O xadrez político paulista

Gesto de Boulos favorece saída pela esquerda, diante da crise do poder tucano no estado. De quebra, chama atenção para o Legislativo. Mas projeto não pode se resumir às eleições: país precisa de um programa que afaste, além do fascismo, a agenda neoliberal

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Uma nova notícia colocou a disputa eleitoral paulista no centro das atenções nesta semana. Guilherme Boulos anunciou que não mais concorrerá ao Governo de São Paulo para disputar uma cadeira no Legislativo nacional como deputado federal. Já esperada há algum tempo, a confirmação desta escolha pode movimentar consideravelmente o tabuleiro político do estado e, inclusive, ter reflexos nacionais.

Alçado à figura política nacional após a surpreendente campanha municipal de 2020, na qual, em uma coligação pura de esquerda encabeçada pelo PSOL, bateu 40% dos votos no 2º turno, Boulos chegou a ter uma boa largada nas primeiras pesquisas ao governo estadual. Com o fortalecimento de Haddad impulsionado por Lula, porém, mesmo que ainda apresentando boa margem de intenções de voto, a mudança de rumos era questão de tempo.

Desde 2018, há um certo clamor por unidade entre as esquerdas e os setores progressistas no país inteiro. Com isso, as eleições, no geral, devem apresentar a tendência de ver uma variedade de candidatos de esquerda desidratar até o último dia de campanha pela migração de votos para o nome que representar as maiores chances de vitória progressista. O próprio Boulos, aliás, se beneficiou desse movimento em 2020, quando o petista Jilmar Tatto viu seus votos serem transferidos para o psolista. Não há razões para acreditar que este movimento, agora em sentido contrário, não vá se repetir em 2022 no estado.

E, ao que tudo indica, no tabuleiro paulista, esta era uma das últimas peças para consolidar Haddad como nome com chances reais de chegar ao Palácio dos Bandeirantes. Ainda não há confirmação de que o PSOL tenha se retirado, como partido, da disputa estadual, apesar de alguns indicativos. Qualquer decisão final passaria, logicamente, por acordos partidários ainda não realizados e, hoje, o PSOL de São Paulo é um partido com cacife suficiente para cobrar suas posições em uma aliança deste porte.

Mas não se pode negar que o anúncio de Boulos já tenha gerado esta expectativa de transferência de votos. Resta o incógnito eleitorado de Márcio França, quem, apesar do histórico, também consegue angariar alguns votos valiosos em certos setores progressistas.

Antes disso, uma outra peça-chave já havia sido movimentada. A improvável e indigesta aliança entre Alckmin e Lula parece não fazer sentido nenhum em qualquer lugar do país que não seja o estado de São Paulo. Desde que foi cogitada, a vice-presidência de Alckmin não surtiu qualquer efeito nas pesquisas nacionais, que mostram Lula batendo em um teto que o impede de vencer as eleições já em 1º turno. Desde então, ouvem-se muitos votos em Lula “apesar de Alckmin”, mas é difícil encontrar quem vote no petista “só por causa do Geraldo”.

Isso não significa que a estranha chapa não tenha suas consequências. Apontado como o favorito incontestável a voltar ao posto de Governador de São Paulo, ao abandonar a disputa, Alckmin abriu caminho para possibilidades até então impensáveis no estado. De fato, o tucanato paulista nunca teve seu reinado tão ameaçado como hoje, tanto pela esquerda quanto pelo bolsonarismo. E se este não foi o motivo da escolha petista, é difícil encontrar qualquer outro que seja minimamente plausível.

Mas, se neste cenário inédito, de um lado, a esquerda caminha para a unidade, do outro, este mesmo movimento parece mais difícil de ocorrer. Há um claro racha no eleitorado direitista de São Paulo, opondo o tradicionalismo tucano do PSDB e o bolsonarismo. Há uma forte tendência de crescimento do candidato deste segundo grupo, Tarcísio de Freitas, inclusive impulsionada pelo repúdio ao atual governador Doria. Mas a “habilidade” psdbista em utilizar a máquina pública paulista (há décadas em suas mãos) para benefício próprio não pode ser menosprezada. Em 2020, por exemplo, a Prefeitura de Covas chegou a distribuir cestas básicas ao povo paulistano às vésperas da eleição. Por isso, Garcia é um nome que ainda pode crescer muito mais do que se espera.

De qualquer maneira, com maiores indefinições na direita, a tendência que se consolida é a de que este campo político tenha seu nome na disputa do 2º turno contra Haddad, escolhido como representante da esquerda paulista.

