Guiné-Bissau à sombra de novo golpe de Estado

Desde recém processo de descolonização em 1973, país vive fragilidade democrática assolada pela pobreza, tensões militares e o narcotráfico. Agora, nova crise institucional ameaça intervenção das Forças Armadas e cenário de guerra civil

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Por Maria do Carmo Rebouças dos Santos, no Le Monde Diplomatique Brasil

Não obstante sua luta pela libertação nacional ser reconhecida – não com o status que mereceria – como a mais bem sucedida guerra pela descolonização africana e Amílcar Cabral figurar como uma das grandes personalidades do século XX, a Guiné-Bissau, pequeno país situado na costa Ocidental africana, ainda continua a lutar para ser sujeito da sua própria história.

O ano começou em meio a uma crise institucional por suspeitas de fraude no processo eleitoral para presidência da República. Desde a libertação conquistada em 1973 até a atualidade, o país passou por curtos períodos de estabilidade política.

Uma década de guerra pela independência da colonização portuguesa, uma prolongada instabilidade que se refletiu em golpes de Estado, uma guerra civil em 1998, o assassinato do presidente da República em 2009, acompanhado de várias tensões políticas causadas pelos militares, pelo narcotráfico e pela “etnificação” da política que culminou no último golpe de Estado de abril de 2012. Após ser administrado por um governo de transição sob o escrutínio da comunidade internacional, somente em 2014 o país conseguiu realizar eleições democráticas.

É com esse pano de fundo que a Guiné-Bissau chegou ao século XXI, com uma Missão para a Consolidação da Paz da ONU instalada no país, baixo desenvolvimento relativo e alta dependência da ajuda externa, reforçada pelas representações negativas de pobreza, fragilidade democrática e institucional e narcotização imputadas por instituições internacionais como Banco Mundial, FMI e ONU, somado ao fato de não possuir riquezas minerais e ainda colocar em risco a segurança dos países do Norte1.

Processo eleitoral

O último episódio dessa longeva instabilidade política foi o processo eleitoral de 2019. Sendo um país semipresidencialista, na Guiné-Bissau as eleições são para a escolha de presidente da República – chefe de Estado – e parlamentares que indicam o primeiro ministro – chefe de governo.

As eleições ocorreram em momentos distintos. Em março de 2019 foram realizadas as eleições para o Assembleia Nacional Popular (ANP). Com maioria formada a partir da aliança representada pelo Partido Africano para a Independência de Guiné-Bissau e Cabo Verde (PAIGC), que indicou para chefia de governo do presidente em exercício, José Mario Vaz, o deputado Aristides Gomes.

As eleições para presidente ocorreram em dois turnos em 2019: o primeiro em 24 de novembro e o segundo em 29 de dezembro e contou com a participação de observadores internacionais no último turno.

Na reta final, as eleições estavam para ser definidas entre dois candidatos: Domingos Simões Pereira, do PAIGC e Umaro Sissoco Embaló do Movimento para a Alternância Democrática (MADEM G15), partido formado por dissidentes do PAIGC, este último apoiado pelo ex-presidente José Mário Vaz e por vários outros candidatos, todos perdedores do páreo eleitoral do primeiro turno.

O resultado provisório do segundo turno proclamado, mas não publicado, pela Comissão Nacional Eleitoral (CNE), em 1 de janeiro de 2020, indicava a vitória de Umaro Sissoco Embaló com 53,55% dos votos contra 46,45% 2. para Domingos Simões Pereira.

Caos político

Desde que foi anunciado o resultado provisório Guiné-Bissau está imersa em um caos político representado pela impugnação judicial das eleições em 3 de janeiro pelo candidato Domingos Simões Pereira, que denunciou fraude no processo eleitoral e que resultou, em 11 de janeiro, na suspensão do processo eleitoral determinada pelo Supremo Tribunal de Justiça (STJ)3.

