Ato pela Memória da Luta – MTST

Um comovente ato do MTST de respeito e resgate das lutas passadas sentida como apenas uma inversão da necropolítica.

Foto: Bacellar\Jornalistas Livres

5 de agosto Ato do MTST

Cheguei às 18h no MASP para o ato contra a Ditadura e pela Liberdade de Imprensa. Estava escurecendo e o frio bem intenso. Quem chamou o ato foi a Frente Brasil Sem Medo.

Achei o ato e passeata corretos, foi bonito e a pauta é relevante: defesa da memória da luta contra a ditadura, fazer algum enfrentamento na rua e não ficar em casa no face. A pauta da liberdade de imprensa também foi contemplada.

Mas, apesar dos números razoáveis, umas 10 mil pessoas, a classe média não veio ao chamamento do MTST. A paralisia ainda domina a esquerda. As pessoas parece que até enxergam razões para sair, mas ninguém parece aceitar os termos dos chamamentos.

Temi que o governo esteja conseguindo conter a esquerda no espaço da melancolia e da necropolítica, ainda que seja pelo lado nobre, de homenagem aos mortos pela liberdade. Falo disso ao final.

Já tinha gente lá, umas 3 mil, e um carro de som. Quando cheguei, o carro não irradiava discursos, mas sim música. Era o “Acorda Amor”, do Chico Buarque. Achei simpático e apropriado, mas acabou por reforçar uma sensação geral de que estamos em um loop temporal onde é sempre os anos 1970 – tocaram logo depois “Sem Lenço e Sem Documento”. Isso me fez reparar mais nos muitos homens e mulheres de 50 a 60 anos, imprimindo a tudo um ar de nostalgia e certo derrotismo.

Um maluco com boné da CUT logo colou em mim e contou sua teoria sobre porque Bolsonaro venceu a eleição. Não entendi bem, acho que foi a facada, e logo saí fora. Um casal de uns 60 anos passou com sua filha jovem gritando “Bora Bolsonaro”.

Circulei por baixo do MASP e senti o clima. Tinha jovem sim, mas a maioria parecia ser do MTST. De fato, as faixas indicavam a presença de vários assentamentos: Antonio Cândido, Dandara, Chico Mendes, Marielle Vive, Copa do Povo e outros.

Encontrei N e conversamos um pouco. Vi em seguida as moças que vendiam panos onde imprimiram, penduradas num fio, as mensagens como: “Vem pra Luta Amada”, “Coragem”, “Feminismo é revolução”.

Isso me tirou do túnel do tempo e me recolocou firmemente no presente: tem sim novos atores, a luta diversificou e vai ser plural. Encontrei o companheiro S e conversamos um pouco. Ele está no geral preocupado e pensa na defesa pessoal. Ele trouxe interessante previsão: a inevitável queda de Dallagnol pode ser seguida de acolhimento por Bolsonaro: uma nomeação qualquer, talvez em substituição de Damares, enfim, qualquer posição pública serviria para afrontar quem quis derrubar o procurador e acirrar a polarização institucional de hoje. Falamos da ilusão da direita frente às realidades da extrema-direita.

Caminhei mais e vi um faixão com uns 350 retratos de desaparecidos políticos e vítimas da ditadura. Vi uma bandeira da Esquerda Marxista, da Intersindical, muitas outras do MTST, um faixão roxo da Frente Brasil Sem Medo e outra vermelha, no chão: “Fora Bolsonaro. Liberdade e Luta”. Vi um moço que vendia livros que trazia em uma bandeira do MST, no chão.

O carro de som começou a irradiar discursos, mas logo me desinteressei. Todas as falas eram corretas, combativas, mas algo repetitivas. O povo não vibrava muito, mas poderia ser o frio.

Vi a bandeira “Bueiro Periférico”, que continha um A anarquista, mas não vi autonomistas em grupo durante todo o evento. Vi um estandarte “Santa Cecília pela Democracia”. Vi uma bandeira do PCR e outra da Unidade Popular.

