Superterça: como evitar a volta de Trump?

Ex-presidente parece forte nas primárias e pesquisas, mas sua rejeição é ampla. Seu trunfo: a impopularidade de Biden, ainda maior após apoiar o massacre em Gaza. Há alternativas? Muito dependerá do que ocorrer hoje

Foto: Yuri Gripas/Reuters
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Por Glauco Faria

As chances de impedir que um político de ultradireita assuma o comando do país mais poderoso do mundo serão jogadas, em parte, amanhã, 5 de março. Os Estados Unidos terão a chamada “Superterça”, data que concentra algumas das mais importantes eleições primárias para escolher os candidatos à Presidência dos partidos Democrata e Republicano. Embora haja dois óbvios favoritos em cada legenda, Joe Biden e Donald Trump, as margens dos resultados podem influenciar uma corrida ainda indefinida e com potencial para surpresas.

Em 15 estados e um território, serão escolhidos 874 delegados republicanos, aproximadamente 36% de todos os que irão decidir o candidato do partido em julho. Já os democratas elegerão 1.439 delegados, também pouco mais de 36% dos 3.979 que votarão na convenção, marcada para agosto.

As pesquisas indicam que Donald Trump deve vencer todas as disputas em jogo. Sua única adversária, a ex-governadora da Carolina do Sul Nikki Haley, conseguiu a primeira vitória de uma mulher nas primárias republicanas neste domingo (3/3), em Washington, mas perde de Trump por 247 delegados contra 43. O estafe do ex-presidente imagina que ele consiga garantir matematicamente sua candidatura até 19 de março. Mas seu desgaste, inclusive no próprio partido, é real. Enfrentando as engrenagens da legenda, Haley tem conquistado entre 30% e 40% dos votos em todas as disputas. Uma pesquisa APVoteCast aponta que 20% dos eleitores presentes às primárias republicanas em Iowa, 34% em New Hampshire e 25% na Carolina do Sul se recusariam a votar em Trump contra Biden. Num pleito que tende a ser acirradíssimo, sua abstenção pode fazer enorme diferença.

Parte deste eleitorado é democrata ou independente (no sistema eleitoral dos EUA, pode haver votação cruzada em algumas primárias). Mas outro índice mostra que 10% de quem votou em Trump em 2020 não repetiria o gesto em 2024. Além disso, a disputa com Haley mostra a fragilidade do presidenciável em alguns segmentos específicos do eleitorado, como entre aqueles que têm curso superior, maioria dos eleitores registrados nos EUA. Também segundo a APVoteCast, Haley superou o rival neste grupo em New Hampshire e na Carolina do Sul, sendo ainda a escolha de dois terços dos eleitores que fizeram pós-graduação, em ambos os estados.

Há motivos em profusão para a alta rejeição de Trump. O ex-presidente confessou sua intenção de ser “um ditador” no primeiro dia de um eventual novo mandato. Não esconde que poderia mover a máquina pública para se vingar de adversários. Segue defendendo que as eleições de 2020 foram fraudadas e já pregou contra imigrantes dizendo que eles “envenenam o sangue do país”.

Em entrevista ao The Guardian, Allan Lichtman, professor de história da Universidade Americana em Washington, foi categórico sobre um eventual segundo mandato de Trump. “Seria um desastre para os EUA. Ele já deixou bem claro que seu segundo mandato será de vingança. Vai usar o poder do governo para perseguir e processar os seus inimigos e para consolidar o seu próprio poder, ou pelo menos o poder dos seus aliados e comparsas”, pontuou.

Como o ex-presidente não conseguiu expandir seu eleitorado nos últimos anos e é rejeitado de forma absoluta por parte daqueles que não votam nele, sua única chance é ter um adversário fragilizado e que conte com uma elevada rejeição. Ou seja, sua oportunidade de vitória é… enfrentar o atual presidente Joe Biden.

