Para voltar a colocar em questão a monogamia

Os ideais românticos criam uma ética particular: o desejo sexual deve ser regrado, e o casal se bastar. Dessa lógica surge o modelo tradicional de família. E se em vez da ideia de permanência, optássemos pela construção contínua, como nas amizades?

Imagem: “A noiva” (1918), de Gustav Klimt
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> Este texto é parte da edição 286 da Revista Cult — parceira editorial de Outras Palavras. O número reúne o dossiê intitulado “Não monogamia”. Veja o índice completo e conheça o espaço Cult no OP

É quase um roteiro: basta a palavra “monogamia”, sua contraposta “não monogamia” ou suas variantes “poligamia”, “poliamor” etc. serem mencionadas que em pouco tempo estaremos diante de perguntas sobre a natureza humana e até mesmo animal. Defensores da ordem corrente dirão que a monogamia é natural; seus opositores dirão que as formas de relacionamentos múltiplos é que são naturais.

O que escapa a esses diálogos ou tentativas de convencimento é que nenhum tipo de relação é natural, no sentido de que nenhum deles vem da biologia, nenhum é inerente ao ser humano. Não existe corpo humano puramente biológico, nem biologia humana sem cultura e história, sem essa dimensão, nem essa dimensão por si mesma, independente dos corpos. Esse tipo de separação evidenciado na rusga “natureza/cultura” raramente condiz com a realidade concreta. As sociedades humanas são o único produto da natureza que organiza de forma normativa, com regras, o tesão. É isso que a não monogamia toma para questionar a Monogamia – assim, maiúscula, anunciada como sistema de normas, práticas, ideias, e não apenas ao tipo de combinado que rege este ou aquele relacionamento sexoafetivo.

Falar de monogamia ou não monogamia, poligamia, afetos, relações, famílias, namoros, casamentos, amor, é falar em sistemas de parentesco e em como as sociedades organizam simbolicamente o parentesco, a sexualidade, o casamento (o que implica também em como organizam a circulação de bens simbólicos e materiais e o compartilhamento de riqueza, entre outras coisas). Na maioria dos casos, esse é um sistema generificado, ou seja, orientado pelo gênero.

Quando bebês e crianças, aprendemos a falar e logo aprendemos que “mãe” não é “pai”, que “pai” não é “mãe”, e que cada uma dessas figuras ocupa funções diferentes em nossas vidas ou ao menos no imaginário social comum. O parentesco determina categorias e papéis e articula como as pessoas se relacionam e, mais, como é permitido que se relacionem. Nenhum parentesco é natural. Um cachorro pode se sentir atraído por uma certa fêmea sem que isso o faça questionar ou analisar o impulso sexual ou sua realização; se a fêmea for filha da mesma cadela que ele, ou se não for, tanto faz. Nós somos os únicos seres deste planeta que operamos classificações e regras – baseadas nessas classificações – sobre as práticas sexuais.

Ao organizar os princípios que orientam as possibilidades sexuais e de casamento, o parentesco determina também as impossibilidades sexuais e de casamento. No caso da nossa sociedade, entre diversas normas, muitas delas tácitas e outras já estabilizadas em categorias jurídicas, está a norma monogâmica. A Monogamia é uma norma que orienta as nossas práticas em relação à sexualidade, em relação a nossas vidas sexuais e ao afeto ligado à ideia de sexualidade. Na lógica que opera essa norma, a marca central da hierarquização das relações não familiares é a possibilidade de sexo. Possibilidade, pois nem sempre o engajamento em ato sexual comum será concretizado ou sua concretização, nem sequer desejada; trata-se de uma possibilidade e de um tipo particular de erotismo.

O que as nossas normas sociais determinam é a classificação das relações segundo este critério: relações em que é possível ter sexo ou práticas corporais mútuas sexualizadas e relações em que isso não é tido como possível, ou em que isso é um tabu. As relações familiares consideradas incestuosas são relações em que não é prevista a possibilidade de atividade sexual; mas as relações de amizade também, definidas justamente pela impossibilidade de sexo/erotismo. O trinômio amor-amigo-família aparece como a Santíssima Trindade de um desejado bem-estar emocional, afetivo, amoroso, impossibilitado pela própria estrutura que produz cada uma dessas categorias e as coloca em relação.

Família-amor-amigo

A família é uma instituição central em nosso sistema de parentesco. Pensar em família, por isso, significa pensar necessariamente em hierarquia. O critério da possibilidade de sexualização de um relacionamento é agregado nesse sistema de definições e hierarquias também como uma forma de marcar uma importância maior de certas relações sobre as demais, sendo, ao mesmo tempo, aquilo que nos separa de nossas famílias de origem e aquilo que homogeneíza sujeitos com vistas à construção de um novo núcleo familiar. A família só pode existir a partir do sexo e, mais, a partir dessa divisão entre relações potencialmente sexualizadas e relações de impedimento da sexualidade.