Uma coluna de uns 50 PMs estava no canteiro central. Não achei a presença agressiva, mas era algo acintosa: escudos e tal, mais 40 motos estacionadas pertinho.

Fui para a frente do ato, esperando a saída da passeata. Vi a faixa principal, negra, de um assentamento do MTST: “Núcleo Fernando Santa Cruz”. Umas 30 pessoas tinham às mãos uns papéis A4, de um lado fotos de desaparecidos e do outro letras, formando “Ditadura nunca mais”.

Do lado, um vendedor de bandeiras e panos trazia sua mercadoria no cordão que estendera na calçada. Dentre as mensagens, uma que me fez sorrir foi uma que vinha escrita ao lado do rosto de Lula: “Eu avisei, você não quis escutar, fora Bolsonaro!”. Achei engraçado porque me reconheci na mensagem ao mesmo tempo que ficava evidente que essa mensagem não vai alcançar aliados for da bolha dos conversos e que esta mensagem falava apenas fala à dor e ressentimento de um setor particular.

Oradores no carro de som lembravam os presos do movimento de moradia em São Paulo, entre eles Preta Ferreira, que ainda estão encarcerados. Marielle foi lembrada, e também o episódio do “monitoramento” da PM de São Paulo de uma plenária de mulheres do PSOL. Ouvi bastante críticas à política de carceragem. A questão da prisão política e da legalidade do encarceramento em geral está bem urgente para o ativismo hoje em dia.

Um moço veio me perguntar se eu queria falar para a câmera de vídeo. Declinei. Vi um cartaz em daqueles totens pretos que tem na Paulista: “Sou caçador. Caço likes de amor”.

Encontrei D e nos abraçamos. Conversamos um pouco.

Vi uma moças com cartazes feitos à mão, entre eles “Frente Evangélica pelo Estado de Direito”, e depois o faixão com o rosto de Lula: “Nada vence o amor”.

Acabou que o ato saiu em passeata, fazendo o retorno para tomar a avenida em direção ao Paraíso, buscando a rua Tutóia, antigo local de tortura e ainda uma delegacia de polícia. Eram quase 20h e o carro tocava uma canção de Elis, aquela do “como os nossos pais”. Reforçou muito em mim um certo anacronismo e uma celebração da dor por antecipação.

O pessoal foi de “Ei Bolsonaro, vai tomar no cu!” e outras clássicas palavras de ordem, dentre elas o “Pisa ligeiro…”.

O carro de som ia na frente, e fiquei mais para trás para acompanhar um batuque do MTST, mais animado. Vi um estandarte do AFRONTE, uma bandeira do ARC (Comunista), outra roxa “Resistência PSOL”, uma faixa “Respeitem as terras indígenas”, um cartaz “Menos ódio, mais democracia”, uma camiseta do RUA.

Seguimos pela avenida, passando pela frente da sede da FIESP, que estava acesa com motivos artísticos sem conexão com o asfalto. Em frente ao Shopping Cidade de São Paulo, o carro de som tocou “Divino Maravilhoso”, na clássica versão da jovem Gal. “É preciso estar atento e forte, não temos tempo de temer a morte”. Fiquei emocionado de estar na avenida com o MTST, sob Bolsonaro, e ser relembrado pela música que “tudo é perigoso, tudo é divino maravilhoso”. Mas só fez aumentar minha melancolia.

Um pouco adiante, quase tocaram outra canção com Elis, desta vez “O bêbado e o equilibrista”. Achei que ia ser demais, e rapidamente passaram para outra, tocando apenas os acordes iniciais daquela. Mas tocaram ao longo da passeata a “Suíte do pescador”, de Caymmi (“minha jangada vai sair pro mar”) e ainda o clássico samba “Barracão de Zinco”, e ainda, já na Tutóia, aquela do Vandré “Caminhando e Cantando”. Já me emocionei muito com esta canção, em privado e em público, mas de novo aquela coisa da marcha fúnebre me acossando…

A lanchonete Pupy’s tinha muitos clientes à mesa, na calçada da avenida Paulista, a despeito do frio. A maioria estava curiosa, nas alguns eram hostis e debochavam. No geral, os transeuntes que ainda percorriam s calçadas pareciam indiferentes.