A impopularidade de Biden

No lado democrata, Joe Biden tem um caminho ainda mais tranquilo para assegurar sua nomeação. Além da tradição de o presidente em exercício obter uma segunda candidatura de forma quase automática, seus adversários, o congressista Dean Phillips e a escritora Marianne Williamson, não ultrapassam um dígito. Mas Biden esbarra em sua baixa popularidade e na desconfiança que a própria base democrata nutre em relação a ele.

Números divulgados neste domingo (2/3) pelo The New York Times, são alarmantes. Uma pesquisa Times/Siena Poll, com eleitores registrados, mostra que o desempenho de Biden como presidente é aprovado fortemente por 19% dos eleitores. Outros 19% aprovam-no “de alguma forma”. Em contrapartida, 47% desaprovam-no “fortemente” e 12% desaprovam “um pouco”.

A sondagem mostra ainda que 73% dos entrevistados concordam “fortemente” ou “um pouco” com a afirmação de que Biden, de 81 anos, é “muito velho para ser um presidente eficaz”. O pior fator para o atual presidente é que 61% dos eleitores que votaram nele em 2020 concordam de alguma forma com a avaliação. Embora Trump tenha apenas quatro anos a menos que Biden, a repercussão da sua idade junto ao eleitorado é outra: 42% o veem como “muito velho” para ocupar a Casa Branca.

Ou seja, Biden tem problemas tanto relativos à imagem pessoal como a seu governo. Parte da juventude, que foi essencial para sua vitória em 2020, execra seu alinhamento irrestrito a Israel no massacre de Gaza. Este eleitorado pode simplesmente não comparecer às urnas, embora a máquina democrata acredite que a opinião pública pode mudar, e os descontentes acabariam dando seu voto a ele, pelo temor de um novo mandato de Trump.

Um novo candidato democrata?

Trump conseguiu consolidar seu domínio sobre o Partido Republicano em função do crescimento da extrema direita e dos conservadores radicais dentro da sigla. Biden não exerce esse domínio entre os democratas. Por isso soa mais incrível o partido não ter um plano B.

Em entrevistas, Biden nega a possibilidade de se afastar da disputa, mas a pressão sobre ele cresce e as sondagens divulgadas pelo NYT só pioram sua situação. Na pesquisa nacional, Trump tem 48% do voto popular, contra 43% do democrata. A oito meses da eleição, 45% dos eleitores democratas acham que ele não deveria se candidatar à reeleição.

“Por que o presidente Biden está perdendo? Existem muitas razões possíveis, incluindo a sua idade, a guerra em Gaza, a fronteira e as preocupações persistentes com a inflação. Mas, em última análise, resultam em algo muito simples: Biden é muito impopular. Ele é tão impopular que agora é ainda menos popular do que Trump, que continua tão impopular quanto era há quatro anos”, resume o analista político Nate Cohn.

A vice-presidenta Kamala Harris, que seria uma opção natural para substituir Biden como candidata, também tem a popularidade em baixa, segundo a mesma sondagem divulgada pelo NYT: são 36% dos entrevistados que a aprovam contra 55% que desaprovam. Há sinais recentes de que ela poderia estar se preparando para entrar no jogo ou, ao menos, se mostrar como alguém que poderia eventualmente ocupar o lugar do titular. Um destes sinais é o fato de o ministro do Gabinete de Guerra de Israel, Benny Gantz, ter se reunido com ela e com o conselheiro de Segurança Nacional Jake Sullivan, trazendo para a sala da vice aquele que talvez seja o tema mais importante do momento: o massacre de Gaza.

No domingo (4/3), Harris foi a autora das declarações mais duras de um integrante do governo dos EUA sobre Israel. “As pessoas em Gaza estão morrendo de fome. As condições são desumanas e a nossa humanidade comum obriga-nos a agir. O governo israelense deve fazer mais para aumentar significativamente o fluxo de ajuda. Não há desculpas”, afirmou.

