Política em crise: o sintoma Trump

Como o país que se vangloria de ser “berço da democracia” pode curvar-se de novo ao político que promete destruí-la. Por que este declínio espalha-se pelo Ocidente. Que caminhos podem, no Brasil, evitar que a história se repita

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O ex-presidente dos Estados Unidos Donald Trump consolidou sua terceira candidatura à presidência de seu país após uma esmagadora vitória na chamada Superterça, superando a ex-governadora da Carolina do Sul, Nikki Haley, em todos os estados em disputa, à exceção de Vermont. Com os resultados, ele totalizou 1.004 delegados contra 89 da adversária, que suspendeu sua campanha diante do quadro irreversível.

Ainda que a política em diversos países no mundo tenha naturalizado absurdos, a permanência de Trump como um personagem central, liderando as pesquisas nacionais contra o atual presidente Joe Biden, é espantosa.

Em artigo, o diretor de Pesquisa do Centro de Estudos dos EUA na Universidade de Sydney, Jared Moonshine, relata alguns dos momentos em que a carreira do ex-presidente foi tida como prejudicada ou mesmo arruinada. Na eleição de 2016, por exemplo, foi divulgado o vídeo Access Hollywood, de 2005, gravado meses depois de seu casamento com a terceira esposa, Melania. Nas gravações, o bilionário se gaba de cometer assédio sexual ao tentar beijar e apalpar mulheres. À época, se desculpou dizendo tratar-se de “conversa de vestiário”, já que se preparava para fazer uma aparição em uma novela na ocasião da gravação.

Nos Estados Unidos, escândalos de cunho sexual (entre eles muitos que não envolviam prática criminosa) derrubaram políticos e candidatos ao longo da história. Talvez o episódio mais notório tenha ocorrido em 1987, quando o senador democrata Gary Hart, então favorito não só à nomeação mas à própria presidência, já que aparecia liderando com folga diante daquele que viria a ser eleito, o republicano George H. W. Bush, caiu em desgraça ao ter revelado pela mídia um caso extraconjugal. No entanto, com Trump, nada ocorreu e ele acabou se elegendo em 2016.

Depois disso, o então presidente disse em Charlottesville, em 2017, que havia “pessoas muito boas” entre um grupo de supremacistas brancos. Sofreu um processo de impeachment em 2019 e teve uma condução considerada ruim diante da pandemia de covid-19. Sofre hoje quatro processos criminais, com acusações relacionadas a tentativas de anular os resultados das eleições de 2020, interferência eleitoral no estado da Geórgia, falsificação de registros comerciais em Nova Iorque e tratamento indevido a registos confidenciais após deixar a presidência.

Talvez o episódio emblemático que enterraria a carreira de qualquer político na mesma posição tenha sido a invasão do Capitólio. O 6 de janeiro, insuflado pelo então presidente, foi uma passagem traumática para um país que se diz a maior democracia do mundo, e mesmo republicanos proeminentes passaram a criticar Trump publicamente em função do ataque. Mas apenas uma minoria na legenda, sete senadores, votou a favor do afastamento no segundo pedido de impeachment do mandatário.

O resultado é que Trump continuou na vida pública, consolidando o que hoje é um domínio férreo sobre o Partido Republicano, cuja cúpula teve oportunidade de se livrar de sua sombra, mas não o fez. E, como destaca Moonshine, desde 2016 o seu índice de aprovação agregado entre os republicanos raramente caiu abaixo dos 74%. Para uma base mobilizada, ele é praticamente imune a qualquer acusação.

O “mártir” e o discurso religioso

As consequências de Trump ter passado incólume pelo segundo impeachment e até hoje não ter sido julgado pelo envolvimento no 6 de janeiro não se resumem apenas a ele poder participar das eleições presidenciais de 2024. Os efeitos negativos mais amplos se relacionam ao fato de ele, durante todo esse tempo, ter ajudado a fomentar a versão de que o processo eleitoral de 2020 foi fraudado para beneficiar Joe Biden, algo que afeta a crença do cidadão na democracia formal.

