Rio: abrindo a torneira da água-mercadoria

Enquanto cidades como Paris e Buenos Aires anulam contratos de privatização ineficientes, Grande Rio entrega sua água a fundos de especulação. Em metrópole já empobrecida, lógica do lucro máximo pode eternizar o apartheid do saneamento

Ao fundo, o Museu do Amanhã
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Por Camille Lichotti na Piauí

A aposentada Maria Francisca Coelho, de 83 anos, acorda pontualmente às cinco da manhã e a primeira coisa que faz todos os dias é rezar o terço. Depois, assiste à missa na tevê. Só então começa a preparar o café. “Eu sempre olho a leiteira para ver se a água que deixei lá na noite anterior está boa. Se o barro desce e ela está clarinha, eu passo o café. Se ainda estiver suja, eu não passo”, conta.

A água de sua casa vem de uma tubulação improvisada no subterrâneo da rua que abastece parte da população do bairro onde ela mora, Campos Elíseos, situado em Duque de Caxias, município da Baixada Fluminense. Com cerca de 20 mil habitantes, o bairro nunca teve acesso regular à água encanada, um serviço que até o fim do ano passado era responsabilidade da Companhia Estadual de Águas e Esgotos (Cedae), do Rio de Janeiro.

Em 1971, quando Coelho se mudou para Campos Elíseos, os vizinhos usavam um poço comunitário. “Era dia e noite carregando água nas costas”, lembra. “Até que uns vinte anos atrás um morador decidiu recorrer à água que vinha de um tubo da Petrobras. Deu certo, e todo mundo passou a fazer isso também.” No bairro está instalada a Refinaria Duque de Caxias (Reduc) – uma das maiores do país –, da Petrobras, numa região que foi aterrada no fim dos anos 1950 para receber indústrias de diversos tipos, a maioria ligada ao petróleo e derivados. Desde então, o polo industrial tornou-se uma espécie de cidade dentro da cidade de Duque de Caxias.

A água bruta que abastece o polo de modo contínuo e sem falhas vem do Rio Guandu, a principal fonte de abastecimento da Região Metropolitana do Rio de Janeiro, e atravessa o bairro de Campos Elíseos por adutoras enterradas a cerca de 4 metros do chão. A água é destinada a processos industriais da refinaria de petróleo e não recebe tratamento para consumo humano. Ainda assim, é usada por quase metade dos moradores de Campos Elíseos, segundo a pesquisadora Suyá Quintslr, professora do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), que estudou as condições de acesso à água no bairro. “Todo mundo precisa de água. Se a Cedae não fornece adequadamente, as famílias incorporam outras estratégias, seja usando a água industrial ou fazendo poços rasos”, diz Quintslr.

As tubulações rudimentares construídas pelos moradores não são adequadamente vedadas, e a canalização atravessa rios poluídos da região. Na rua de Maria Francisca Coelho, uma das principais de Campos Elíseos, a água que escapa dessa tubulação improvisada infiltra o asfalto precário, transborda e fica borbulhando acima da superfície.

Os poços artesianos aos quais a população recorre são outro perigo. Na maior parte das vezes, explica Quintslr, a água subterrânea pode estar contaminada pela atividade do complexo industrial. A saída das pessoas é contratar caminhões-pipa ou comprar galões de água mineral, o que é oneroso para a população de baixa renda, mas lucrativo para criminosos. Quintslr conta que, durante sua pesquisa, moradores mencionaram a atividade de “máfias da água”, grupos milicianos que atuam na região vendendo galões. Além disso, são frequentes em crianças do bairro os casos de diarreia e disenteria – doenças relacionadas à falta de saneamento básico. Para atender a escolas e postos de saúde da região, a prefeitura costuma contratar caminhões-pipa.

A Estação de Tratamento de Água (ETA) em Campos Elíseos só foi inaugurada em abril do ano passado, depois de as obras ficarem paradas por catorze anos. “A Cedae priorizou projetos de expansão do serviço em regiões mais rentáveis economicamente, como a Barra da Tijuca e o Recreio dos Bandeirantes”, diz Quintslr. A ETA, porém, não mudou a situação de Maria Francisca Coelho e seus vizinhos, pois a água tratada pela estatal chega à torneira apenas nas quintas-feiras. “Quem tem caixa d’água já coloca para encher. Mas eu não tenho. Então encho todas as minhas vasilhas de manhã porque à noite já acaba. E preciso economizar, porque só chega de novo uma semana depois”, afirma Coelho.

Para ela, essa atividade já se tornou um hábito. Num estreito corredor no quintal, próximo à lavanderia da casa, fica a bica por onde chega a água. A aposentada senta-se em uma cadeira de plástico branca e enche garrafões de 5 litros para estocar durante a semana. “Deus tem que ajudar muito os pobres. Até botarem água direito aqui acho que vai demorar, ou talvez nem aconteça”, lamenta.