Dizemos, no cotidiano, que as relações em que o sexo é uma possibilidade, ou seja, relações de não amizade ou relações do tipo mais-que-amizade, são o tipo de relacionamento mais legítimo da vida adulta. Amizades e construção de amizades são tidas como atividades emocionais secundárias, ou mesmo infantis: nesse mesmo senso comum da vida prática, entendemos que a sexualidade voltada ao outro é a grande marca do início da passagem da infância para a vida adulta. A grande marca de conclusão dessa passagem, por sua vez, recuperando Freud, é o erotismo que reproduz fora da família o erotismo que teve origem no seio familiar.

Essas são determinações ligadas também à forma como organizamos a economia e a economia doméstica. São engrenagens importantes para que, na vida adulta, criemos novos núcleos familiares e a Família como instituição (e por isso aqui grafada com letra maiúscula) siga existindo. É comum, por isso, que o peso das amizades vá sendo considerado menos importante conforme se envelhece, pelo menos no senso comum. Na vida adulta, a sociedade é organizada de tal maneira que pode ser muito difícil fazer novos amigos após o fim da adolescência ou no máximo dos primeiros anos de vida adulta. Podemos dizer com alguma certeza que hoje uma pessoa de mais de 30 anos que se mude para uma cidade nova provavelmente terá mais facilidade em encontrar pessoas para transar do que para fazer amizades profundas que ultrapassem o ambiente de trabalho. Se essa pessoa já tiver “sua própria família”, o estabelecimento de amizade individual parece ficar em muitos casos ainda mais difícil, e estabelece-se uma vida social sempre por meio do núcleo familiar, o que impede a construção de espaços em que as próprias relações com outros membros das famílias sejam processadas por esses adultos, restando como escape para muitos apenas o divã.

Aqui é que chegamos ao título deste ensaio – o amor, esse que não é um sentimento. É central falar em amor, e falar em amor não como um sentimento, pois parte muito importante da manutenção dessa hierarquização das relações é a fantasia do amor. O amor é um enunciado, uma promessa. Uma ideologia. Esse sistema é todo organizado de maneira que o casal seja uma entidade isolada: cada pessoa se destaca de sua família de origem, duas a duas, formando casais, que formam então uma nova família.

Os ideais românticos de amor têm como parte central de sua ideologia a premissa ou, ainda, a ética particular de que o casal precisa se bastar. O casal é uma unidade porque é essa unidade que funda a Família, e a Família é uma espécie de supraunidade. O conceito de “família” pressupõe esse processo: um núcleo que vai se destacar de outro, que por sua vez vai formar outro etc. O que define a Família é também que suas relações devem ser hierarquicamente superiores a todas as outras relações a priori. Como dispositivo de nosso sistema de parentesco, a Família existe a partir de um conjunto de relações compreendidas como naturais, imutáveis e obrigatórias. A narrativa da consanguinidade é um capítulo à parte que eclode nesse processo e opera de maneira um tanto análoga ao que ocorre com a categoria “sexo biológico” para o sistema de gênero, escondendo as relações sociais que a produzem. O efeito e o propósito desse fetichismo em particular parece ser garantir que essa forma de dominação e distribuição desigual de poder – a Família, que é sempre uma figura da Monogamia – possa continuar existindo.

Nas amizades, ao contrário, entende-se que há uma construção permanente necessária. É mais comum que as relações de amizade permitam que enxerguemos aquilo que a relação é, inclusive assumindo a simultaneidade e a pluralidade como princípios aceitáveis: é possível ter amizades diferentes, e não há um script tão claro do que pode-se esperar e cobrar de uma relação desse tipo. Quando há percalços, a relação de amizade pode ser questionada, reelaborada, rompida, abandonada, reposicionada. As relações de família, a princípio, não. Ou pelo menos não sem que um preço alto seja cobrado provavelmente até o fim da vida e além. As relações familiares são pressupostas como permanentes. Não existe ex-mãe ou ex-filho.

Essa ideia de permanência produz, entre outras coisas, ambientes em que vulnerabilidades podem ser exploradas. Afinal, se é um dado imutável da natureza que aquela pessoa (por exemplo, um pai) tenha poder e direito sobre uma outra pessoa e seu corpo (por exemplo, tradicionalmente, uma filha), não importa a qualidade real e concreta da relação estabelecida, o vínculo existirá para sempre – assim reconhecido, por exemplo, pelo Estado e pelo Direito. Diante disso, são construídas uma série de práticas que visam primeiramente defender esse vínculo, não sendo incomum que, diante da denúncia de meninas sobre violências sexuais cometidas contra elas por pais, tios, irmãos, primos, por exemplo, a resposta da família – mesmo das demais mulheres – seja sempre de tom conciliador, como se a ruptura da relação violenta em prol da vítima fosse um mal maior do que sua manutenção em prol da continuidade do laço familiar. O amor opera, nesses casos, como uma categoria central da narrativa de manutenção do laço: amor obrigatório.

