Como a “austeridade” devastou a Saúde inglesa

Sistema público foi desmontado: fragmentação da gestão e cortes em milhares de leitos e postos de trabalho. Conservadores viram, na pandemia, oportunidade para acelerar privatizações — em contratos suspeitos e sem licitação

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No dia 10 de maio de 2020, o primeiro-ministro britânico, Boris Johnson, foi à televisão e rádio britânicas explicar o plano do governo para a reabertura das atividades econômicas na Inglaterra, que retiraria a Inglaterra da quarentena, em razão da pandemia de covid-19. O pronunciamento, que explicava as “etapas” desse plano, foi amplamente criticado pela opinião pública, por um lado, por ter sido confuso e cheio de inconsistências, por outro, porque o relaxamento das medidas de quarentena não havia sido recomendado por especialistas em saúde pública e infectologistas do país, que argumentam que o atual nível de contágio poderia redundar em um novo surto da doença.

Nessa altura, enquanto a população tenta entender como a vida seguirá após mais de três meses em quarentena, ecoam os ruídos políticos em direção ao renovado governo Conservador, reeleito em dezembro de 2019, em razão do péssimo resultado alcançado pelo “fantástico NHS”, como o primeiro-ministro, Boris Johnson, se referiu ao Serviço Nacional de Saúde (NHS na sigla em inglês), no início da epidemia no Reino Unido.

Os números falam por si. Das nações que compõe o Reino Unido (Inglaterra, País de Gales, Irlanda do Norte e Escócia), foi na Inglaterra que a covid-19 provocou maior número de vidas perdidas, em termos nominais e proporcionais (levando em conta a densidade populacional das nações). Até o 08 de junho de 2020, a Inglaterra registrava um total de 36.244 mortos por covid-19, enquanto a Escócia 2.415, o País de Gales 1.401 e a Irlanda do Norte 537 falecidos. O total de mortos no reino, vítimas do novo coronavírus, alcançara o impressionante total de 40.883 vítimas. Com esse resultado, o país ostenta neste momento a vergonhosa segunda posição em número de descensos decorrentes do novo coronavírus no mundo, com o pior desempenho do continente europeu. No mundo, o país só perde para os Estados Unidos, conhecido por sua privada e excludente cobertura de saúde, e para o inacreditável Brasil, com um continental, porém deficiente sistema sanitário público.

O que aconteceu, portanto, com o “fantástico” NHS? Por que o orgulho do povo britânico gerou resultados tão ruins?

Uma era de cortes, desorganização institucional e privatizações

Segundo especialistas em saúde pública, trabalhadores do NHS e críticos do governo, que se revezam nas redes de notícias e jornais britânicos a comentar o estrago provocado pela covid-19, há constantes acusações de que os péssimos resultados testemunhados advêm de dois aspectos distantes no tempo, porém relacionados.

Por um lado, algumas críticas se direcionam à demora do governo em tomar medidas mais duras, como a quarentena, para evitar que a pandemia se espalhasse, quando já havia chegado ao país. Parte dessas críticas acusam a equipe de Boris Johson por perder muitas semanas em infrutíferas discussões sobre a ideia da “imunidade de rebanho”, abandonada ainda em março.

De outro lado, as críticas se referem ao histórico de quase dez anos de cortes orçamentários enfrentados pelo setor de saúde pública, secundado por um rearranjo institucional e por privatizações, sob o comando do Partido Conservador.

Uma década de cortes liderada pelos Conservadores

No dia 22 de junho deste ano, completar-se-á o mais longo período de cortes orçamentários, em tempos de paz, da história do Reino Unido. O dia marca a data, há 10 anos, da nomeação de George Osborne para o cargo de chanceler (equivalente a Ministro da Fazenda ou Ministro da Economia no Brasil) pelo então governo do primeiro-ministro conservador David Cameron.

Sob o argumento de que era necessário acabar com a “era de irresponsabilidade” dos governos trabalhistas de Gordon Brown e Tony Blair, David Cameron dizia iniciar uma “era de austeridade”, justificando tal medida com o argumento de era necessário conter o avanço da dívida pública em relação ao PIB e o déficit orçamentário que se apresentava à época. Tudo isso adornado com um discurso sobre responsabilidade fiscal e espírito público, para “proteger os mais vulneráveis” e “planejar o futuro”.