“Nunca antes um candidato republicano que não estivesse ocupando a presidência gozou de tal liderança nesta altura da campanha, nem mesmo George W. Bush em 2000. Uma razão pode ser que Donald Trump não seja realmente um não-titular. Mais importante ainda, ele é visto pela maioria da sua base como o único presidente legítimo”, explica o professor-assistente da Universidade CY Cergy Paris, Jérôme Viala-Gaudefroy, neste artigo. São dois terços dos eleitores republicanos ou quase três em cada dez estadunidenses que acreditam na tese da “eleição roubada”, achando que Biden não foi eleito legalmente.

Mesmo com investigações que não deram em nada, pretensas provas facilmente refutadas e especialistas atestando que não houve fraude, uma parcela da população estadunidense segue seu líder, visto por ela como um mártir. O fato de ser alvo de processos reforça ainda mais a imagem que o bilionário tenta passar, de alguém injustiçado que ousou enfrentar o “sistema” ou, como costumam dizer seus apoiadores, o “Estado profundo”.

Esta última expressão, aliás, tem um sentido forte do ponto de vista conspiratório, mas também religioso. “O Estado profundo tornou-se uma palavra de ordem da era Trump, um termo usado pelos seus apoiadores para retratar Trump como um estranho que luta contra um sistema político corrompido”, pondera aqui S. Jonathon O’Donnell, que tem pós-doutorado em Estudos Americanos pela University College Dublin. “(…) o Estado profundo passou a representar ideias mais amplas de controle demoníaco, uma vez que os demônios são imaginados como um ‘Estado profundo’ que trabalha nos bastidores. Os demônios tornam-se a fonte de regulamentações econômicas e ambientais e de programas de bem-estar social.” Em suma, o mal é associado a tudo aquilo que não é de direita.

Nessa guerra espiritual, para um segmento da população estadunidense, essencialmente evangélica, Donald Trump, ainda que não se assemelhe em nada em termos de conduta ao cristão que se espelha no Jesus do Novo Testamento, seria o “escolhido”.

“Acredito que existam pessoas de certos setores do evangelicismo, em sua maioria pentecostais carismáticos, que realmente acreditam que Donald Trump é o escolhido. Eles realmente acreditam que Donald Trump foi ungido por Deus para ‘um momento como este’. Ele é um novo Rei Ciro e eles sabem disso porque receberam profecias dizendo-lhes que este é o caso. Deus lhes disse”, apontava, em 2020 o historiador John Fea, professor do Messiah College em Mechanicsburg, Pensilvânia, que passou toda sua vida adulta em uma comunidade evangélica.

Ciro é um rei persa histórico que no livro de Isaías, no Antigo Testamento, não adorava o deus de Israel, mas é retratado na narrativa como um instrumento usado por Deus para libertar o povo judeu do cativeiro babilônico.

Normalização do absurdo

Se existe um discurso messiânico que justifica as piores falhas de caráter de Trump, as fake news que o sustentam também encontram um território vasto a ser explorado nas redes sociais. Embora as grandes plataformas tenham anunciado mudanças e ações contra a disseminação de desinformação e discursos de ódio, o problema está longe de ser resolvido.

“O algoritmo segue promovendo desinformação e discurso de ódio nas redes. Nos EUA, as fake news sobre vacinação e fraude eleitoral não se justificavam apenas pelo lucro, motivação central, mas também porque as empresas queriam agradar a Donald Trump. O que terá impacto global nos usuários das redes no futuro próximo é o clima político em Washington. O jogo das eleições americanas passará uma vez mais pelas redes sociais”, previa Max Fisher, autor de A máquina do caos, em entrevista ao jornal O Globo concedida em março de 2023.

