O massacre em Gaza e a escolha dos EUA

Que fará Biden em Tel Aviv, após Israel matar 500, em bombardeio a hospital? Ousará deter um aliado estratégico? Ou manterá apoio à carnificina, arriscando incendiar Oriente Médio e devastar a ordem internacional criada por Washington?

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Por Giancarlo Summa | Tradução: Antonio Martins

Título original:
“Em Gaza, joga-se o futuro do sistema multilateral”

O presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, chega amanhã a Tel Aviv para uma visita difícil, com dois objetivos talvez inconciliáveis: reafirmar o apoio inabalável dos Estados Unidos a Israel, após os ataques do Hamas em 7 de outubro passado, e ao mesmo tempo evitar que o governo de Benjamin Netanyahu desencadeie uma ofensiva total em Gaza, o que causaria um massacre sem precedentes de civis palestinos. Há dias os habitantes de Gaza vêm morrendo aos milhares sob os bombardeios israelenses e estão à beira do esgotamento, sem mais água, comida e combustível para os geradores dos hospitais, que estão lotados de feridos e corpos para enterrar. Segundo a Al Jazeera, mais de 2800 palestinos foram mortos e quase 11 mil ficaram feridos nos ataques israelenses até a última segunda-feira, e esse número está aumentando a cada hora. A invasão e ocupação de Gaza por Israel, para pôr fim de uma vez por todas ao Hamas, como anunciado por Netanyahu, arriscaria explodir o Oriente Médio inteiro, envolvendo de alguma forma na guerra tanto os países vizinhos imediatos (Líbano, Egito, Jordânia, Síria) quanto as outras potências regionais (Irã e Arábia Saudita).

O problema não resolvido da questão palestina eclodiu mais uma vez, 76 anos após a Resolução 181 das Nações Unidas, que em 29 de novembro de 1947 determinou a divisão do antigo mandato britânico na Palestina em dois Estados, dando origem à criação de Israel, mas nunca a um Estado palestino independente. É uma questão que desde o início envolveu o que é comumente chamado de “comunidade internacional”. Ao longo das décadas foi deixada apodrecer e cair no esquecimento. Após a queda do Muro de Berlim, o fim da Guerra Fria e o início das duas décadas de unipolarismo global dos Estados Unidos (encerrado aproximadamente com a crise financeira de 2008 e a Primavera Árabe de 2009), Israel e a Organização para a Libertação da Palestina, então liderada por Yasser Arafat, assinaram os Acordos de Oslo (em 1993 e 2005). Os acordos reconheceram, pela primeira vez, a existência mútua e estabeleceram um quadro de referência para o autogoverno provisório dos palestinos em Gaza e em parte da Cisjordânia. No entanto, os acordos nunca levaram à paz nem à criação de um verdadeiro Estado palestino. A Autoridade Palestina, com sede em Ramallah e herdeira da OLP, tem poder limitadíssimo na Cisjordânia e nenhum poder em Gaza. Paradoxalmente, ao não cumprir os Acordos de Oslo e, portanto, enfraquecer politicamente a Autoridade Palestina, os governos israelenses subsequentes acabaram fortalecendo o Hamas, uma milícia islâmica fundamentalista e autoritária com laços estreitos com o Irã, Catar e a milícia xiita do Hezbollah no Líbano, que tem total controle sobre Gaza desde 2006.

