Tudo pode ser melhor, mostra a Argentina

Covid sob controle. Ampliação dos gastos sociais. Apoio à Economia Solidária. Em meio à quarentena, vizinhos indicam que saída avançada da crise é possível, e preparam-se para nova disputa – agora, contra a oligarquia financeira

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Um fantasma tira o sono de Jair Bolsonaro: a vizinha Argentina demonstra, por contraste, que a covid-19 pode ser enfrentada com custo humano e político infinitamente menor. Na terça-feira (19/5), dia em que o Brasil quebrou um novo recorde macabro, e registrou 1179 mortes, apenas 11 argentinos perderam a vida. Sim, as populações são diferentes, mas o contraste persiste quando se examina o índice de mortes. Aqui, são 85,6 por milhão de habitantes; lá, quase onze vezes menos: 7,93. Ao invés de instigar conflitos, o governo uniu o país. A quarentena foi adotada antecipadamente. Os cientistas, convidados a participar da formulação de políticas. Mesmo em situação financeira precária, após quatro anos de neoliberalismo ruinoso, o Estado age para minorar o dano social – e envolve a população. Como resultado, 81,1% da população consideram ótima ou boa a gestão da crise.

Um fantasma tira o sono de Alberto Fernández, o presidente argentino. A oligarquia financeira não aceita que uma sociedade coloque o bem-estar público à frente do pagamento de juros. A partir desta sexta-feira, 22/5, o país pode entrar novamente em moratória, o que o colocará em curto-circuito com os grandes bancos e fundos do mundo – e pode provocar uma tempestade global. Fernández anunciou desde a campanha à Presidência, no ano passado, que não aceitaria manter os pagamentos em níveis que continuassem colocando o país na lona. Na Argentina, tradicionalmente o país mais rico da América Latina, agora 40% da população está abaixo da linha de pobreza.

Ainda em março, apresentou uma proposta clara e estruturada de renegociação. Não se recusa a pagar, mas quer três anos de alívio, para recompor a economia nacional alquebrada. Exige que os juros sejam compatíveis com o que pagam países muito mais ricos. O plano, sofisticado, tem o apoio explícito de economistas do mainstream, como Joseph Stiglitz e Jeffrey Sachs. Sequer o FMI se opõe, por motivos que veremos adiante. Mas a Argentina terá de enfrentar e vencer um novo tipo de instituição financeira. Mega-fundos de investimento, que têm nomes pouquíssimo conhecidos (Black Rock, Franklin Templeton, PIMCO e outros) mas trilhões de dólares em ativos, compõem o que é chamado “sistema bancário das sombras” (“shadow banking system”). Credores da maior parte dos títulos da dívida argentina em mãos privadas, recusam-se a negociar. São, por sua agressividade, uma espécie de Jair Bolsonaro do capitalismo financeirizado. Fernández e a Argentina terão de vencê-los.

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Os resultados radicalmente distintos, que Brasil e Argentina colhem agora em face da covid-19, são consequência direta das decisões de seus governos. Brasília comportou-se como uma espécie de Washington tropical. Buenos Aires atuou como uma Pequim das Américas. Os dois países foram atingidos pela pandemia quase ao mesmo tempo. O primeiro caso brasileiro foi constatado em 25/2; o argentino, uma semana depois. Mas a primeira morte em Buenos Aires sobreveio em 7/3, uma semana antes do óbito inicial em São Paulo. A diferença esteve nas respostas. Além de rastrear os contatos sociais de cada doente (o que jamais foi feito no Brasil), o ministério da Saúde argentino submeteu a quarentena, já a partir de 10/3, todos os estrangeiros que chegavam a seu território, procedentes da China, Coreia do Sul, União Europeia ou Estados Unidos. No Brasil, nunca houve controle algum de viajantes capazes de introduzir o vírus no país. No mesmo dia, Bolsonaro encontrava-se em Miami com Trump e opinava, sobre o novo vírus: “muito do que tem aí é fantasia, não é tudo aquilo que a mídia propaga”.

Duas políticas, dois resultados: No dia em que Fernández decretou a quarentena radical, o índice de mortos por milhão na Argentina era o dobro do brasileiro. Hoje, a taxa brasileira é dez vezes maior

Em 20 de março, Fernández decretou, na Argentina, “isolamento social preventivo e obrigatório”. Até então, mostra o gráfico abaixo, o índice de mortes por milhão era, na Argentina, o dobro do brasileiro. Mas três fatores, que caracterizam a quarentena argentina, contribuíram para conter fortemente a pandemia — que disparava por aqui. O primeiro foi o rigor. Pode-se sair de casa apenas uma vez a cada dois dias (o controle é feito, par ou ímpar, segundo o algarismo final da carteira de identidade). O raio de circulação é de, no máximo, 500 metros. A multa, em caso de descumprimento, é equivalente a R$ 7 mil.