E há um componente da política institucional também central para a consolidação do trumpismo, a aceitação e a normalização de posturas extremistas. Uma ilustração disso se deu na própria disputa pela nomeação do Partido Republicano. Os adversários do ex-presidente, por temerem afastar parte do eleitorado que queriam conquistar, foram cautelosos nas críticas. Só após se tornar a única rival na disputa que Nikki Haley passou a ser mais incisiva ao falar do seu concorrente, mas já era tarde.

A conduta do ex-líder da minoria no Senado, Mitch McConnel, também é um exemplo de como o status quo absorve facilmente o ideário extremista contanto que mantenha uma proximidade com o poder. Há 40 anos no Senado e há 17 como líder da legenda na Casa, ele anunciou em fevereiro que deixaria o cargo, ratificando o endosso à candidatura presidencial do bilionário.

Após a invasão do Capitólio em 6 de janeiro, McConnel fez um discurso afirmando que Trump era “moralmente responsável” pelo que havia acontecido. Ao mesmo tempo, negociou para evitar que o impeachment fosse ratificado no Senado, sob a argumentação de que não faria sentido condenar alguém que já havia saído do cargo.

“Há oito anos, McConnell procurou acalmar as preocupações sobre o estilo inconstante de Trump e a sua política abrasiva, dizendo que era muito mais provável que os membros do Partido Republicano mudassem Trump do que ele mudasse fundamentalmente o Partido Republicano”, pontua o jornalista Sasha Abramsky, no Truthout. “Isto deveria ser qualificado como uma das profecias menos bem sucedidas na história política dos EUA. Agora, enquanto McConnell prepara seu lento adeus aos olhos do público, fica claro o quão errado era esse prognóstico.”

E o Brasil com isso?

Não é preciso ser um observador atento para perceber as inúmeras semelhanças de estratégias, condutas e conteúdo entre Trump e Bolsonaro. O intenso uso das redes sociais com formação de bolhas de desinformação é um deles, sendo que, no Brasil, conta-se ainda com a presença forte do Whatsapp, cuja opacidade facilita muitas vezes a circulação clandestina de fake news e a percepção tardia do estrago torna ainda mais complexa a tarefa de correção.

O pânico moral aliado ao discurso religioso também é característica do bolsonarismo, reforçados ainda mais pelo recente declínio do braço representado pelas Forças Armadas, lacuna rapidamente preenchida por lideranças como Silas Malafaia, que tomou a frente do simbólico ato de 25 de fevereiro, na Avenida Paulista. E que deve ser uma das principais armas de mobilização da extrema direita no Brasil nas eleições de 2024.

E a citação ao rei Ciro, da Pérsia, mencionada pelo historiador John Fea, também já foi feita em evento de 2018, aludindo o personagem bíblico a Bolsonaro, e também esteve presente na fala de um pastor francês para celebrar o então presidente em 2019. “Na história da Bíblia, houve políticos que foram estabelecidos por Deus. Um exemplo é quando falam do imperador da Pérsia, Ciro. Antes do seu nascimento, Deus fala através de Isaías: ‘Eu escolho meu servo Ciro’. E o senhor Jair Bolsonaro é o Ciro do Brasil”, disse o religioso Steve Kunda, da igreja evangélica Orleans Gospel. Trump dominou o Partido Republicano e a figura do ex-presidente brasileiro tomou conta do PL, que se tornou a maior legenda do Congresso Nacional em 2022. Seu domínio não se dá de forma tão efetiva e prática quanto a do seu colega estadunidense, até porque o quadro partidário brasileiro é bem mais fragmentado, mas ainda assim o seu ideário domina o discurso e as ações de uma sigla que já chegou a ocupar a chapa de Lula em 2002, com José Alencar de vice.

Como nos Estados Unidos e em outros países em que a extrema direita ascendeu, figuras que se posicionavam no que se poderia chamar de centro-direita e direita adernaram, assim como oportunistas e fisiológicos que viram um filão e um nicho eleitoral para cultivar. Parte daqueles que não aderiram normalizaram discursos e propostas extremistas, como se fizessem parte do jogo.