Amor obrigatório, alienação do afeto

É significativo que chamemos as relações familiares de “laço”. Um laço é sempre um instrumento de restrição não consentida de movimento, um impedimento à autonomia sobre o corpo. Amor obrigatório. Amor que se deve sentir, a priori, não exatamente pela pessoa, mas pela posição que ela ocupa e, ao menos a princípio, também por causa da posição que ocupa. As relações que podemos classificar como laços familiares são uma forma de alienação do afeto. Como no caso da alienação do trabalho, sendo o amor obrigatório um amor cujo dever suplanta qualquer outro, ele aliena a construção afetiva.

Deve-se amar a mãe por ser a mãe; deve-se amar o pai por ser o pai. O amor obrigatório opera como dispositivo por excelência desse processo de fetichismo. Assim, uma das consequências do processo é também a reificação da relação e da pessoa na relação, que carrega sempre um aspecto de desumanização – seja por uma via amorosa, como quando a mãe é alçada ao lugar de santa ou o pai ao lugar de super-herói, seja por uma via odiosa, quando pai e mãe ocupam no imaginário do sujeito o lugar de monstros absolutos e maus. A relação deixa de ser em todos os aspectos uma relação entre duas pessoas, entre dois sujeitos. Melhor dizendo, concretamente não “deixa de ser”, porque, no seio de uma instituição como a Família, essa nunca foi uma possibilidade. Esse processo permite a continuidade dessa estrutura como um todo, ao fazer parecerem naturais, dadas, estáveis, fixas, imutáveis, as expectativas e construções sociais que compõem o laço familiar. Entre elas o próprio amor obrigatório.

Dois desdobramentos disso são centrais: o papel desses mecanismos na manutenção do trabalho reprodutivo, por um lado, e, por outro, seu impacto na estruturação simbólica que organiza a vida social como um todo e produz efetivamente a dimensão da vida social que Marx chamou de “ideologia”, de forma a perpetuar, também entre os afetos, disposições próprias da nossa organização econômica e produtiva em classes sociais. Uma relação que se baseia em obrigação, ainda que afetiva e eventualmente solidária, não se norteará jamais, por princípio, pela solidariedade como eixo.

Em nome do amor obrigatório acoplado à categoria “mãe”, por exemplo, impede-se garotinhas de 10 anos de idade, grávidas após serem estupradas, de acessar o direito ao aborto. Em nome do amor de marido são cometidos feminicídios frequentes diante de pedidos de separação (ou mesmo após separações) – e perdoados. Haveria um tipo “especial” de amor, o “verdadeiro”, aquele de “namorados”, que seria o caminho da felicidade. Reclamamos que isso não seria amor “de verdade”, mas sim violência ou ausência de amor. Uma visão no mínimo puritana, senão ingênua.

Olhar materialmente as implicações das relações, recusando o jogo do amor como ideologia, nos permite questionar também como amor e Família estão enlaçados nessa trama. Pensemos por um momento em irmãos. Relações entre irmãos são, por definições, relações familiares, em que o dispositivo do amor obrigatório opera. No entanto, não importa qual seja concretamente a relação entre dois irmãos, se de muito amor ou não, um jamais terá direito ao patrimônio do outro e benefícios de cidadania do outro como um casal casado teria. Duas pessoas adultas que morem na mesma casa e paguem juntas as contas não configuram família, mesmo quando são família (no caso de irmãos), se o relacionamento não for do tipo casal. Reforçar a ideia de um amor supostamente correto, puro, bom, “amor de verdade” entre casais, esconde esse tipo de contradição e não nos deixa alcançar a crítica à Família como instituição.

O problema da instituição Família não é só de um de seus modelos, mas de sua própria concepção. Não apenas por sua evidente relação com a propriedade privada, mas pela maneira como regula e autoriza ou desautoriza o tesão e as práticas de reprodução dos corpos. Quer dizer, nesse caso dos irmãos, por exemplo, se a questão fosse meramente a propriedade privada, o patrimônio ou o trabalho de cuidados, esses dois irmãos ou dois amigos teriam o mesmo direito de um casal em caso de separação, adoção de filhos, assinar união estável etc. Mas essas categorias (irmão, amigo) já pressupõem dentro desse sistema que a relação é interditada quanto ao sexo e, portanto, não haveria a possibilidade de filho.

É a filiação que garante que as classes – e, portanto, a força de trabalho, no caso da classe trabalhadora – sigam existindo por mais uma geração. Por esse motivo, falar em Família, amor, casal implica também discutir um sistema particular de parentesco de matriz ocidental, que nomeio (e nomeamos, no acúmulo coletivo dos movimentos de resistência não mono) como Monogamia. Por esse motivo, pensar numa sociedade sem exploração, como projeto, exige também elaborar tensões que possam dinamizar a superação da Monogamia – o que demanda, em última instância, o fim da Família, do casal e a recusa ao jogo do amor como forma de entender os relacionamentos humanos.


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