Outros nomes cotados para eventualmente se tornarem candidatos – o governador da Califórnia, Gavin Newsom, e a governadora de Michigan, Gretchen Whitmer – não têm mostrado disposição para concorrer com Biden. Um cenário paradoxal se coloca para o partido. Ao mesmo tempo em que todos sabem que há um problema, publicamente a questão é ignorada e qualquer um que ouse dizer o contrário pode ser visto como um traidor.

Uma terceira opção?

Diante de dois prováveis candidatos altamente rejeitados, não são poucos os eleitores que calculam aderir a uma terceira candidatura. Sempre existem aqueles que disputam fora dos dois grandes partidos estadunidenses, mas a estrutura eleitoral é especialmente dura para os independentes ou postulantes de legendas menores. Cada estado tem suas regras, rígidas em maior ou menor grau, para incluir nomes que estejam fora do espectro bipartidário na cédula.

A equipe de um possível candidato independente – o ex-democrata Robert F. Kennedy Jr. – estima que fazer com que seu nome seja incluído como presidenciável em todos os 50 estados não vá custar menos de US$ 30 milhões. O advogado ambientalista, também notório ativista antivacina, decidiu concorrer e até o final de fevereiro tinha assegurado vaga apenas em Utah. Mesmo assim, acredita que conseguirá concorrer em todos os estados em 5 de novembro.

O ativista e professor Cornel West pretende ter seu nome nas urnas em 15 estados até março, chegando entre 30 a 35 estados até junho. Poderia ter uma trajetória menos difícil caso se candidatasse pelo Partido Verde, que atualmente pode inscrever candidatos em 19 estados, mas preferiu sair como independente, deixando a vaga de presidenciável da agremiação para Jill Stein. Ela já foi candidata em 2016 e, à época, democratas alegaram que sua candidatura pode ter custado a vitória de Hillary Clinton, já que Stein teve mais votos do que a diferença entre a então secretária de Estado e Donald Trump nos estados de Michigan, Wisconsin e Pensilvânia, que decidiram a eleição

Este também é outro fantasma para Biden, que aparece atrás de Trump na maioria dos chamados swing estates, que não têm uma preferência sólida por democratas ou republicanos. Com West e Stein posicionados à esquerda, o atual presidente pode perder votos importantes em disputas que devem ser decididas por margens estreitas.

Hoje, a organização política No Labels, que se autodefine como “sem fins lucrativos” e que reúne independentes centristas e dissidentes do bipartidarismo, é quem tem maior poder de fogo para emplacar um candidato. Além de doadores não identificados e figuras com bom trânsito político, eles já têm presença garantida em 16 estados, mas ainda não contam com um nome definido. Inclusive alguns de seus integrantes já afirmaram estar de portas abertas para Nikki Haley, caso ela se interesse. Os resultados da Superterça devem influenciar na decisão de lançar ou não uma candidatura e quem seria essa pessoa.

Enquanto isso, Haley mantém sua campanha e tem muitas opções em aberto. Pode concorrer pelo No Labels. Pode, também, seguir com sua campanha minoritária entre os republicanos, apostando na improvável hipótese de uma condenação criminal afetar seriamente a candidatura de Trump. Ou aguardar e mirar em 2028, tornando-se o principal nome do partido.

Com um número significativo de delegados, Haley poderia ainda influenciar no plano de governo fechado. Como ex-embaixadora do país na ONU pode se tornar porta-voz, neste caso, de alguns dos múltiplos interesses que giram em torno da política externa do futuro governo. Se hoje tanto Trump quanto Biden possuem posição semelhante no apoio a Israel, na guerra da Ucrânia há profundas divergências, assim como na questão do papel estadunidense na Otan. A poderosa indústria de Defesa não vai assistir de camarote a qualquer mudança abrupta dos EUA nessa área.

Se há uma quase certeza de que Trump e Biden vencerão as disputas nos seus partidos, há muitos complicadores que podem suscitar reviravoltas. Os roteiristas, desta vez, capricharam no enredo. Talvez porque o elenco não esteja à altura da história.

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