível ― e ao debilitamento do governo de Vladimir Putin, que então já não disporia de possibilidades para apoiar Síria, Venezuela, Irã e Líbia.

Há mais de um ano, a Rand Corporation, um dos mais influentes dos 1.777 think tanks existentes nos Estados Unidos, publicou o relatório Extending Russia. Competing from Advantageous Ground (Distendendo a Rússia. Competir a partir de terreno vantajoso), em que se analisam as grandes inquietudes e vulnerabilidades da Rússia no espaço pós-soviético, aconselhando como tirar proveito delas e até mesmo mensurando riscos e custos. De acordo com os analistas da Rand, “a Rússia atual, tal como a dos séculos XIX e XX, nunca foi nem tão forte nem tão débil quanto parece. No entanto, apesar de não ser superpotência, como era a União Soviética, sob a liderança de Putin ela conquistou poder econômico e respeito internacional, além de demonstrar grande potencial militar, que pode eventualmente ser exercido sobre seus vizinhos. A tarefa principal dos Estados Unidos é a de debilitar, desequilibrar, distender e remover a Rússia do espaço pós-soviético”.

Para alcançar essa meta, os analistas da Rand propõem pôr em andamento seis Medidas, começando com a Ucrânia. Primeiro, reconhecem que os protestos da Praça Maidan, que se iniciaram em 21 de novembro de 2013, foram promovidos por Washington e que na reunião de Wales [em Newport] em 2014, a OTAN comprometeu-se a treinar os líderes militares ucranianos e se encarregar do controle, logística, defesa cibernética das forças armadas nacionais e do adestramento de suas tropas. O que falta agora é entregar à Ucrânia armamento letal e fazê-la ingressar na OTAN. No entanto, ainda que a maioria dos membros da Aliança do Atlântico Norte (OTAN) apoie essa ideia, 57% dos alemães se opõem à aceitação da Ucrânia… e a Aliança funciona por consenso. A propósito das armas letais, a OTAN vem se utilizando da Turquia, cujo presidente, Recep Tayyip Erdogan, comprometeu-se, durante a visita do presidente ucraniano, Volodímir Zelenski [um declarado admirador de Bolsonaro], a Ancara, a entregar a Kiev seis drones de ataque Bayractar TB2 ― que recentemente se mostraram efetivos em Nagorno-Karabakh contra os tanques e a artilharia armênias ―, além de apoiar o país com mais de 25 milhões de dólares para aquisição de armamento.

Como segunda Medida, os estrategistas da Rand aconselham ao governo norte-americano incrementar a ajuda aos rebeldes sírios, para confrontar a influência russa e iraniana na região. Não obstante, esses especialistas reconhecem que se trata uma sugestão muito difícil de pôr em prática, uma vez que o Pentágono não tem na Síria um único grupo de rebeldes em que possa confiar, já que há muitos e que, como a experiência demonstrou, tendo recebido armamento e dinheiro, os rebeldes desaparecem sem deixar rastros.

Os protestos que se iniciaram na Bielorrússia no último 9 de agosto, após as eleições presidenciais que indicaram a reeleição de Alexandr Lukashenko e que duram até o momento, não parecem ter sido resultado de uma ação espontânea, e sim de que seguiram a pauta elaborada há um ano pela Rand Corporation. Esse centro apresentou como terceira Medida para debilitar a Rússia, “promover a mudança de governo da Bielorrússia”. Para lá, os estrategistas da Rand primeiro aconselharam ao Departamento de Estado melhorar as relações com Lukashenko ― e não é difícil se lembrar dos sorrisos do secretario de Estado, Mike Pompeo, durante sua visita a Minsk

[no início deste ano]

, junto com a feição de satisfação de Lukashenko, que sequer suspeitava do real significado daqueles sorrisos.

Depois de massagear o ego do presidente bielorrusso, os funcionários do Departamento de Estado aconselharam ao governo local iniciar a liberalização da economia, ao mesmo tempo em que puseram em ação suas ONGs, para financiar e mobilizar a oposição, tal qual o projeto da Rand, que reconhece que “começar revoluções coloridas não é fácil, e que o apoio dos Estados Unidos não garante seu êxito, (…) mas isso poderia ser obtido com a ajuda da Polônia, Letônia, Lituânia, Ucrânia e União Europeia”. Todos esses atores continuam participando ativamente do jogo, que só não alcançou seu objetivo graças à mão estendida que a Rússia ofereceu à Bielorrússia. Assim, até o momento, não se conquistou o propósito principal daqueles estrategistas, que esperavam que “tirando Lukashenko do poder, os Estados Unidos lucrariam geopolítica e ideologicamente, conquistando também o isolamento do enclave russo de Kaliningrado”.

