Bargouthi: O cerco a Gaza e a proposta do Hamas

Herdeiro político de Edward Said expõe a brutalidade da ocupação, debate a ação do grupo islâmico e alerta: 2 milhões de pessoas estão ameaçadas por um massacre brutal. Para evitar a tragédia, primeiro passo é uma troca de prisioneiros

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Mustafa Barghouti, entrevistado por Karan Thapar, no Wire India | Tradução: Antonio Martins

Como evitar que Israel desencadeie, contra os 2,2 milhões de habitantes da Faixa de Gaza, uma ofensiva sangrenta que resultaria em tragédia humanitária e poderia degenerar num grande conflito internacional? E de que forma enxergar a ação do Hamas, cuja ofensiva no último sábado pôs fim a anos de indiferença global diante do drama palestino — mas produziu cetenas de mortos entre a população civil? Nos últimos dias, o secretário-geral da Iniciativa Nacional Palestina, Mustafa Barghouti, destacou-se pelas respostas instigantes a estas perguntas. Falou várias vezes à CNN. Expôs, em diálogo com o canal indiano Wire, uma visão ampla do contexto em torno do conflito. Aproveitou a oportunidade para tornar pública uma primeira proposta de negociação, feita pelo Hamas. Implica numa troca de prisioneiros em duas etapas. Ao final delas, estariam libertados todos os reféns israelenses feitos no último sábado (7/10) e todos os presos políticos palestinos encarcerados por Israel, muitos deles detidos há anos “administrativamente”, sem qualquer acusação formal.

Barghouti condena as ações contra civis — e defende a responsabilização dos que a promoveram. Mas não iguala a violência do Hamas à de Telavive. Aponta que a reação do grupo islâmico seguiu-se não apenas a 75 anos de ocupação brutal da Palestina, mas a um recrudescimento da violência israelense, nos últimos meses. Nesse período, grupos de extrema direita praticaram, com apoio ou conivência do exército, novos atentados contra os palestinos. Invadiram terras e expulsaram moradores, sob estímulo do governo agora novamente liderado por Benyamin Netanyahu. O primeiro ministro compareceu à Assembleia Geral da ONU e exibiu um suposto mapa de Israel, em que as terras palestinas aparecem varridas. A provocação tornou-se intolerável. Como afirma Chris Hedges, em outro texto publicado por Outras Palavras, “o terror da ocupação colonial sempre gera respostas violentas. E a resposta armada, nestes casos, é um direito reconhecido internacionalmente”.

Mustafa Barghouti é uma espécie de herdeiro político do grande intelectual palestino Edward Said. A Iniciativa Nacional Palestina, que ele fundou em 2002 (e que Said apoiou vivamente) busca ser uma alternativa tanto ao Hamas quando à Fatah, que — acomodada, burocratizada e corrompida — controla a Autoridade Nacional Palestina e governo (sob tutela de Telavive) a Cisjordânia. Sua entrevista à Wire india, que publicamos a seguir, é essencial para construir, sobre um conflito que pode tornar o mundo ainda mais instável, uma visão independente da propagada pela mídia ocidental (A.M.)


OBem-vindos a uma entrevista especial para o The Wire, no terceiro dia do conflito entre o Hamas e Israel. Apresentamos uma visão da perspectiva palestina. Jornais ocidentais, canais de televisão e agências de notícias nos deram uma ideia muito clara de como esse conflito é visto em Telavive, Londres e Washington. Agora é a sua chance de descobrir como o povo palestino vê o que está acontecendo ao seu redor. Comigo está um membro do Conselho Legislativo Palestino e Secretário-Geral da Iniciativa Nacional Palestina, Mustafa Barghouti. Sr. Barghouti, você pode começar explicando por que acredita que o Hamas achou essencial agir agora?

Mustafa Barghouthi: É muito importante para as pessoas na Índia — o heroico povo da Índia, que lutou e para acabar com o colonialismo britânico e conquistar sua liberdade e independência, entender que nossa luta é semelhante à deles. Estamos lutando contra um sistema de colonização israelense que colocou os palestinos sob ocupação militar desde 1967. Esta se tornou a ocupação mais longa da história moderna, 56 anos de ocupação. Mas também fomos submetidos a atos de limpeza étnica por Israel em 1948, quando 70% do povo palestino foi deslocado de suas terras por meio de vários massacres, não menos que 52 massacres que as tropas israelenses cometeram. 520 comunidades palestinas foram apagadas do mapa, e a população da Palestina, 100% dela, tornou-se refugiada. É importante entender isso porque 72% da população da Faixa de Gaza hoje — que é uma área pequena, são apenas 365 quilômetros quadrados [1/4 da área do município de São Paulo — nota de OP], com 2,2 milhões de pessoas, são refugiados deslocados por Israel em 1948. Foram deslocados em 1948 e, em seguida, ocupados novamente por Israel em 1967.