A situação se agravou com a decisão do suposto vencedor, candidato Embaló de ser investido no cargo de presidente em 27 de fevereiro com o resultado da eleição ainda sub judice e contrariando preceitos constitucionais que determinam que a posse seja dada pela Assembleia Nacional Popular. Tal ato ocorreu em um hotel da capital e contou com a participação do segundo vice-presidente da Assembleia Nacional Popular4, deputado Nuno Nabian que, sem base legal lhe deu posse e do presidente da República José Mário Vaz que lhe transferiu o cargo.

Como seu primeiro ato, em 28 de fevereiro, Embaló assinou o Decreto Nº 01/2020 demitindo o governo de Aristides Gomes tendo como justificativa a suposta atuação inapropriada por denunciar a posse junto a comunidade internacional como golpe de Estado. Com o Decreto Nº 02/2020, na mesma data, nomeou Nuno Gomes Nabian como Primeiro-Ministro.

A Assembleia Nacional Popular e o gabinete do Primeiro-Ministro não reconheceram a posse e, em razão da vacância do cargo de presidente, em 28 de fevereiro, como determina o art. 71 da Constituição do país deram posse como presidente interino ao presidente da ANP, deputado Cipriano Cassamá do PAIGC.

Em meio a diversas denúncias de lideranças políticas, da Assembleia Nacional, dos Tribunais de Justiça e da imprensa, além da intervenção das Forças Armadas em apoio a Umaro Sissoco Embaló, o presidente interino renunciou, em 29 de fevereiro 5. Também houve com ocupação de prédios públicos, invasão de residência de políticos, invasão da ANP, CNE e STJ.

A partir dos últimos acontecimentos, os partidos que conformam a maioria parlamentar da ANP, o primeiro-ministro Aristides Gomes, lideranças políticas, assim como o PAIGC passaram a denunciar um golpe de Estado perpetrado pelo candidato Embaló com o apoio militar das Forças Armadas.

O candidato Sissoco e membros de seu governo defenderam a legalidade da posse e as Forças Armadas negaram estar à frente de um golpe de Estado.

Neste cenário, que não é novo em Guiné-Bissau, exceto pelo tipo, a comunidade internacional representada pelo Grupo P5 – constituído pelas Nações Unidas, União Africana, Comunidade Econômica dos Estados da África Ocidental, União Europeia e Comunidade dos Países de Língua Portuguesa – teve uma posição ambígua que, inclusive, segundo várias lideranças do país, potencializou a crise. Em primeiro momento validou o processo eleitoral como transparente e dentro dos padrões internacionais e congratulou o suposto candidato vencedor quando do anúncio do resultado provisório. E já nos últimos dias, diante das reações no país e de acusações de interferência nos assuntos internos e pela atuação das Forças Armadas, tem se posicionado com cautela no sentido de aguardar o posicionamento do STJ e de exortar as Forças Armadas a se absterem de intervir6.

Até o momento, o STJ – órgão competente para a resolução do litígio eleitoral – não decidiu o recurso interposto pelo candidato Pereira, tampouco se pronunciou sobre a posse do candidato Embaló, que continua a atuar como se presidente fosse. Segundo comunicado difundido no dia 3 de março, a sede do STJ está ocupada por membros das Forças Armadas desde o dia 28 de fevereiro e seus membros impedidos de realizarem a judicatura.

Convém lembrar que a crise atual é tributária de todos os processos de ruptura da ordem democrática que vem acontecendo no país desde a independência.

A investidura no cargo do candidato Embaló enquanto pendia uma decisão judicial sobre a sua legalidade e posteriormente a indicação pelo suposto presidente de um chefe de governo, contando com a participação do ex-presidente Vaz e apoio das Forças Armadas são mais um episódio desse novo tipo de atuação política em Guiné-Bissau.

Sem entrar no mérito dos fatos que levaram o PAIGC a impugnar o processo eleitoral, em um contexto de normalidade democrática e constitucional, aguardar a decisão judicial, se a mesma suspendeu a conclusão do processo eleitoral, e mantida a neutralidade das Forças Armadas, era o único caminho que asseguraria legalidade do pleito e a legitimidade da posse do vencedor, fosse ele quem fosse. Essa inclusive tem sido a posição da comunidade internacional.