Sob os olhos cúmplices do Ocidente, Israel continuou a expansão ilegal de seus assentamentos nos territórios ocupados da Cisjordânia e em Jerusalém Oriental e tem restringido cada vez mais os direitos civis e políticos não apenas dos palestinos, mas também dos israelenses de origem árabe. Uma situação que o relator especial das Nações Unidas sobre a situação dos direitos humanos nos territórios palestinos ocupados, Michael Lynk, definiu de forma explícita, no ano passado, como um regime de apartheid comparável ao da África do Sul até 1991. De acordo com o relatório de Lynk, Israel se encaixa na definição de um “regime político que intencional e claramente privilegia os direitos políticos, legais e sociais fundamentais de um grupo sobre outro, dentro da mesma unidade geográfica, com base em sua identidade racial, nacional ou étnica”. Segundo o relatório da ONU, “nos territórios palestinos ocupados por Israel desde 1967, existe um sistema legal e político duplamente discriminatório, que privilegia os 700 mil colonos israelenses judeus que vivem nos 300 assentamentos israelenses ilegais em Jerusalém Oriental e na Cisjordânia”… “Outros dois milhões de palestinos vivem em Gaza, regularmente descrita como uma ‘prisão ao ar livre’, sem acesso adequado à energia elétrica, água ou saúde, com uma economia à beira do colapso e sem a capacidade de viajar livremente para o restante da Palestina ou o mundo exterior.”

UM MASSACRE PRATICADO SEM IMAGENS:

Em questão de horas, no sábado, 7 de outubro, as terríveis imagens dos corpos mutilados de centenas de civis mortos pelos milicianos do Hamas nos ataques coordenados contra kibbutzim, assentamentos de colonos e uma festa rave no deserto deram a volta ao mundo. As imagens dos civis palestinos mortos nos bombardeios israelenses em Gaza (por ar, por terra e pelo mar) circularam muito menos, principalmente nos grandes meios de comunicação ocidentais. E de Gaza, há menos vídeos sendo compartilhados nas redes sociais: as conexões de internet foram interrompidas por Israel e não há mais eletricidade para carregar os celulares. Acima de tudo, como quase sempre, na Europa e nos Estados Unidos, houve um reflexo automático de identificação: os israelenses mortos são como nós, enquanto os mortos palestinos são apenas números, rostos indistintos; afinal, vítimas de suas próprias ações.

É um filme já visto. Depois de retirar suas tropas de Gaza em setembro de 2005, Israel bombardeou a cidade inúmeras vezes e invadiu a região em três principais operações militares: Operação Chumbo Fundido (2008-2009), Operação Pilar de Defesa (2012) e Operação Margem Protetora (2014). Pelo menos três mil civis, incluindo 800 crianças, foram mortos nessas três operações, e centenas de outros nos inúmeros ataques “cirúrgicos” lançados por Israel em resposta aos foguetes periodicamente disparados pelo Hamas em direção aos assentamentos de colonos mais próximos. O último ataque do Hamas foi de uma amplitude e ferocidade sem precedentes (um total de pelo menos 1400 israelenses mortos e 3400 feridos), mas certamente não foi inesperado: a dinâmica de ação e reação se repete essencialmente da mesma forma há muitos anos.

Também se confirmou o agora habitual impasse político na OUN. Sucessivas reuniões de emergência do Conselho de Segurança – presidido neste mês pelo Brasil – não foram capazes de aprovar uma posição comum, devido à oposição recíproca entre os três membros permanentes com direito à veto do Ocidente (Estados Unidos, França e Reino Unico), alinhados com Israel, e de outro lado, Rússia e China, que propuseram inutilmente, na segunda-feira (16/10) uma resolução para o imediato cessar fogo, que teria paralisado a ação israelense. Uma posição de mediação proposta pelo Brasil poderia ser debatida no noite desta terça (17/10), poucas horas antes da chegada de Biden a Israel. Na frente humanitária, a ONU está fazendo o possível para distribuir ajuda à população palestina. Esta estava sob ultimato israelense para abandonar a parte norte de Gaza – o que precederia um gigantesca operação militar. Em uma entrevista coletiva esta manhã (17), em Genebra, a porta-voz do Alto Comissariado da ONU para os Direitos Humanos, Ravina Shamdasani, afirmou claramente que não é aceitável uma “punição coletiva como resposta aos ataques horríveis (do Hamas)”. “Tememos seriamente pelo número de civis [mortos] nos próximos dias. As operações militares não parecem diminuir, o assédio em curso em Gaza está comprometendo o fornecimento de água, alimentos, remédios e outros bens de primeira necessidade. Há indicações quotidianos de violações das leis de guerra, do direito internacional e dos direitos humanos”, acrescentou ela.

