Como o colonialismo criou o Hamas?

Grupo fundamentalista é fruto de 50 anos de ocupação e cumplicidade ocidental. Eleito governo em 2006, apostou numa plataforma de políticas sociais e libertação nacional. Em meio a um deserto de alternativas, ofereceu saídas à solidão palestina

Foto publicada no Business Insider Índia
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“Uma nação que não pratica a jihad não pode existir.
(…)
Deus está conosco e o Satã com eles. Lutaremos e lutaremos até recuperarmos nossos direitos e nossa pátria, se Deus quiser”.
[Sheikh Ahmed Yassin, líder espiritual do Hamas, em um discurso na Universidade Islâmica de Gaza, em 1997]

A vitória do Hamas nas eleições do Conselho Legislativo Palestino, em janeiro de 2006, impactou os meios de comunicação internacional e, ao mesmo tempo escandalizou os palestinos seculares, Israel, Estados Unidos, Europa e alguns países árabes. A popularidade do Hamas causou, e ainda causa, muita frustração na alta cúpula do Fatah que, até então, conduzia o movimento nacional palestino por mais de 40 anos.

Quando a vitória do Hamas foi confirmada, o The Guardian (2007) registrou o que seria o início de uma guerra civil na Faixa de Gaza. A imagem de um militante do Hamas, mascarado, que deixou-se filmar sentado na mesa que era ocupada pelo presidente da Autoridade Palestina, Mahmoud Abbas, declarando o fim de uma Autoridade Palestina apoiada pelo Ocidente na Faixa de Gaza, revoltou parte expressiva da sociedade palestina e ocidental. No vídeo, um dos militantes, em um ato de escárnio, finge fazer uma ligação telefônica para a então secretária dos Estados Unidos, Condolezza Rice, dizendo: “Você terá que tratar conosco agora, não há mais Abu Mazen!”.

Mais adiante, algumas lideranças do Hamas declaram a possibilidade de anistiar alguns presos políticos do Fatah detidos, entre eles Musbah al-Bhaisi, o chefe da guarda pessoal de Mahmoud Abbas, Jamal Kayed, chefe das forças de segurança e Majid Abu Shammala, alto funcionário político do Fatah na Faixa de Gaza.

Imediatamente, a União Europeia e os Estados Unidos passaram a boicotar o novo governo na Faixa de Gaza, pois o consideravam uma organização terrorista, já que se recusavam a reconhecer o Estado de Israel e a renunciar a violência. Israel passou a impor bloqueios econômicos ao território, levando a população da Faixa de Gaza a uma profunda miséria, sem conseguir enfraquecer o Hamas. Em um primeiro momento, houve uma crise intensa de abastecimento, contudo o grupo islâmico, logo, encontrou uma saída subterrânea. A construção de uma vasta rede de túneis possibilitou importar e transportar praticamente tudo, desde alimentos, automóveis até animais selvagens para um zoológico local.

Os túneis do Hamas também passaram a servir para fins militares, suprimento de armamentos e para infiltrações nas cidades israelenses.

Naquele momento, passados 14 anos dos Acordos de Paz de Oslo, os governos dos territórios palestinos da Cisjordânia e da Faixa de Gaza tornaram-se fortemente polarizados. O acirramento dos confrontos entre os dois partidos políticos, o Fatah e o Hamas, resultaram na morte de cerca de 100 palestinos.

Apesar das trágicas consequências da vitória do Hamas para a população palestina, a popularidade do Hamas não aconteceu de modo repentino. É resultado de uma incansável militância junto a população palestina residente nos territórios ocupados e nos campos de refugiados, aliado à uma longa lista de fracassos do movimento nacional palestino frente a contínua e brutal ocupação israelense.

No fim dos anos de 1980 e início dos anos de 1990, a então Organização pela Libertação da Palestina (OLP), fez algumas concessões históricas marcantes, renunciou ao objetivo de “libertação da Palestina”, ao reconhecer formalmente o Estado de Israel e abandonou a luta armada em benefício às negociações para o estabelecimento de um Estado palestino nos territórios da Cisjordânia e da Faixa de Gaza, que compreende os territórios palestinos de antes da guerra de 1967.

O Hamas, por outra parte, se opôs radicalmente aos Acordos de Paz de Oslo (1993), ao considerar que as diretrizes do acordo comprometiam os direitos básicos do povo palestino. De acordo com a visão das lideranças do Hamas, a Palestina compreende todo o território “do rio Jordão ao mar Mediterrâneo” e não apenas a Cisjordânia e a Faixa de Gaza. Além disso, o compromisso palestino de prevenir a violência, “baixar as armas”, nos quadros do famoso lema “terra por paz”, era interpretado, pelo Hamas, como uma rendição palestina.

Apesar da oposição do Hamas, os Acordos de Oslo, à princípio, foram amplamente apoiados pelo povo palestino. Na ocasião, algumas estimativas apontavam que dois terços do povo palestino se sentiam otimistas pelos prognósticos dos acordos estabelecidos entre o presidente da Autoridade palestina, Yasser Arafat e o primeiro-ministro de Israel, Yitzhak Rabin.

Contudo, embora o acordo prever a retirada total das forças de defesa de Israel da Faixa de Gaza e da Cisjordânia, de modo a prevalecer a autodeterminação da Autoridade Palestina sob esses territórios, após 10 anos houve, de fato, uma intensificação da ocupação territorial. A construção de assentamentos na Cisjordânia aumentou vertiginosamente. Quando o Acordo de Oslo foi assinado, em 1993, já existia cerca de 110 mil colonos israelenses vivendo nos territórios compreendidos pela Cisjordânia e Jerusalém Oriental. Em 2003, o número de colonos nos territórios palestinos já era superior a 700 mil.

O assassinato do primeiro-ministro Yitzhak Rabin, signatário dos acordos, por um judeu-israelense extremista, seguido pelo fracasso real dos Acordos de Paz de Oslo e, mais adiante, pelo colapso das negociações de paz em Camp David, em 2000, causou muita frustração, revolta e indignação. A fúria palestina, contudo, foi intensificada quando o líder da oposição israelense, Ariel Sharon, de modo provocativo, visitou o complexo da mesquita de Al-Aqsa, conhecido pelos judeus como Monte do Templo. A partir de então irrompeu-se a segunda Intifada palestina, conhecida como a Intifada Al-Aqsa.

Nesse ínterim o projeto de resistência do Hamas angariou mais poder e influência entre a população palestina. A violência mortal em Israel e nos territórios palestinos abalou os planos de um processo de paz e, consequentemente, fortaleceu a extrema direita de Israel.

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O Hamas – حماس – Movimento de Resistência Islâmica – foi fundado durante a primeira Intifada palestina, no fim da década de 1980. O estopim da revolta palestina foi a colisão entre um caminhão militar israelense e dois táxis palestinos no dia 8 de dezembro de 1987. O incidente deixou quatro palestinos mortos. Foi a partir de então que o recém-fundado Hamas passou a liderar uma revolta popular palestina contra o exército de Israel.

À primeira vista, o movimento apresentou uma dupla proposta: uma libertação religiosa e, ao mesmo tempo, nacionalista. Integrantes e apoiadores sentiram que era o momento de salvar a luta nacional palestina e abandonar, de uma vez por todas, as propostas de negociações de paz com Israel. De acordo com Khaled Hroub (2008), a recusa do Hamas em estabelecer acordos com Israel era justificada, tendo em vista que as negociações “estavam condicionadas ao reconhecimento palestino do direito de existência do Estado de Israel” (p.17).

O movimento Hamas tornou-se cada vez mais popular na Faixa de Gaza e na Cisjordânia. Além das estratégias de expansão dos ataques à Israel, as atividades educacionais, sociais e a propagação religiosa atraiam um vasto eleitorado palestino dentro e fora da Palestina, sobretudo nos campos de refugiados. E, por outra parte, o enfraquecimento gradual da legitimidade e da credibilidade da OLP nos territórios ocupados, tornou o movimento do Hamas muito mais forte.

Militarmente, o Hamas passou a adotar táticas controversas de ataques suicidas. Essa escolha influencia, até hoje, os estereótipos do palestino, frequentemente associado à imagem do “homem bomba”, fanático e terrorista. Nos anos 2000 os ataques com “homens-bomba” mataram centenas de israelenses. No período de Intifada, entre os anos de 2000 e 2004, “o Ministério das Relações Exteriores de Israel registrou um total de 425 ataques do Hamas, em ações que deixaram 377 israelenses mortos e 2.076 feridos, entre civis e soldados”. (DW, 2023).

Essa tática foi posta em prática pela primeira vez em 1994, em retaliação à um massacre em uma mesquita situada na cidade de Hebron. Na ocasião, um colono extremista, Baruch Goldstein, residente de um assentamento, abriu fogo contra os fiéis, matando 29 pessoas e ferindo muitas outras.

Após o massacre, a cúpula do Hamas passou a difundir a ideia de que a sociedade israelense, como um todo, deveria pagar o preço pela ocupação da Palestina, na mesma medida que os palestinos vivem constantemente sob o sofrimento e a ameaça da ocupação militar.

Por outro lado, muitos palestinos seculares, temem pela imposição moral e religiosa em Gaza. Desde que o Hamas assumiu o controle da Faixa palestina, foi estabelecido um novo sistema judicial e a criação de algumas instituições autoritárias. O governo do Hamas passou a exercer um forte controle nas regras de vestimenta feminina e impôs uma segregação de gênero nos espaços públicos. No documentário Diaries (2010), produzido pela cineasta palestina, May Odeh, é possível observar o modo como os extremistas do Hamas reprimem os meios de comunicação, a oposição política e as organizações não governamentais da Faixa de Gaza.

Em Diaries, Odeh retrata a rotina de três mulheres palestinas e os desafios de viver em um ambiente ao qual são duplamente prisioneiras: do bloqueio egípcio e israelense e do extremismo do Hamas.

A ascensão do Hamas na cena política palestina é resultado de 50 anos de fracassos pós Acordos de Paz de Oslo, acompanhado por um aumento vertiginoso da ocupação – traduzida em milhares de assentamentos e do ostensivo controle militar na Cisjordânia – pelo bloqueio da Faixa de Gaza, pelo aumento da intensidade da violência militar, da discriminação e de fundamentalismos. A causa palestina deve, acima de tudo, ser defendida como uma luta pela libertação nacional do povo palestino, como um todo, pelo estabelecimento de um Estado palestino, com fronteiras seguras e reconhecidas, ao lado de Israel.

A proposta do estabelecimento de Estado único binacional e/ou de um Estado único federado, conforme defendido, em seus devidos termos, por Hannah Arendt (2016) e Edward Said (2009), tornou-se, com o passar do tempo e com a extensão da gravidade do conflito, permeado por massacres e conflitos, uma hipótese pouco provável. No passado, no contexto da fundação do Estado de Israel, em 1950, Hannah Arendt já alertava sobre a tragédia da insistência nacionalista na soberania absoluta em países tão pequenos.

Décadas de domínio de um povo sobre o outro, décadas de ocupação territorial e militar e de negociações fracassadas fez surgir o fundamentalismo palestino na cena política da Palestina e de Israel. Um fundamentalismo que oprime os palestinos, confinados em Gaza, e que ameaça a existência de Israel.

Conforme analisado, o Hamas não existia em 1947, no contexto da partilha da Palestina. Os grupos militantes árabes e palestinos que lutaram na guerra de 1948, faziam parte do movimento panarabista. Nesta ocasião, a Nakba, traduzida por uma vasta ocupação territorial e pelo exílio de milhares de palestinos, era entendido como uma perda árabe e não tão somente palestina.

O sofrimento permanente do povo palestino, agravado pelo avanço do extremismo na política israelense, pela falência do panarabismo, pela ascensão do fundamentalismo e, principalmente, pela solidão palestina, é considerado uma tragédia humana sem fim.

A violência do dia 7 de outubro de 2023 não se justifica, em nenhuma hipótese, contudo, para condenarmos o massacre do Hamas na rave e no kibutz Re’im, é necessária a contextualização e o conhecimento da história desse movimento, entrelaçada com a colonização da Palestina. A informação é uma arma importante no combate à julgamentos preconcebidos, a demonização de um povo e aos discursos de ódio na esfera pública online e offline. O repúdio a violência deve estar acompanhado à reflexão e à empatia entre todas as vítimas.


Referência:

ARENDT, Hannah. Escritos Judaicos. São Paulo: Amarylis, 2016.

BLACK, Ian & TRAN, Mark. Hamas takes control of Gaza. The Guardian, June, 2007, avaiable at: https://www.theguardian.com/world/2007/jun/15/israel.

HROUB, Khaled. Hamas – Um guia para iniciantes. Rio de Janeiro, Difel, 2006.

PRANGE, Astrid. O conflito Israel-Hamas ao longo da história. DW, 13 de outubro de 2023, disponível em: https://www.dw.com/pt-br/o-conflito-israel-hamas-ao-longo-da-hist%C3%B3ria/a-67083953.

ODEH, May. Diaries: https://primed.tv/diaries-2/?lang=en.

SAID, Edward. A questão da Palestina. São Paulo: editora da UNESP, 2009.

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2 comentários para "Como o colonialismo criou o Hamas?"

  1. William Estefen disse:

    … DIFÍCIL ENTENDER O ATAQUE DO HAMAS A FRONTEIRA DE ISRAEL COM TAL FACILIDADE,SÓ UMA OMISSÃO DO EXERCÍTO ISRAELENSE ,COMANDADO PELOS SIONISTAS PARA DOBRAREM A OPOSIÇÃO EM FAVOR DE NETANIAHU ,JUSTIFICA !!!

  2. William Estefen disse:

    INFELIZMENTE OS PAÍSES RICOS ÁRABES ABANDONARAM A SUA PRÓPRIA NACIONALIDADE SE VENDENDO PARA A INTELIGÊNCIAJUDAICO-ISRAELENSE, CONSENTINDO UMA OCUPAÇAO SIONISTA CRIMINOSA DESDE OS SEUS PRIMÓRDIOS. IGUALMENTE A OMISSÃO DAS POTÊNCIAS NUCLEARES ANTI-EUA-ISRAEL DEIXA O ORIENTE MÉDIO SEM EQUILÍBRIO DE FORÇAS !!!

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