Essas rupturas ferem a constituição guineense e podem sinalizar para a concretização de um golpe de Estado que ignora as regras do jogo democrático e do império das leis para levar ao palácio presidencial um candidato cuja vitória ainda não foi confirmada pelo órgão que teria competência para tanto.

O que está em causa hoje em Guiné-Bissau é o cumprimento das exigências para a existência plena de um Estado democrático de direito no país que nunca viveu sob as bases mínimas de uma real democracia 7, exceto no período de guerra nas Zonas de Libertação.

Não é demais lembrar que Cabral alertava para o risco da recolonização de Guiné-Bissau após a independência pela cumplicidade de sua elite que poderia se transformar em uma pseudo-burguesia nacional.

Sem querer minimizar a responsabilidade de atores externos para as instabilidades vividas no país na últimas décadas, desde o golpe reajustador de 1980, grande parte da elite política e militar de Guiné-Bissau que de uma maneira ou de outra alternam e hegemonizam o controle político do país perdeu a consciência revolucionária ou, nas palavras de Cabral, negou-se a se suicidar enquanto classe e traiu os ideais de libertação do período das lutas anticoloniais.

Como diria Amílcar Cabral, a luta pela reconquista da personalidade histórica de um povo perpassa por sua coragem de assumir o protagonismo de sua história. Na crise atual é imperativo que a elite política e militar do país, em unidade, construam soluções baseadas em suas próprias institucionalidades.

Não há saída que não seja por meio das vias democráticas e legais escolhidas pelo povo guineense quando decidiu aderir a democracia e viver sob a égide do Estado de direito.

De outra forma, veremos se iniciar um novo ciclo de Estado de exceção no país que pode ensejar uma longa intervenção militar – que poderá escalar para uma ditadura ou mesmo uma guerra civil –, ou ainda uma longa intervenção internacional ou talvez pior, uma excepcionalidade constitucional normalizada, como já estamos vendo em Bissau e em algumas partes do mundo.

1 Ver em SANTOS, Maria do Carmo Rebouças. Guiné-Bissau da independência colonial à dependência da cooperação internacional para o desenvolvimento. Rio de Janeiro: Gramma, 2019.

2 Conquanto tivesse sido anunciado em 01 de janeiro, a ata de apuração só foi assinada em 15 de janeiro, por determinação do STJ, e somente pelo presidente da CNE porque vários membros se recusaram a assiná-la. Informação obtida no site do CNE

3 Não tivemos acesso ao teor da decisão, mas pelas manifestações oficiais de membros do Governo, da ANP, do Grupo P5 e do próprio candidato Pereira, o STJ declarou efeito suspensivo.

4 Artigo 67 da Constituição de Guiné-Bissau e Regimento da Assembleia Nacional Popular em seus artigos 154 e 155 determina que a posse ocorrerá em Sessão Especial e deverá ser antecedida da Acta de Apuramento Nacional. Ver em Comunicado de Imprensa do Gabinete do Primeiro-Ministro em 26 de fevereiro de 2020.

5 Ver comunicado de imprensa do PAIGC de 29 de fevereiro; Ver comunicado de imprensa do Presidente interino de 29 de fevereiro; Ver Comunicados do Primeiro-Ministro Aristides Gomes de 27 de fevereiro e 3 de março; Ver Comunicado de Imprensa do STJ de 03 de março.

6 Comunicado  de deputados do Parlamento Europeu para o Alto Representante para a Política Externa e Políticas de Segurança em 03 de março de 2020 denunciando a ruptura institucional de Guiné-Bissau.

7 José Mário Vaz foi o único presidente a completar um mandato em Guiné-Bissau. Contudo, a partir da demissão do seu Primeiro Ministro Pereira em 2015, o presidente manteve o país envolto em uma crise política durante todo o seu mandato com sucessivas indicações e demissões de Chefes de Governo, sem seguir os ritos constitucionais, com mediação e crítica da comunidade internacional.

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