Vi uma bandeira da Palestina, e uma camiseta do PCO.

Duas colunas de PMs ladeavam a manifestação, uns 120 soldados no total. Quando viramos à direita da avenida Brigadeiro Luiz Antônio, parei para contar os manifestantes. Calculei uns 8 a 10 mil.

Entramos à esquerda da rua Tutóia e seguimos pelo bairro, que é bem de classe média, com muitos prédios, alguns bunkerizados com guaritas fortificadas. Muitos moradores hostilizavam, mas outros não.

Nessa hora achei que o carro de som cumpria sua missão, que é ser um carro de guerra: o volume das falas ao microfone ganhava dos gritos vindos das janelas, e ouvir o povo todo gritar, ecoando nas ruas: “Aqui está, o povo sem medo, sem medo de lutar!” era intenso. Além disso, o carro tocou tanto “Podres Poderes”, de Cetano, quanto a Mosca na Sopa do Raul Seixas, o que era revigorante, cercado de edifícios da classe média paulistana.

Chegamos e o povo concentrou em frente à delegacia, ao redor do carro de som. Ainda falaram uns 3 oradores, incluindo o Boulos. Uma roda de pessoas com velas e cartazes atraiu as lentes de muitos fotógrafos, e um moço vestiu uma máscara de papel de Bolsonaro e tinha sangue cenográficos nas mãos. Posou com as velas e depois saiu fora.

Boulos disse que Bolsonaro já passou dos limites, declarou a eleição de 2018 fraudada, chamou Lula Livre e discorreu sobre quem era “vagabundo” de verdade no Brasil.

Eram mais de 21h quando saí a pé e subi a rua Abílio Soares.

No fim de tudo, achei que o ato foi correto e em boa hora, a memória das lutadoras e lutadores é parte importante do nosso campo, não dava para deixar sem resposta os insultos ao Fernando Cruz e a celebração da ditadura. Foi bonito.

Mas as canções antigas e o clima atual acentuaram a sensação de que eu estava num cordão fúnebre que nunca acabava e nunca saía dos anos 1970. Uma piada na esquerda hoje em dia estranha que o Chico Buarque da esquerda hoje é o… Chico Buarque! A esta altura já deveríamos ter produzido alguém à altura.

Parte da esquerda, particularmente uma canhota mais velha, parece prisioneira da melancolia das lutas passadas. Bolsonaro pode estar conseguindo forçar uma pauta de necropolítica no campo popular, só que invertida. É óbvio que a memória do que aconteceu na ditadura é politicamente importante hoje (e é correto dizer que estamos pagando o preço hoje de não ter feito como a Argentina e África do Sul, que tiveram suas Comissões da Verdade logo nos primeiros momentos da transição democrática), mas, às vezes, dá a sensação de que tudo o que conseguimos hoje é ritualizar nossa própria execução, passada e futura, para uma sociedade indiferente à nossa dor.

Hesitei em escrever isso, pois não quero cortar o gás de quem está nas ruas e nas lutas públicas. Me exaspera também que a gente não tenha saído de casa (os números de hoje foram dados pela militância do MTST). Mas a sensação da morte perpétua existe e acho que assombra muitos de minha geração.

Pode ser que paguemos o preço da esquerda não ter sido suficientemente anticapitalista: agora não tem capitalismo suficiente para sustentar uma socialdemocracia intermediária, um lulismo do possível, quanto mais uma transição para algo como o “comunismo de abundância” (possível no desenvolvimento libertário da tecnologia atual), mas não criamos ainda lastro pós-capitalista que decante em programa ou horizonte.

Então dá pânico e dá encolhimento de futuros…

Para mim, e acho que para minha geração, é muito claro que NADA SERÁ COMO ANTES: mudou o paradigma, mudou o capitalismo, mudou a economia, mudou o trabalho….

Escrevi estas linhas e fui para casa.

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