Na prática, as Nações Unidas pouco podem fazer, além de condenar (simbolicamente) os abusos cometidos e organizar a distribuição de ajuda humanitária. O impasse diplomático em relação à nova crise em Gaza assemelha-se ao da guerra na Ucrânia. A incapacidade da ONU de responder adequadamente a essa guerra e à questão palestina é mais um indicador do que uma causa da crise do multilateralismo. A Rússia levou a guerra de agressão e de anexação territorial de volta ao centro da Europa e à política externa das grandes potências. No entanto, as mesmas potências ocidentais com assentos permanentes no Conselho de Segurança que hoje criticam justamente a invasão russa e os ataques do Hamas, recorreram mais de uma vez, nos últimos anos (no Iraque, Kosovo, Líbia…) ao uso unilateral e ilegal da força militar, em violação da Carta das Nações Unidas. Nunca exerceram realmente pressão sobre Israel para que cumprisse seus compromissos e respeitasse o direito internacional. Todos sabem, desde sempre, que a única solução para a questão palestina é política, não militar, e todos preferiram fechar os olhos, devido a cálculos de oportunidade ou de consenso.

A criação das Nações Unidas em 1945 foi essencialmente uma iniciativa dos Estados Unidos para criar um mecanismo de resolução de disputas internacionais por meios diplomáticos e não militares, a fim de “salvar as gerações futuras do flagelo da guerra”, como diz o preâmbulo da Carta da ONU. O problema fundamental é que a arquitetura institucional da ONU e do sistema multilateral permaneceu praticamente inalterada por quase 80 anos, e o mundo de hoje tem poucas semelhanças com o que emergiu após a Segunda Guerra Mundial. Os países BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul), por exemplo, representam o bloco economicamente mais relevante globalmente: de acordo com o Fundo Monetário Internacional, em 2023 os BRICS são responsáveis por 32,1% do PIB global, em comparação com 29,9% do G7, uma inversão completa da situação em relação a 2000 (G7: 43,6% e BRICS 18,2%). O que costumavam ser países emergentes são hoje verdadeiras potências econômicas e progressivamente políticas. Os Estados Unidos e a União Europeia precisam reconhecer a nova realidade e abandonar a arrogância unilateralista dos últimos 30 anos. A única forma de salvar o sistema multilateral e encontrar soluções diplomáticas e consensuais para os problemas mais graves (a crise climática, as crises migratórias, o aumento dos conflitos armados) é buscar consenso, não o uso unilateral da força ou o poder de veto no Conselho de Segurança.

Não é apenas a vida dos palestinos e israelenses que está em jogo. Se Biden conseguir evitar uma guerra total em Gaza, será uma ótima notícia para todos. Se ele der seu aval (e armas) para a ofensiva desejada por Netanyahu, será uma amarga derrota para a diplomacia e a política. E para a União Europeia, cada vez mais reduzida a um aliado dócil de uma superpotência que não aceita o lento declínio de seu poder unipolar.

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3 comentários para "O massacre em Gaza e a escolha dos EUA"

  1. izac disse:

    Uma guerra de Judeus contra muçulmanos. E quem esta no prejuízo são os cristãos no meio do fogo cruzado. E os estrangeiros com enormes dificuldades de sair com ISRAEL QUERENDO os manter como reféns como faz O Ramas

  2. Gamaliel Rodrigues disse:

    Mais de 300 milhões de árabes muçulmanos espalhados por uma área total superior a 10 milhões de km2, maior que China ou EUA. A única nação hebraica não deve chegar a míseros 0,3% de toda essa área, mesmo incluindo os tais territórios ocupados. Mas, é o único estado democrático e com instituições confiáveis no meio de todas aquelas pseudo-repúblicas ou monarquias medievais. Não existe nação palestina, eles são apenas buchas de canhão dos árabe.

  3. Fellipe Andrade disse:

    Edita o texto que ainda dá tempo de evitar a vergonha!

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