E se no país do Norte a idade ou os eventuais lapsos de Joe Biden passaram a dominar o noticiário nacional, as ameaças de Trump à democracia, sua intenção de se tornar “ditador no primeiro dia”, ou as mentiras recorrentes (que chegam a 20 mil em 1,2 mil dias, segundo o The Fact Checker) são tratadas como se fossem válidas no debate público, sem merecer tanto destaque.

Lá, como cá, os veículos de mídia vão atrás dos cliques e da audiência por meio do escatológico e do grotesco, material que o trumpismo e o bolsonarismo têm a oferecer de sobra. Assim, o jornalismo declaratório impera, sem tratamento crítico ou contestação, e absurdos como a nomeação do deputado federal Nikolas Ferreira (PL-MG) à presidência da Comissão de Educação da Câmara dos Deputados acontecem como se nada fossem. Segue o jogo.

A diferença

Se é possível espelhar os movimentos da extrema direita nos EUA e no Brasil, também é verdade que há uma diferença fundamental. Lá, Trump ainda será julgado em quatro ações criminais distintas e mesmo que seja condenado antes da eleição, o que hoje é improvável, poderá concorrer. Bolsonaro, no Brasil, já está inelegível por conta de duas condenações no Tribunal Superior Eleitoral, o que tira sua possibilidade de se candidatar a qualquer cargo eletivo até 2030.

Isso não significa, no entanto, que o ex-presidente brasileiro não possa desempenhar o papel de cabo eleitoral e o pleito municipal será um teste nesse sentido. O fato de quatro dos deputados que estiveram na manifestação da Paulista terem sido escolhidos para as presidências de comissões na Câmara é demonstração de força do bolsonarismo e do aprofundamento da estratégia de demarcar espaço no processo eleitoral de 2024 com o ideário extremista.

A punição a quem participou da tentativa de golpe no Brasil pode ser didática para dizer à sociedade que afrontas ao arranjo democrático não serão toleradas, mas seu alcance acaba limitado pelo discurso, já em andamento, de vitimização dos autores, a exemplo do que ocorreu nos EUA. Um cenário facilitado em função dos ataques sofridos pelo sistema de Justiça nos últimos anos, que resultou em seu descrédito para parte da população, e também pelo forte esquema de disseminação de desinformação nas redes sociais, montado e sustentado pelo bolsonarismo há anos.

A ascensão da extrema direita no Brasil, como em outros lugares, não deve ser desculpa para fechar os olhos a um dos ingredientes que tornam o solo fértil para este movimento. A democracia formal, hoje, é insuficiente para traduzir os anseios da maior parte da população. O poder público e político em geral está distante da realidade nacional e é preciso voltar à pauta o aprofundamento democrático.

Criar mecanismos de participação e aproximar a sociedade do debate sobre os rumos do país é um desafio antigo que se renovou e grita por urgência em um cenário no qual poucos têm apego real pela democracia. Sem desfazer este nó, a máquina do autoritarismo continuará tendo combustível para funcionar e gerar Trumps e Bolsonaros mundo afora. E o frágil arranjo estará sempre por um fio.

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2 comentários para "Política em crise: o sintoma Trump"

  1. José Mário Ferraz disse:

    O primeiro comentário foi censurado. Vejamos se esse outro minha opinião pode ser mostrada: se os Estados Unidos são o berço da democracia e seus defensores mais ferrenhos, conclui-se que democracia significa predomínio dos ricos. Como todo vício, o de ser rico é sinônimo de intranquilidade tanto por ser insaciável quanto pela insanidade da busca eterna por mais riqueza, o que leva à prática de atos desumanos como mostra o livro A História Não Contada Dos Estados Unidos.

  2. José Mário Ferraz disse:

    O jornal devia avisar que comentários devem ser como querem seus donos.

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