Os analistas da Rand também se debruçaram sobre o sul do Cáucaso, especificamente Azerbaidjão, Armênia, Nagorno-Karabakh e Geórgia. Tomaram como ponto de partida dos conselhos ao governo norte-americano para “tirar proveito das tensões na região” (Medida nº 4), a advertência de que “qualquer esforço para favorecer a aproximação do sul do Cáucaso com os Estados Unidos necessitaria do apoio da Turquia, que representa, para esses países, sua única via de união ao Ocidente”. E assim se desenrolaram os acontecimentos em Nagorno-Karabakh, onde aquilo que os planejadores norte-americanos imaginaram foi interpretado pelo presidente turco Erdogan como a oportunidade para pôr em primeiro lugar os interesses nacionais turcos na região, e só depois, eventualmente, os interesses norte-americanos.

A partir da desintegração da União Soviética em 1991, o Azerbaidjão se converteu em aliado incondicional da Turquia, que reconheceu em Baku (a capital do país) um trampolim para a expansão da influência turca em direção ao Cáucaso e à Ásia Central, além do acesso à porção sob controle territorial azeri do mar Cáspio, onde se encontram reservas de 48 bilhões de barris de petróleo e 292 trilhões de metros cúbicos de gás. A guerra atual pelo enclave de Nagorno-Karabakh, entre o Azerbaidjão e a Armênia, tem uma longa história. Nagorno-Karabakh se encontra formalmente no Azerbaidjão, mas a maioria da população é de origem armênia. Já nos últimos anos da União Soviética, Nagorno-Karabakh pediu sua inclusão à Armênia, mas o pedido foi recusado pelo Birô Político soviético para evitar secessões em outras repúblicas. Não obstante, em 1991, após a desintegração da União Soviética, a região de Nagorno-Karabakh, historicamente conhecida como Artsakh, declarou sua independência, que não foi reconhecida até o momento por nenhum país.

Desde 26 de fevereiro de 1988, Azerbaidjão e Armênia têm estado tecnicamente em guerra, com tensos períodos de cessar fogo, interrompido no mês passado pelo Azerbaidjão, que lançou uma ofensiva para retomar Nagorno-Karabakh. A guerra já ceifou a vida de milhares de jovens de ambos os lados e resultou na virtual destruição de Nagorno-Karabakh, por conta das ambições de Turquia e Israel. Este último país vendeu a Baku armas e especialmente drones de ataque e reconhecimento, por mais de 7 bilhões de dólares, com o consentimento de Washington, a partir de 2016, quando Benjamin Netanyahu se encontrou em Baku com o presidente do Azerbaidjão, Ilham Aliyev. Não se deve esquecer que Israel tem plantada no Azerbaidjão sua base radioeletrônica para vigiar o Irã.

O primeiro ministro da Armênia, Nikol Pashinyan, é um político pró-ocidental e pró-OTAN, que chegou ao poder graças a uma revolução colorida, aparentemente financiada por George Soros, e que rapidamente se esqueceu de sua promessa de continuar mantendo boas relações com Moscou. Não parece casualidade que a embaixada dos Estados Unidos em Yerevan, a capital armênia, tenha cerca de 3.000 funcionários. Agora, a Armênia pede ajuda à Rússia, porque sabe bastante bem que é o único país capaz de deter a Turquia, o real arquiteto da atual confrontação, que fez uso de seus aliados azeris e seus mercenários que atuavam na Síria, cujo número no terreno alcança mais de um milhar. Até o momento, por razões muito próprias, a Rússia não deu o passo decisivo para pôr fim à guerra, mas em algum momento o fará, sem dúvida, por conta de seus interesses de segurança nacional.

O projeto da Rand Corporation não termina no Cáucaso. Ele se estende para a Ásia Central, alvo da Medida nº 5: “a redução da influência russa na Ásia Central”, em que se defende que o neoeurasianismo russo não é mais que uma utopia que não pode ser admitida como projeto real. Desde 2005 os Estados Unidos tentam promover uma revolução colorida no Quirguistão. Tanto em 2005 quanto em 2010 as tentativas fracassaram. Não obstante, no último 5 de outubro tentaram de novo. Washington tem saudades de sua base aérea de Manas (2001-2014) que era usada também para o tráfico de heroína. No Quirguistão, existe uma base militar russa em Kant que remonta ao período soviético, do lado leste do Lago Issyk-Kul, e que é a única instalação militar russa na Ásia Central.

O último intento de revolução colorida no país, apresentado majoritariamente pela mídia (seja nacional seja internacional) como o resultado da luta entre os clãs locais e as elites, não leva em conta o uso disseminado de coquetéis molotov e outras tácticas, usualmente empregadas em praticamente todas as revoluções coloridas ao redor do mundo. Também é preciso levar em conta a presença de cerca de 7.000 ONGs a serviço dos dispositivos de inteligência estrangeiros. Para os Estados Unidos, ter o Quirguistão sob seu mando significa não apenas reduzir a presença russa no espaço pós-soviético, mas também confrontar geopolítica e geoeconomicamente a China.