Portanto, desde 2010, houve um corte de 40% no orçamento do governo central destinado ao financiamento dos serviços públicos locais. Tal restrição orçamentária fez com que departamentos do governo tivessem até um terço de redução de seu orçamento; e a maioria dos trabalhadores do setor público tiveram que conviver com o congelamento de seus salários por muitos anos.

Na saúde, especificamente, até 2019, o deprimido orçamento resultou na escassez de 40 mil enfermeiros e 7 mil médicos, que acompanharam a redução de postos de saúde e clínicas especializadas. Esse cenário foi revelado após uma auditoria no setor, promovida pela Health Fundation, em parceria com o thinktank The King’s Fund, que também indicou que houve um aumento de 8% no número de pacientes registrados no sistema no mesmo período, colocando ainda mais pressão sobre a já estressada estrutura do NHS.

Mas são os números de leitos que melhor evidenciam o impacto do período de austeridade, especialmente durante a pandemia de covid-19. Desde o início dos cortes, foram eliminados cerca de 32 mil leitos hospitalares, só na Inglaterra. Esse foi praticamente o mesmo número de leitos que o NHS se esforçou para disponibilizar para pacientes com covid-19, isto é, 33 mil leitos, que foram improvisados às pressas e liberados pelo sistema.

Quando a doença começou a se espalhar pela Europa no começo desse ano, o Reino Unido figurava entre os 24 países mais vulneráveis em relação ao número de leitos de UTI disponíveis por habitante, com apenas 6,6 leitos para cada 100 mil habitantes. Enquanto a Alemanha, um dos países em situação mais confortável, ostentava 29,2 leitos para cada 100 mil. O Brasil, para se ter uma ideia, tem uma média abaixo de 2 leitos de UTI a cada 100 mil habitantes na rede do SUS.

A Desorganização Institucional

Para além dos cortes orçamentários, o NHS foi reorganizado durante o governo do primeiro-ministro David Cameron, sob a batuta do então secretário de saúde, Andrew Lansley. Partindo de um processo de reorganização e fragmentação, que havia começado anos antes, nos governos trabalhistas de Tony Blair e Gordon Brown, a reorganização promovida pelos conservadores, em 2012, aprofundou radicalmente a pulverização do sistema.

Nesse período, as autoridades sanitárias regionais e os observatórios de controle de doenças infecciosas, que estavam sob a coordenação da Agência de Proteção à Saúde (PHA na sigla em inglês), e que foram essenciais durante a epidemia de gripe suína em 2009, acabaram sendo desmantelados pela reforma de Lansley.

A proposta de reorganização era reduzir a máquina pública e entregar às autoridades locais parte da responsabilidade pelas ações de controle e inteligência sanitária. Em substituição aos observatórios e as equipes de controle regionais responsáveis pela inteligência sanitária, a reforma de 2012 dos conservadores criou outra agência, chamada Saúde Pública Inglesa (PHE na sigla em inglês), que hoje tem concentrado toda a resposta à epidemia de corona vírus.

Ouvido pelo jornal The Guardian, o professor de saúde pública europeia da Escola de Higiene e Medicina Tropical de Londres, Martin Mckee, argumenta que todo esse processo de rearranjos institucionais redundou em “um grande enfraquecimento e fragmentação do setor público de saúde, com consequências diretas [no combate] a covid-19”. Já uma ex-diretora de uma das extintas unidades de saúde primária do período pré-reforma, Julie Hotchkiss, acrescenta: “Eles pegaram um sistema de saúde pública perfeitamente funcional e fragmentaram”.

Em resposta aos questionamentos do jornal The Guardian e os comentários de seus críticos, Lansley argumenta que o sistema já estava fragmentado quando as reformas de reestruturação foram promovidas e que “o problema foi o dinheiro” e a continuidade da reorganização, interrompida com a sua saída, em 2015.