A segunda característica, oposta a esta apenas na aparência, revela o que filósofos como Giorgio Agamben ainda não foram capazes de compreender. Em tempos de emergência sanitária, o controle da circulação é de fato necessário. Mas ele não implica, necessariamente, aumento do poder do Estado sobre os cidadãos. Na Argentina, as medidas restritivas foram adotadas com forte participação social. O presidente Fernández afirmou, desde o primeiro momento, que “entre a Vida e a Economia, fico com a primeira”. Mas a Casa Rosada, consciente de que precisa dar repostas às duas dimensões, formou um comitê de sanitaristas, trabalhadores e empresários para assessorar permanentemente o governo, em cada passo das medidas. É triste comparar com a arrogância e o belicismo permanentes de Bolsonaro…

À quarentena, correspondeu proteção social. Em 31 de março, o governo baixou, após diálogo com as centrais sindicais, um Decreto de Necessidade e Urgência, instrumento semelhante às Medidas Provisórias, por meio do qual o Estado proibiu as demissões de trabalhadores. Mas foi além disso. Para amparar as empresas, em tempos de dificuldades, o Estado garantiu o pagamento de 50% dos salários, sempre que se demonstrasse queda importante das receitas. E um crédito especial, com taxa de juros zero, foi aberto para pequenas empresas e microempreendedores.

As medidas de desembolso estatal foram acompanhadas por outras – em certos casos, muito inovadoras – de participação popular. Para dar assistência aos infectados leves, surgiu o movimento El Barrio cuida al Barrio. Quem visita as casas, onde pode haver possíveis doentes, não são funcionários do Estado, mas mobilizadores populares articulados pela União de Trabalhadores da Economia Popular (UTEP) que tem, entre suas origens, a dos movimentos piqueteiros. Por decisão do governo, o Mercado Central de Buenos Aires passou a ser gerido por Marcos Levaggi, um dos líderes do movimento agroecológico na Argentina. Referência da União dos Trabalhadores da Terra (UTT), ele tornou-se conhecido por liderar os verdurazos. Eram atos nos quais os cultivadores de hortas rurais na periferia de Buenos Aires desafiavam a polícia, ocupavam as praças principais de Buenos Aires e outras cidades e vendiam, em pleno período neoliberal, seus produtos diretamente à população.

A terceira característica da política argentina contra a covid-19 foi a busca de união nacional. No Brasil, Bolsonaro provoca dos governadores à China e cria, em meio à crise sanitária, um ambiente de tensão constante. Na Argentina, Fernández incluiu em seu esforço contra a pandemia também a oposição. A atitude generosa neutralizou a oposição mais estridente. A adesão ao distanciamento social superou os 75%. A partir de 11 de maio a quarentena começou a ser, provisoriamente, relaxada – exceto na região em Buenos Aires, por enquanto. A tendência é que mesmo os traumas econômicos sejam muito menos dramáticos, quando se governa de modo inteligente. Mas há um limite: a ditadura financeira.

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O Estado argentino pode emitir pesos, para fazer frente às despesas econômicas que enfrentará, em sua abordagem inovadora à crise. Mas, para parte de seus gastos, a Argentina precisa de outro dinheiro. Ela importa remédios, eletrônicos, equipamentos de saúde, bens industriais diversos, tecnologia. Para adquiri-los precisa de moedas fortes – dólares, em especial. E o sistema financeiro global, por onde giram estes dólares, cobra-lhe uma dívida impagável, nas condições atuais.

Quando os governos peronistas foram batidos nas urnas, em 2015, a dívida externa argentina era próxima de zero. Os quatro anos ultraliberais de Maurício Macri produziram uma combinação particular de desnacionalizações, devastação dos direitos sociais e… populismo. O Estado abriu as portas da economia ao capital externo. As corporações internacionais que passaram a controlar os serviços públicos foram autorizadas a impor um tarifazo. Contrarreformas trabalhistas eliminaram direitos sociais. Os impostos pagos pelos mais ricos e pelas corporações foram reduzidos. Para compensar parcialmente as perdas da maioria, Macri escorou-se em políticas “compensatórias”, que quebraram o Estado argentino. Praticamente zerada, no momento de sua posse, a dívida externa argentina em dólares subiu para cerca de US$ 120 bilhões. Os juros tornaram-se impagáveis. Em junto de 2018, Macri recorreu ao FMI. O Fundo concedeu-lhe o maior empréstimo de toda sua história: U$ 57 bi. O crédito era de altíssimo risco político. Se Macri se reelegesse – o que então parecia provável –, as duas partes chegariam a um arranjo. Caso contrário, sobreviria uma crise certa.