Durante o último período, Israel não apenas consolidou o sistema de ocupação, mas também o transformou em um sistema de apartheid. É algo que organizações de direitos humanos como a Anistia Internacional, Human Rights Watch e até mesmo organizações de direitos humanos israelenses como o B’Tselem apontaram como o pior sistema de apartheid de todos, de discriminação racial contra o povo palestino. Esse é o pano de fundo do que está acontecendo na Faixa de Gaza. A Faixa de Gaza está sob cerco israelense desde 2006, mais de 17 anos de cerco. Significa que Israel controla o espaço aéreo, controla todas as passagens, controla o mar, impedindo os palestinos de terem uma vida normal. As pessoas em Gaza estão em absoluta e total pobreza. O PIB per capita em Israel é de US$ 56.000 por ano, enquanto em Gaza não chega a US$ 1.000 por ano. E os palestinos em Gaza, assim como na Cisjordânia, têm que comprar produtos a preços de mercado israelenses.

Gaza tem estado sob ocupação, assim como a Cisjordânia, apenas em forma diferente. Mas, além disso, as pessoas de Gaza são privadas de água limpa, de água potável, de eletricidade em quantidades normais. 80% dos jovens educados em Gaza estão desempregados devido ao cerco israelense. Além disso, os palestinos doentes não têm acesso a cuidados médicos adequados por causa do cerco israelense a Gaza. Metade dos pacientes com câncer não é autorizada a vir para a Cisjordânia para se tratar, e morrem sem tratamento na Faixa de Gaza. Essa é a situação.

O que aconteceu nos últimos oito meses foi muito especial porque esta é a razão direta principal pela qual o Hamas decidiu realizar seu ataque. A primeira coisa foi que colonos israelenses ilegais na Cisjordânia, que não são menos que 750 mil, começaram uma campanha com ataques terroristas contra a população civil palestina. Os colonos israelenses, protegidos pelo exército israelense, mataram não menos que 4.248 palestinos, incluindo 40 crianças. Uma das crianças que morreram — eu a conhecia — tinha apenas dois anos e meio na vila de Nabi, na área de Ramallah, e Israel não indiciou ninguém por todos esses assassinatos.

Além disso, Israel declarou que seu objetivo é liquidar a causa palestina por meio da “normalização” com países árabes. Netanyahu disse claramente que não permitirá a criação de um Estado palestino independente e que a causa palestina não existe. A principal questão aqui é a “normalização” com países árabes.

Em que medida o ataque do Hamas também é uma tentativa de interromper um acordo de paz entre a Arábia Saudita e Israel, que teria colocado o povo palestino e sua causa em segundo plano? Até que ponto foi uma tentativa de impedir que isso acontecesse?

Nem o Hamas, nem nós somos contra a paz, nem mesmo entre países árabes e Israel. O que somos contra é contornar a questão palestina para alcançar a paz com os países árabes às custas dos palestinos, enquanto mantém o domínio israelense sobre o povo palestino e a ocupação israelense da terra palestina. Portanto, não somos contra a paz, somos contra a escravidão, somos contra a ocupação, somos contra o apartheid. Mas para piorar, Netanyahu foi recentemente à Assembleia Geral das Nações Unidas e mostrou um mapa de Israel que incluía a anexação da Cisjordânia ocupada, a anexação da Faixa de Gaza ocupada, a anexação de Jerusalém Oriental ocupada, bem como as Colinas de Golã sírias ocupadas. Ele declarou ao mundo sua intenção de violar completamente o direito internacional, anexando territórios ocupados. Essa foi a principal razão pela qual os palestinos se sentiram obrigados a lutar por seus direitos, a resistir à ocupação, e não se pode chamar de terroristas as pessoas que estão lutando por sua liberdade, enquanto o Exército israelense está bombardeando Gaza da forma mais intensa possível, matando até agora mais de 510 civis [já eram pelo menos 2 mil, em 10/10 — Nota de OP].

O que o comandante militar do Hamas quis dizer quando foi amplamente citado afirmando “chega, já suportamos mais do que podemos tolerar, vocês nos oprimiram e temos que revidar”?

É exatamente isso que ele quis dizer, “chega, já suportamos mais do que podemos tolerar”. Isso se deve, em grande parte, ao fato de que a mídia internacional está ignorando algo. Desde 2008, Israel cometeu e realizou cinco guerras contra a população de Gaza, durante as quais, em ataques como o de 2014, mataram milhares de pessoas. Mais de 4.000 palestinos foram mortos pelo Exército israelense em 2014.