As privatizações no combate contra a covid-19

Todo o processo de reorganização da saúde pública britânica abriu espaço para a crescente privatização do setor, que tem tomado contornos ainda mais claros durante a pandemia de covid-19. Desde o início da pandemia, o governo britânico tem confiado parte significativa das ações de combate ao vírus através de expressivos contratos com grandes empresas prestadoras de serviços, como a Serco, a G4s, a Mitie, a Sodexo, a Randox, a Deloitte, a PricewaterhouseCoopers, a Ernst & Young e a Amazon. Algumas dessas ganharam seus contratos sem processo licitatório e, portanto, sem concorrência, para fornecer desde refeições e equipamentos de proteção para os profissionais de saúde, até serviços de testagem e rastreamento telemático de potenciais infectados pelo novo coronavírus.

Um dos contratos mais comentados é o com a empresa Faculty, especializada em serviços de tecnologia da informação, e que havia trabalhado na campanha pró-Brexit para o Partido Conservador. Já durante o governo de Johnson, a empresa conseguiu angariar sete contratos com o governo britânico no intervalo de 18 meses. Agora, ela irá participar da elaboração e implementação do aplicativo de rastreamento de potenciais doentes de covid-19.

A criação de um sistema de rastreamento de infectados que o NHS tornaria disponível através um aplicativo de celular desenvolvido pela empresa privada NHSX, um segmento tecnológico do sistema de saúde britânico – contando com parceiros privados, como a Palantir, a Amazon, o Google, a Microsoft, além da Faculty, foi uma das promessas do secretário de saúde pública e assistência social, Matt Hancock, em meados de abril.

Além das críticas a respeito da transparência desses contratos, há ainda críticas a respeito da inexperiência dessas empresas no setor sanitário. Esse é o caso, além da Faculty, da empresa Serco – especializada em prestação de serviços públicos na área da justiça, que atua no Reino Unido e no exterior, e cujo chefe executivo, Rubert Soames, é neto do ex-primeiro ministro Winston Churchill. Segundo revelou o jornal The Observer, a Serco conseguiu um contrato de 45,8 milhões de libras para gerenciar e implementar o programa de testagem e rastreamento do NHS, mesmo não tendo experiência no setor e, ainda por cima, tendo recebido, a pouco mais de um mês, mais uma multa por descumprimento de contrato com o governo britânico. A recente multa de 1 milhão de libras soma-se a outras, chegando no acumulado de 18 milhões em penalidades contratuais. O jornal lembra ainda que um dos auxiliares do ministro da saúde, o assistente Edward Argar, é um ex-lobista da Serco.

No dia 4 de junho, o jornal The Guardian informava que o chefe de operações do NHS, Tony Prestedge, admitia que o sistema de rastreamento, lançado em fins de maio, só estaria funcionando plenamente por volta de setembro ou outubro. Isso fez as críticas aos contratos privatizadores aumentarem ainda mais.

E agora, Johnson?

Nesse meio tempo, cientistas advertem que o relaxamento das medidas de distanciamento social e o retorno das atividades econômicas não essenciais, que estão sendo levadas a cabo pelo governo, são precipitadas. E que, com isso, poderá ocorrer uma nova onda de contágio pelo novo coronavírus, e que essa onda atingiria o NHS durante os meses de inverno, quando o sistema já enfrenta sobrepressão em razão da sazonalidade de algumas doenças relacionadas ao tempo frio.

Assim, resta saber se, ao ignorar uma vez mais os especialistas sanitários, estarão o primeiro-ministro e seus conselheiros conduzindo o sistema de saúde britânico a um “colapso fantástico”.

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2 comentários para "Como a “austeridade” devastou a Saúde inglesa"

  1. Djalma Nery disse:

    Texto excelente e muito didático para compreendermos os pormenores e as causas do cenário de crise do sistema de saúde público da Inglaterra. Incrível como mesmo neste cenário, o Partido Conservador segue insistindo e investindo em ações de privatização dos serviços e soluções para a saúde, o que vai na contramão do que podemos aprender em tempos de pandemia. A saúde não é uma mercadoria; ela é uma área estratégica e fundamental para o bem estar da população; ela deve estar cada vez mais sob controle da administração pública direta e do Estado, em todos os seus desdobramentos, para que seus interesses não sigam sendo tutelados pelo mercado e pelo lucro.

    Grato demais pela matéria!

  2. josé mário ferraz disse:

    É a isso aí que é povo civilizado?

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