No final do ano passado, a aposta de Macri, da oligarquia financeira global e do FMI fracassou. Um gesto inesperado da ex-presidente Cristina Kirchner sacudiu o tabuleiro político, ao desarmar uma polarização despolitizadora com a qual os neoliberais contavam. Numa disputa com Macri, Cristina provavelmente perderia. Ao recuar para a vice-presidência, e indicar Alberto para a cabeça da chapa presidencial, ela mudou o jogo.

Sob Alberto e Cristina, Buenos Aires formulou uma estratégia sofisticada para renegociar a dívida. O primeiro passo foi neutralizar o FMI. Embora partidário do neoliberalismo, o Fundo é uma instituição multilateral – e, em teoria, politicamente neutra. Além disso, o empréstimo gigante à Argentina, sob Macri, desequilibrou seu balanço. O que menos o Fundo deseja, hoje, é uma disputa que exponha o viés ideológico do crédito feito em 2018. A Casa Rosada usou sagacidade para tirar proveito deste contrapé.

Apresentada em meados de março, a proposta de reestruturação da dívida argentina dirige-se apenas aos credores privados – em sua maioria, fundos mastodônticos como o Black Rock, o Franklin Templeton e o PIMCO. A eles, Buenos Aires deve U$ 66 bi. Paga hoje juros de 7% ao ano – totalmente fora dos padrões globais, em torno de zero. Exige derrubar esta taxa para 0,5%, com três anos de alívio.

Em 22 de abril – cerca de um mês após lançar sua proposta de reestruturação – o governo de Alberto Fernandez lançou um sutil desafio. Deixou de pagar, aos credores privados, uma pequena parcela da dívida, equivalente a U$ 506 milhões – menos de 1% do total. Condicionou a retomada do pagamento à aceitação dos novos termos. Os credores que aceitaram o lance, desde então, detêm apenas 15% dos títulos.

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Os megafundos são um novo predador, na selva dos mercados financeiros globais. Surgem no ambiente de desigualdade extrema. O Black Rock, que reúne sozinho investimentos de 3 trilhões de dólares – o dobro do PIB do Brasil – surgiu apenas em 1988 e cresceu vertiginosamente desde então. Os megafundos não são regulados pelos Estados ou Bancos Centrais. Não operam junto ao público – portanto, não têm reputações a zelar, nem são sujeitos a pressão social. Surfam e ganham na imensa montanha de papéis surgida no período neoliberal. Nada têm a perder. Tudo indica que, contra a proposta de Buenos Aires, pagarão para ver. Na próxima sexta-feira (22/5), quanto tiverem se passado 30 dias do não-pagamento da minúscula parcela, a Argentina estará tecnicamente em moratória. As consequências são, por enquanto, imprevisíveis.

O caso argentino é importante não apenas por se tratar de um país vizinho, nem por escancarar a brutalidade da opção de Bolsonaro. O cenário expõe, com clareza máxima, algo mais profundo. Diante da pandemia, há duas escolhas. As sociedades e os Estados podem dobrar-se diante da oligarquia financeira. Aceitar que trilhões de dólares se produzam para salvar bancos e corporações. Renunciar a exigir que o dinheiro seja emitido para todos, como um Bem Comum. Resignar-se às políticas de redução de direitos sociais e de desmonte dos serviços públicos que serão (como no pós-crise de 2008) certamente lançadas, quando a poeira baixar.

Mas as sociedades podem, também, erguer-se em defesa tanto da Vida quanto de uma nova Economia. Valerá acompanhar este exemplo rebelde — que não vem de uma utopia futura mas de um país que está ao lado – a partir desta sexta-feira fatídica.

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9 comentários para "Tudo pode ser melhor, mostra a Argentina"

  1. Euflosino Domingues Neto disse:

    Quem começa escrever mentiras acaba sendo desacreditado, informam no artigo que o pais não tinha divida Externa, anes de Macri, e que hoje tem uma grande mas não é verdade, só cricar no google e ver a evolução da divida Argentina no tempo. Pode ter aumentando sim, se foi ou não uma decisão polittica acertada o tempo talvez dirá.