Mas não é apenas no cenário estadual que a notícia de Boulos causa alvoroço. A jogada movimenta também o xadrez político na esfera legislativa brasileira. Logicamente, a matemática das eleições ao Legislativo nacional é diferente das disputas ao Executivo municipal. Porém, apenas a título de exemplo, vale dizer que, só no 1º turno de 2020, Boulos foi capaz de angariar mais de 1 milhão de votos apenas na capital paulista. Repetindo este feito, ele já seria capaz de, sozinho, garantir ao menos três cadeiras ao PSOL. Isso sem contar os votos que outros grandes nomes do partido devem conquistar, como os deputados Ivan Valente, Erundina e Sâmia, e outros fenômenos de votação como Erika Hilton, Erica Malunguinho e Gianazzi.

Nesse sentido, no vídeo em que anuncia sua escolha, o tom do psolista foi emblemático: quer disputar com Eduardo Bolsonaro o posto de deputado federal mais votado do país. Desse modo, colocando-se em posição de combate direto ao bolsonarismo, repete tática acertada de 2020 ao nacionalizar uma disputa local. E, de fato, com a receptividade do público à nova notícia e com a ampliação do eleitorado para todo o estado paulista, as previsões permitem certo otimismo.

Com este prognóstico, a escolha de Boulos e do PSOL joga luz em um debate importantíssimo e de relevância nacional: a necessidade da esquerda de levar a sério a disputa pelo Poder Legislativo do país. Se o PSOL já faz cálculos de que sua bancada paulista pode passar por um considerável aumento neste ano, nada impede que o caminho da unidade das esquerdas passe a ser visto como esta possibilidade por outros partidos e em outros estados também.

A excelente receptividade que a notícia da candidatura de Boulos parece ter obtido entre o eleitorado abre espaço para que outros nomes de peso sigam pela mesma via e se unam na importante empreitada de construir uma esquerda forte nas Casas Legislativas do país. O caminho tomado por Boulos, enfim, parece que vai escancarar que, para a maior parte do eleitorado progressista, a unidade contra o “liberal-fascismo” é uma prioridade muito acima de qualquer personalismo.

E é neste último ponto que reside o grande “porém” do que foi debatido até aqui. A unidade tão desejada não pode se resumir à concentração no entorno de um nome para o Executivo. Ela deve, antes de tudo, ser programática. Há uma agenda liberal e fascista imposta ao país que ameaça o estômago, o bolso e a liberdade do povo brasileiro. Foram estas ameaças que instigaram no eleitorado o clamor pela unidade. Alianças eleitoreiras que se limitem apenas a unir-se àqueles que tenham mais chances contra o bolsonarismo não construirão mais do que castelos de areia.

Em São Paulo, isso implica em algo bastante concreto e incômodo, mas que deve ser dito: Haddad pode ser, hoje, aquele com mais chances de derrubar o tucanato e o bolsonarismo no estado. Mas isto não significa dizer que seus discursos e suas linhas programáticas não precisam passar por mudanças.

Nesse ponto, vale lembrar a derrota de Haddad, ainda em 2016, quando concorria à reeleição na capital paulista. Enquanto muitas das pesquisas apontavam a saúde pública como um dos principais problemas para o povo paulistano, Haddad centrava o seu discurso numa tola exaltação do fato de que havia deixado as contas da cidade no azul. Mais atento às pesquisas, Doria prometia o sonho de “hospitais de rico atendendo pessoas pobres” com o Corujão da Saúde. Bem, todos sabemos o quão mentirosas foram as promessas de Doria, mas a questão aqui é: para onde o discurso liberal falido, exaltando um fiscalismo sem sentido, levou Haddad?

Este mesmo discurso, aliás, continuou a ser repetido pelo candidato em sua derrota nas eleições de 2018, como se o aval dos “tarados por ajuste fiscal” fosse algo necessário para chancelá-lo ao cargo que disputava. De lá pra cá, o cenário social e político do país só deteriorou. Políticas de austeridade como o Teto de Gastos vêm castigando com força o povo brasileiro, que passou a sentir em seu dia a dia os piores efeitos que o fiscalismo liberal poderia causar.

É neste cenário caótico de um liberalismo sem freios que se desenha a possibilidade de uma unidade de esquerda assumir, pela primeira vez, o governo do maior estado do país, bem como de ampliar consideravelmente sua bancada em nível nacional. Isto de nada adiantará se o conteúdo programático desta unidade repetir velhos erros. Haddad se tornou, de fato, o melhor nome para derrubar o tucanato e o bolsonarismo em São Paulo, mas é preciso que ele esteja atento aos tempos que vivemos.

Sua eleição, como a de qualquer outra figura da esquerda, não pode ser um fim em si mesmo. O povo brasileiro precisa de um programa que chute para longe do país a agenda liberal e o fascismo. É em torno dessa ideia que toda e qualquer unidade das esquerdas deve ser construída.

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Um comentario para "O xadrez político paulista"

  1. Sérgio alves oliveira disse:

    A ESQUERDA BRASILEIRA DEVE SE INSPIRAR NA LUTA VITORIOSA DA ESQUERDA CHILENA E REVER SEUS CONCEITOS E PRÁTICAS.

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