Mas parece que o Hamas cometeu atrocidades terríveis contra inocentes israelenses – crianças, esposas, maridos, civis inocentes foram mortos. Como você justifica esta atrocidade; esse “olho por olho” faz sentido moralmente?

Não! Sou contra matar qualquer civil, sou contra matar qualquer criança. No entanto, afirmar que o Hamas está apenas matando crianças e mulheres não está correto. Na realidade, eles realizaram um ataque militar contra bases militares que Israel mantém ao redor de Gaza.

Desculpe por interromper, mas 250 adolescentes que estavam num festival de música também foram mortos. Eles definitivamente não eram alvos militares, eram jovens adolescentes que estavam tendo uma noite agradável ouvindo música e foram mortos.

Eles não deveriam ter sido mortos, e isso foi um erro terrível que não deveria ter acontecido. Os responsáeis devem prestar contas por isso. Muitos desses jovens também servirem no Exército israelense — há 760 mil soldados, dos quais 560 mil são civis chamados de tempos em tempos para conduzir guerras contra os palestinos. Agora, estão convocando 350 mil desses jovens para se juntarem ao Exército e atacar os palestinos. Mas, independentemente disso, um civil não deve ser atacado.

Você disse algo muito importante e estou repetindo para a audiência. Mesmo que você acredite que você e seu povo estão sob ataque há 75 anos, você afirmou categoricamente que o assassinato de 250 jovens inocentes num festival foi um erro e aqueles que o cometeram devem ser responsabilizados.

Concordo, qualquer pessoa que mate um civil deve ser responsabilizada, e isso deve se aplicar a Israel. Mas infelizmente, você se lembra do caso de Shireen Abu, uma jornalista palestina muito pacífica. Ela era palestina, cristã e também tinha cidadania americana, e foi morta a tiros por um atirador israelense. Até o momento, nenhuma investigação real foi conduzida e ninguém foi indiciado, exatamente como no caso de outros 52 jornalistas palestinos que também foram mortos pelo exército israelense. Absolutamente — não estou dizendo que isso justifica matar civis israelenses. Nenhum civil deveria ser morto, nem mesmo militares, se tivermos uma paz real. Mas isso não pode acontecer enquanto estivermos escravizados por um sistema de opressão, um sistema de ocupação e um sistema de apartheid.

Deixe-me contar uma experiência pessoal que pode ser útil para sua audiência. Sou médico por formação e prática. Em 1996, acabei de concluir meus estudos de pós-graduação na Universidade Stanford, nos Estados Unidos, e estava em Ramallah, na Palestina, quando fui chamado para liderar uma equipe médica devido a confrontos com o Exército israelense. Palestinos estavam sendo feridos e mortos. Fui chamado para ajudar uma pessoa baleada no quinto andar de um prédio. Estava vestindo meu jaleco branco e, enquanto tentava estancar o sangramento daquele homem, um atirador israelense me viu e atirou em mim duas vezes com munição real. Até hoje, carrego 37 fragmentos desse ataque nas costas e ombro. Meu caso foi relatado na CNN, mas ninguém foi indiciado, nenhuma investigação real foi conduzida. Desde então, perdemos milhares e milhares de palestinos mortos por Israel. Você sabe que desde 1948, o número é de pelo menos 100 mil palestinos mortos, além de um milhão de palestinos presos por Israel.

Você nos deu um contexto bastante abrangente, para que uma audiência indiana possa entender a perspectiva palestina. Como eu disse na introdução, estamos bem cientes da perspectiva israelense e ocidental. Agora, permita-me fazer perguntas mais curtas. Como está a situação em Gaza neste momento? Eu sei que a área foi bombardeada pesadamente na noite passada e que Israel cortou o fornecimento de eletricidade, alimentos e combustível.

Bem, se o mundo se preocupa com civis, ele também deve se preocupar com os civis palestinos. Não se pode dizer que, porque o Hamas realizou um ataque, isso justifica matar civis palestinos.