O Quirguistão compartilha uma extensa fronteira de 1.063 quilômetros com a região autônoma de Xinjiang (China), que alberga o povo turco uigur, que professa o islamismo e que participou ativamente, junto com a al-Qaeda, do projeto do Estado Islâmico no Iraque, Afeganistão e Síria. Os uigures vêm atuando ativamente, como fonte de tensão, no interior da própria China. O Quirguistão também é uma das portas de entrada para o projeto chinês da Nova Rota da Seda. Uma revolução colorida ali tem também por objetivo malograr esse projeto. Após os distúrbios iniciados no último dia 4 de outubro ― que se seguiram às eleições parlamentares ―, a embaixada norte-americana em Bishkek emitiu uma declaração afirmando que “os cidadãos e seus líderes devem continuar lutando contra a influência do crime organizado e da corrupção na política”.

O curioso foi que, tal como na Bielorrússia, a revolução colorida em Bishkek recebeu luz verde logo após a turnê do secretario de Estado, Mike Pompeo, pela Ásia Central em fevereiro último, na qual realizou em Tashkent, capital do Uzbequistão, uma reunião no formato C5+1 (Cazaquistão, Quirguistão, Uzbequistão, Tadjiquistão, Turcomenistão + Estados Unidos). Nesse fórum, Pompeo exortou os participantes a “se unirem a nós numa forte pressão à China para acabar com a repressão ao povo uigur”. Por muito que Washington tenha se esforçado, sua revolução colorida fracassou após a visita a Bishkek do subchefe de gabinete do presidente Putin, Dmitry Kozak, que se encontrou no último dia 12 de outubro com o presidente renunciante Sooronbay Jeenbekov e o novo primeiro-ministro designado pelo parlamento, Sadir Zhaparov. Aos poucos, a situação no Quirguistão vai se normalizando.

No entanto, o Departamento de Estado e a CIA não desanimam, e seguem adiante com o projeto concebido em 2019 pela Rand Corporation, visando promover revoluções coloridas. Tal como desenharam seus gurus, na Medida nº 5 o próximo passo é a Moldávia, onde os “Estados Unidos devem desafiar a presença russa”. Moldávia é uma antiga república soviética de 3,5 milhões de habitantes, localizada entre a Romênia e a Ucrânia, e considerada, nos tempos soviéticos, como a Flórida da URSS [e que hoje é o país mais pobre da Europa, saqueado pelo oligarca Ilan Shor, por conta da corrupção sistêmica que se instalou no país após o fim da União Soviética]. Desde 1990 o país recebe ajuda norte-americana e, de acordo com os analistas da Rand, as eleições que começaram no dia 1º de novembro [com uma vitória parcial e apertada da ultra-atlanticista Maia Sandu, que seguiu o script boliviano de produzir acusações de fraude ― o segundo turno será realizado em 15 de novembro] seriam um bom momento para lançar mais uma revolução colorida. O chefe do Serviço de Inteligência Exterior russo, Serguey Narishkin, já confirmou que os Estados Unidos estão preparando um cenário “revolucionário” na Moldávia, com o objetivo de evitar a reeleição do atual presidente, Igor Dodon, que oscila entre Ocidente e Rússia.

O que, na verdade, Washington pretende desmantelar é a Transnístria, uma unidade territorial autônoma pró-russa com estatuto jurídico especial, localizada entre o Rio Dniestre e a fronteira oriental da Moldávia com a Ucrânia, onde se encontram as tropas russas de manutenção da paz. O projeto norte-americano e europeu propõe a reunificação de Moldávia e Romênia. A Transnístria e a presença dos militares russos na região são um entrave para esse projeto. Então, o primeiro a se fazer, segundo a Rand, é doutrinar os jovens da região; o segundo, promover uma revolução para expulsar as tropas russas; e, por fim, instalar um governo abertamente pró-ocidental. É para este propósito que os Estados Unidos já estão, conforme a Rand, mobilizando seus especialistas em revoluções.

Na realidade, com o presidente Dodon, a Moldávia há tempos já está na órbita da União Europeia. Dodon declarou que a integração europeia é a principal prioridade do país, e não as relações com a Rússia, expressando-se em favor da retirada das tropas de paz da Transnístria. Aqui a Rússia não deve nutrir ilusões a respeito do resultado das próximas eleições moldavas. Qualquer governo eleito seria pró-ocidental, por conta da ausência, no momento, de uma política coerente de Moscou para com o espaço pós-soviético; algo do qual se aproveitam tanto Washington como Bruxelas como Ancara.


Leia Também:

4 comentários para "Guerra híbrida para cercar a Rússia"

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *