Guerra: os EUA entre a derrota e o desatino

Um ano após ataque ao Nord Stream, a Otan perde coesão. Alemanha sente-se humilhada. Eslováquia e Polônia podem abandonar o conflito. Ucrânia está quase sem soldados. Mas Washington insiste: é seu “ensaio” para disputas contra a China

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Por Rafael Poch, no CTXT | Tradução: Rôney Rodrigues

As guerras estão expostas a todo o tipo de reviravoltas, mas na sua fase atual a derrota militar da Ucrânia é cada vez mais evidente. Assim como a resposta dos patrocinadores ocidentais de Kiev: fornecer de mísseis de longo alcance, capazes de atingir a Crimeia e colocar cidades russas ao alcance.

Faz um ano desde o ataque que explodiu o gasoduto Nord Stream, no Báltico. Com a distância de um ano, o fato de os Estados Unidos terem atacado um interesse estratégico da Alemanha, seu principal aliado na Europa, continua parecendo um dos fatos centrais do conflito na Ucrânia. Aquele atentado teve um efeito devastador sobre aquela que é a liderança dos Estados Unidos na Europa Ocidental. Prejudicou gravemente a economia alemã e falou muito sobre a fragilidade da coesão interna da Otan; sobre até que ponto a organização militar liderada pelos EUA no continente comanda a União Europeia, o seu braço político subordinado. A omertá sobre esse fato por parte dos próprios afetados, especialmente dos humilhados políticos alemães, bem como a colaboração dos seus serviços secretos e dos seus meios de comunicação nas grosseiras e diversas cortinas de fumaça lançadas pela CIA, para disfarçar e enganar a simples realidade sobre o autoria de tudo isso, também contribui muito bem para traçar o panorama que temos diante de nós.

Esse panorama é determinado e dominado pelas eleições presidenciais do próximo ano nos Estados Unidos. Esse país é a única potência capaz de forçar a paz, mas todos os ingredientes e circunstâncias que rodearam essas eleições apontam antes para uma dinâmica de guerra; isto é, rumo à escalada do conflito aberto na Ucrânia e ao aprofundamento do conflito latente na Ásia Oriental. Vejamos.

No topo da pirâmide temos um presidente senil, Joe Biden, sobre quem a mídia teria feito uma grande farra se ele fosse um chefe de Estado russo ou chinês. Em caso de incapacidade, Biden tem ao seu lado uma vice-presidente, Kamala Harris, que se destaca pela sua incompetência. Na segunda linha, um trio de estagiários sem cérebro encarregados do dossiê ucraniano: o secretário de Estado Blinken, o conselheiro de Segurança Nacional Sullivan e o subsecretário de Estado Nuland. Este pessoal incompetentes está, por sua vez, envolvido na luta interna mais dura e espetacular no establishment de Washington desde a guerra civil, que inclui uma série de ações judiciais com o objetivos de colocar o candidato adversário na prisão. Ambos os lados criminalizaram-se mutuamente e estão firmemente convencidos de que se perderem as eleições serão julgados, portanto não podem perdê-las. Somada à possibilidade de recessão, esta pressão poderá transformar o cenário de guerra aberta com a Rússia no grande recurso de sobrevivência da administração Biden.

O jornalista trumpista Tucker Carlson, transformado em um dissidente popular e no ostracismo com a crise do establishment, resume a situação assim: “Já perdemos o controle do mundo, agora vamos perder o controle e o domínio global do dólar, e quando isso acontecer teremos uma pobreza ao nível da Grande Depressão. Já estamos em guerra com a Rússia, financiamos e armamos os seus inimigos, mas podemos ir para uma guerra direta, poderíamos fazer um ‘Golfo de Tonkin’ na Polônia (o falso incidente fabricado para justificar a intervenção no Vietnã) e dizer ‘que fez isso foram os russos.’”

No campo de batalha, as coisas não poderiam piorar para a Ucrânia. O milagre voluntário de uma contraofensiva em condições de inferioridade numérica, de artilharia e aérea não funcionou, como previam os especialistas russos, com a maior seriedade e sem qualquer ostentação, desde antes do verão. As Wunderwaffen ocidentais que custam tanto para serem fornecidas são mostradas queimando todas as noites nos noticiários russos (os soldados recebem grandes bônus por destruir veículos blindados Bradley, Stryker, Leopard, Challenger AMX-10 e assim por diante). A coisa mais terrível que tem acontecido é uma carnificina horrível e irreparável que parece impossibilitar, devido à falta de pessoal, uma nova ofensiva ucraniana na primavera (enquanto o exército russo tem uma reserva de 300 mil homens que ainda não foram ao campo de batalha) e que anuncia o colapso militar ucraniano. Isto torna cada vez mais provável que algum tipo de golpe militar em Kiev remova Zelensky e os seus seguidores do poder, impondo o realismo e aceitando grandes perdas territoriais que poderiam ter sido evitadas em dezembro de 2021 se tivesse havido uma atitude diferente.

No início de setembro, as fontes mais fiáveis estimavam entre 240 mil e 400 mil baixas ucranianas no conflito, o triplo das baixas russas (80 mil mortos em meados de setembro, segundo a BBC). Esta estimativa geral incerta encontrou a sua confirmação concreta nas declarações do chefe de recrutamento da região ucraniana de Poltava, Vitali Berezhni: “De cada cem pessoas mobilizadas no outono passado, restam entre dez e vinte, o resto está morto, ferido ou desabilitado.” Em Poltava, o plano de recrutamento foi cumprido apenas em 13%, disse o responsável, enquanto o seu homólogo em Lvov reconheceu em agosto que apenas uma em cada cinco convocações se junta às fileiras.

A deserção é generalizada. A guarda de fronteira ucraniana afirma ter impedido a fuga do país de mais de 20 mil recrutas, sendo difícil implementar a exigência do governo de Kiev de deportação dos mais de 650 mil ucranianos em idade militar registados na UE como refugiados. Nas missões diplomáticas ucranianas no estrangeiro, entre 40% e 60% dos funcionários não regressaram ao país ao final da sua estadia. Dos vinte que deveriam regressar da embaixada nos Estados Unidos no ano passado, apenas um regressou e, em algumas embaixadas, simplesmente ninguém regressa. Esta realidade de carnificina e evasão tem aparecido de vez em quando na imprensa inglesa durante um ano, mas na imprensa da UE e nacional continua a ser rara, apesar de ser fundamental para definir a situação.

Neste contexto, as exigências e recriminações das autoridades ucranianas para com os seus amigos europeus aumentam de tom. O cansaço diante ao poço – sem fundo nem resultados – do esforço financeiro e militar europeu apareceu na campanha eleitoral polonesa, temperada pelo desacordo sobre a exportação de cereais ucranianos para a Europa. O presidente Duda comparou a Ucrânia a um homem que se afoga e que pode arrastar para o fundo qualquer um que tente salvá-lo. O primeiro-ministro, Mateusz Morawiecki, disse que deixarão de enviar armas para a Ucrânia e que as novas armas compradas serão para eles se armarem. Um porta-voz do governo em Varsóvia anuncia que o apoio aos refugiados, que inclui “isenção de registro de residência e de autorização de trabalho, acesso gratuito à educação e cuidados médicos e familiares”, não será prorrogado no próximo ano.

Até à data, os refugiados ucranianos na Europa Ocidental “comportaram-se bem” e estão “muito gratos” àqueles que os acolheram, não esquecerão essa generosidade, disse Zelensky numa entrevista ao The Economist, mas “não seria uma boa ideia para a Europa se essas pessoas fossem encurraladas”, acrescenta no que parece ser uma ameaça velada de desestabilização.

Com o exército ucraniano esgotando as suas reservas e o fluxo de armas e munições ocidentais diminuindo, a solução tem sido dar um novo passo em um jogo arriscado: fornecer mísseis de longo alcance britânicos, franceses e estadunidenses (os alemães ainda estão pensando nisso) capazes de alcançar as cidades russas. Os ataques com estes mísseis à Crimeia são possíveis graças à inteligência estadunidenses e britânica e à informação e tecnologia de localização. Tudo isto são incentivos para que a Rússia expanda a sua ocupação territorial ao resto da costa ucraniana do Mar Negro, chegando a Odessa e à fronteira romena, e até para responder com ataques a alvos da Otan, para os quais Moscou parece ter capacidade missilística de sobra. Citando fontes dos serviços secretos dos EUA, o jornalista Seymour Hersh arrisca que atacar alvos da Otan era o que o chefe rebelde do grupo Wagner, Evgeni Prigozhin, defendia, e foi por isso que foi eliminado. Quem sabe, mas a prudência do Kremlin está, em qualquer caso, sendo submetida a uma prova de risco cada vez maior.

As autoridades ocidentais seguem empenhadas em provar a narrativa russa sobre a guerra na Ucrânia. Em 7 de setembro, perante o Parlamento Europeu, o eloquente secretário-geral da Otan, Jens Stoltenberg, disse que “Putin foi à guerra para evitar que mais Otan se aproximasse das suas fronteiras”, e que se a Otan e os Estados Unidos tivessem aceitado as condições que o Kremlin formulou, em dezembro 2021, a invasão da Ucrânia não teria acontecido.

Stoltenberg também reafirmou o que o chefe do Stratcom (Comando Estratégico) dos Estados Unidos, Charles Richard, já disse em novembro de 2022 sobre a guerra na Ucrânia como um “aquecimento” para a guerra contra a China. Se a Ucrânia tiver sucesso, isso permitirá aos Estados Unidos concentrarem-se na China, disse Stoltenberg este mês. “Se os Estados Unidos estão preocupados com a China, a Ucrânia precisa vencer. Se Kiev vencer, teremos o segundo maior exército da Europa e será mais fácil concentrarmo-nos na China e menos na situação na Europa.” Seja como for, a situação na Ásia Oriental é inequívoca.

O Japão duplicou os seus gastos militares e relegou para segundo plano o artigo 9º antiguerra da sua Constituição. Originário de uma família de Hiroshima, embora nascido em Tóquio, e com parentes mortos pela bomba atômica, o primeiro-ministro, Fumio Kishida, realizou obscenamente o último conclave de guerra do G-7 em maio naquela cidade sem a menor alusão a quem lançou a bomba. Na Coreia do Sul, o presidente ultradireitista, Yoon Suk-yeol, é também um militarista convicto que quer armas nucleares estadunidense instaladas no seu território (até agora suspeitava-se da sua existência fosse apenas de “armazenamento”) e recebe uma “frotinha” inteira com porta-aviões nucleares em suas águas. A Coreia do Norte continua os seus lançamentos periódicos de mísseis de demonstração e chega a novos acordos militares com Moscou. Nas Filipinas, os Estados Unidos estabelecem quatro novas bases militares e a Austrália gasta bilhões de dólares em novos submarinos nucleares para enfrentar a China. Até a Nova Zelândia não resistiu e anuncia aumentos nos seus orçamentos militares. O antigo primeiro-ministro australiano Paul Keating resumiu a situação: “Os europeus têm lutado entre si durante a maior parte dos últimos trezentos anos, incluindo duas guerras mundiais no século passado. Exportar esse veneno maligno para a Ásia equivale a dar boas-vindas a essa praga.” O secretário-geral da Otan, Jens Stoltenberg, “é um idiota total que se comporta como um agente estadunidense em vez de agir como líder e porta-voz da segurança europeia”, disse Keating.

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Um comentario para "Guerra: os EUA entre a derrota e o desatino"

  1. José Mario Ferraz disse:

    Se deus comandou guerras, como não guerrearem os estúpidos seres humanos mais selvagens do que as feras que se devoram entre si? Esta raça é tão estúpida que dizimará a si mesma.

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