Neste exato momento, 2,2 milhões de palestinos na Faixa de Gaza estão sendo submetidos a crimes de guerra e atos de punição coletiva. Punição coletiva no sentido de cortar o fornecimento de água, eletricidade, produtos, tornando suas vidas impossíveis, mas também sendo atacados continuamente por aviões israelenses F16 e caças F35. Nós, palestinos, não temos nada para nos proteger. Não temos mísseis antiaéreos, não temos aviões, nem mesmo aeroportos. O que estamos vendo hoje são 2,2 milhões de pessoas submetidas a ataques aéreos horríveis por parte de Israel. As imagens que estão vindo de Gaza são chocantes. Israel tem destruído casas uma após a outra, derrubaram mais de 11 edifícios de grande altura com centenas de apartamentos e muitas pessoas mortas e feridas. Há poucos minutos, vi um vídeo do Exército israelense atacando uma ambulância que transportava feridos, matando sete pessoas que estavam na ambulância e ferindo o motorista e o médico. Como você pode ver, é uma situação terrível. Mas as coisas piores ainda não aconteceram. Deixe-me alertar: Netanyahu disse que as pessoas deveriam deixar Gaza agora. Para onde eles deveriam ir? Eles estão sob cerco, não têm para onde ir. Ele está tentando justificar, em minha opinião, um terrível massacre. Seu porta-voz, o porta-voz militar de Israel, afirmou à mídia internacional que o mundo não deve culpá-los pelas imagens horríveis que verão em Gaza. Portanto, esses homens estão planejando e declarando massacres contra a população de Gaza de forma intencional, e alegarão que a responsabilidade de matar palestinos é dos próprios palestinos. Isso é totalmente inaceitável. E, a propósito, se Netanyahu se importasse com os prisioneiros de guerra israelenses, ele não conduziria esses ataques, porque eles também poderiam ser mortos pelos ataques aéreos israelenses.

Bem, Israel confirmou que vocês têm 100 reféns, entre civis e soldados. Você pode me garantir que eles estão seguros e que não serão mortos em retaliação a qualquer ação que Israel tome?

Absolutamente, tenho 100% de certeza de que nenhum palestino, nenhum membro do Hamas ou do povo irá matar prisioneiros de guerra. Isso é impossível, é contra nossas crenças, é contra nossas religiões e nunca acontecerá.

Você está me dando uma garantia disso?

Sim, mas Israel poderia matá-los com seus ataques aéreos, porque eles poderiam ser mortos com as equipes de segurança com as quais estão. Esse é o maior risco hoje. E, a propósito, deixe-me explicar que há um caminho muito curto agora para resolver o problema.

O Hamas declarou que está pronto para trocar imediatamente todos os prisioneiros civis em troca de prisioneiras palestinas nas prisões israelenses, se Israel aceitar. Essa troca pode acontecer agora, imediatamente. Todos os 100, ou qualquer que seja o número de reféns ou prisioneiros israelenses com o Hamas, podem ser trocados por prisioneiras palestinas.

Você disse prisioneiras palestinas, não homens.

Não, eu disse que todos os prisioneiros civis do lado israelense podem ser trocados pelas prisioneiras palestinas nas prisões israelenses. E os prisioneiros militares de guerra podem ser trocados por todos os prisioneiros palestinos, homens, nas prisões israelenses. É uma troca em duas etapas e é o que o Hamas está oferecendo. O Qatar está tentando mediar esse acordo. Espero que tenha sucesso e que isso leve a um cessar-fogo completo e total o mais rápido possível, para que não haja mais palestinos nem israelenses mortos.

O que você diz é muito importante, acredito que seja uma notícia que não surgiu antes. Há uma troca de duas etapas oferecida. O Qatar está sendo usado como país mediador.. O Catar já entrou em contato com o governo Netanyahu ou isso ainda está por acontecer?

Tenho certeza de que eles estão fazendo isso e o Egito também está envolvido — tanto o Qatar quanto o Egito, com certeza.

E quanto tempo você espera uma resposta de Tel Aviv?

Bem, temo que Netanyahu não se importe com isso, porque não se importa com seu povo. Se se importasse, não conduziria esses terríveis ataques.

Perdoe-me, mas em 2011, e tenho certeza de que você sabe disso melhor do que eu, Netanyahu negociou 1027 prisioneiros palestinos nas prisões israelenses em troca de um único soldado israelense

Não sabemos, essa é a resposta honesta. A bola está do lado dele: se quiser, pode aceitar imediatamente.

Qual é a resposta na Cisjordânia ao que está acontecendo em Gaza? De acordo com a imprensa ocidental, as pessoas estão assistindo e esperando, mas não tomaram nenhuma medida. Qual é a sua percepção da resposta na Cisjordânia?

Bem, talvez os palestinos não estejam tomando medidas, mas os israelenses estão. Desde ontem, o Exército israelense matou mais 19 palestinos na Cisjordânia.

Somos todos palestinos, é claro. Os palestinos aqui estão em solidariedade com seu povo em Gaza, especialmente agora que veem as atrocidades do bombardeio israelense em Gaza. E não apenas aqui, mas os palestinos em todos os lugares estão em solidariedade com o povo de Gaza, que está sendo massacrado pelas forças do exército israelense. E não apenas os palestinos, acredito que os povos do mundo árabe inteiro estão agora indignados e furiosos com o que Israel está fazendo ao povo palestino.

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