  2. Euflosino Domingues Neto disse:

    Os pensamentos de esquerda, pode levar a Argentina a se tornar uma venezuela, embora lá eles tinham a maior empresa do petroleo do planeta e mesmo assim quebraram feio. A Argentina tem uma base agricola muito boa, mas os agricultores não aguentarão o pais nas costas, principalmente quando o governo começa a querer estatizar as propriedades agriculas que com certeza deixará de receber imposto deste setor e ainda custará muito mais caro a produção e nofinalo povoterá que pagar o prejuizo. É muito facil culpar os particulares por vender os espelhinhos para o povo em geral, mas o povo em geral deveria em se preocupar em não comprar os espelhinhos ou ser instruidos a viveram de forma autosustentavel, de produzirem economia familiar própria e sem subsidio. Cadavez que a esquerda interfere na economia (lei da oferta e procura) cria um desequilibrio que alguem terá que pagar com o tempo, criar subsidio temporário somente para o consumo e não para a produção implicará em faltar produtos para consumir amanhã, e não ter mais recursos para subsidiar o consumo que se preocupou hoje. Empobrecer os mais risco que produzem para ajudar o pobre de hoje a consumir sem produzir, implicar em menos produtos no futuro, e não terá mais de como tirar do rico se o empobreceu e o Estado que tomou, não produzirá a contento para continuar a dar aos subsidiados. O populismo do Estado esquerdista que encontram apoio popular daqueles subsidiado que recebem pode levar a pobresa extrema geral como na Venezuela e Cuba.

  3. ___ disse:

    Melhor ainda fez a Venezuela, não chegou a dois mil casos com apenas 20 mortes. Uma maravilha de país…

  4. Henrique disse:

    Lamentável publicação.
    Não concordo com a posição adotada, ainda mais quando ciente que o responsável pela derrocada da economia argentina e a miséria em que se encontra foi o governo peronista que dominou o cenário político argentino dos últimos trinta anos, em especial a atuação catastrófica ao casal “kishiner”, que fechou a tampa do caixão com moratória em cima de moratória que se estendem a duas décadas. Mais uma moratória será só a constatação do fato de que a Argentina não honra seus compromissos.
    A pergunta que fica é: Que credibilidade devemos dar ao governo argentino que inclusive deve ao Brasil, recursos emprestados pelo BNDS e por fundos de investimentos dos trabalhadores brasileiros? Os nossos trabalhadores estatais aposentados também serão prejudicados por está moratória.

  5. ... disse:

    Nossa. Ficou sem destilar veneno e ódio por quanto tempo?
    Cuidado com tanto ódio. Faz mal ao senhor.

  6. ........ disse:

    A moeda tem dois lados. Não adianta olhar só para um e achar que é a resposta.
    A Argentina irá quebrar. O problema deles neste ano pode parecer pequeno. Mas será muito maior do ano que vem.
    Parar um país não é tão simples e gentil com as pessoas como esta matéria parcial quer mostrar.

    Se a única coisa que importasse fosse a quantidade de mortes por covid, eu concordaria. Mas não é. Sempre olhe para o outro lado da moeda. Queda de economia, não é algo supérfluo quando em larga escala. Pode significar milhares morrendo de fome em médio prazo.

    Ninguém pode afirmar que uma estratégia é melhor ou pior até o final dos acontecimentos. Um pais que morre 3 mil por mês pode parecer estar fazendo errado diante de outro que morre “apenas” mil. Mas quarentena alonga a jornada. E se este primeiro país enfrentar o corona em 3 meses e o outro que morria menos precisar de 10 meses? No final quem estava certo? E se o primeiro morrerem mil de fome no total e o segundo 100 mil?

  7. josé mário ferraz disse:

    Ótima matéria. Diretamente ao cerne da questão que é o mundo seguir indiferente a orientação de considerar os interesses dos parasitas sociais do sistema financeiro acima dos interesses da juventude, a força que o move. É indo direto ao ponto nevrálgico da cultura individualista do venha a mim que se deve encetar a luta de resgatar a juventude da pandemia da letargia mental que a envolve de modo tão avassalador que tirou dela por completo o interesse no futuro de seus filhos ao transformá-los em outros doentes mentais. É mais do que necessário desnudar com clareza a falta de senso em se conformar com uma administração pública voltada para cuidar de interesses avaros de viciados em riqueza, monstros de cuja boca escorre baba de dragão e que não obstante sua monstruosidades consciência prostituídas os defendem. Veja-se, por exemplo o absurdo da introdução do livro A Moralidade do Capitalismo: “O termo capitalismo não se refere somente aos mercados para a troca de bens e serviços, que existem desde tempos imemoriais, mas ao sistema de inovação, geração de riqueza e transformações sociais que trouxe prosperidade para bilhões de pessoas…”. Aí está, pois, a prova de que por pior, mais canalha, devasso, cretino, criminoso, cruel e tudo que possa haver de ruim num sistema de governo não lhe falta um Maquiavel para babar-lhe o saco.

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