A poucos metros dali, perto do Centro de Campos Elíseos, passa um valão fétido. Não muito longe do bairro também correm os rios Sarapuí e Iguaçu, de sinistra coloração marrom, carregando esgoto não tratado, lixo e toda sorte de objetos descartáveis. Os dois seguem até um cartão-postal da cidade do Rio de Janeiro, a Baía de Guanabara, onde desaguam mais de quarenta rios. A baía, especialmente nas proximidades de áreas urbanas, tornou-se um caldeirão poluído e malcheiroso, com esgoto não tratado, altas concentrações de metais pesados (como chumbo e zinco), micropoluentes orgânicos, óleos e graxas. Não à toa, recebeu a alcunha, dada pelo biólogo Mario Moscatelli, de “Latrina da Guanabara”.

A inauguração da ETA em Campos Elíseos ocorreu no mesmo mês de abril em que grande parte dos serviços da Cedae foi leiloada à iniciativa privada, no dia 30. No Ministério da Economia, o setor de saneamento é tratado como pauta prioritária na agenda de concessões, e o leilão serviu de primeiro grande teste para a série de desestatizações que se pretende fazer de outras companhias estaduais de saneamento.

A desestatização é um processo diferente da privatização, que é a venda de uma estatal em caráter definitivo. A companhia fluminense foi transferida à iniciativa privada por um prazo definido, de 35 anos, e com regras contratuais para a exploração do serviço.

A Cedae era cobiçada pelo mercado porque opera uma gigantesca estação de tratamento de água – em 2007, foi reconhecida como a maior do mundo em produção contínua pelo Guinness, o Livro dos Recordes. Além de servir cerca de 10 milhões de moradores do estado do Rio de Janeiro, a estatal se mostrou uma empresa rentável nos últimos anos: em 2019, lucrou mais de 1 bilhão de reais, apesar de ter fechado o ano de 2020 – quando teve início a pandemia – com um prejuízo de 247 milhões.

O apetite dos compradores ficou evidente. Na primeira rodada do leilão, os agentes públicos esperavam arrecadar 10 bilhões de reais. Conseguiram 22,7 bilhões, na maior concessão de infraestrutura de saneamento da história do país. Mas o ágio altíssimo – a diferença de valor entre o mínimo fixado e o que foi alcançado – se deve também às boas condições oferecidas aos compradores, na análise do engenheiro Wagner Victer, ex-presidente da estatal. “A Cedae continuou com os passivos e vendeu os ativos. O desafio das empresas privadas vai ser grande, mas, financeiramente, compraram um filé, porque pegaram basicamente a receita”, diz ele.

Isso quer dizer que a Cedae vendeu às empresas a estrutura de distribuição de água (tubulações, adutoras, reservatórios etc.), mas manteve em seu nome os passivos judiciais e os planos previdenciários dos empregados. Só de empréstimos e financiamentos antigos, a dívida chega a 478 milhões de reais, segundo a própria companhia. “Não vejo como o estado pode deixar de bancar esses prejuízos”, afirma Victer. Ele dá um exemplo: se a Cedae fez um financiamento para construir um reservatório, agora a estrutura é da empresa privada, mas a dívida continuará em nome da estatal. “Quem vai pagar por isso? O princípio conceitual para vender uma estatal é vender algo que vai dar prejuízo. Não era o caso da Cedae. Não é uma empresa que mereceria ser desfeita”, avalia.

Fato é que a Cedae nunca conseguiu atender plenamente às demandas da população do estado do Rio. No Ranking de Saneamento Básico de 2021, elaborado pelo Instituto Trata Brasil com dados do Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (SNIS), quatro dos dez piores municípios brasileiros no quesito saneamento ficam na Região Metropolitana do Rio de Janeiro – Duque de Caxias, Belford Roxo, São Gonçalo e São João de Meriti. Segundo o SNIS, o banco de dados do Ministério do Desenvolvimento Regional, em 2019 mais de 64% da população do estado tinha coleta de esgoto, mas somente 39,8% eram tratados, o que significa que mais da metade do esgoto foi despejada nos cursos d’água sem tratamento adequado.

Os efeitos desse problema não se limitam aos bolsões de pobreza do Rio. Em Copacabana, o Posto 5 ficou conhecido por ser um point do mau cheiro. Uma elevatória de esgoto no local, que bombeia o esgoto da Zona Sul para o mar, contamina o ar e afasta moradores e turistas das calçadas. Há muitos anos, a Cedae prometeu realizar obras no local e tornar tudo mais cheiroso com dispersores aromáticos de eucalipto e jasmim, mas a operação foi paralisada.

Na avaliação de pesquisadores ouvidos pela Piauí, os investimentos na área de saneamento e meio ambiente – cerca de 30 bilhões de reais previstos nos dois primeiros contratos – são o principal ponto positivo da concessão. O edital prevê que a tão sonhada universalização dos serviços de água e esgoto no Rio seja alcançada nos doze primeiros anos de contrato. No Brasil, Curitiba é a capital mais próxima dessa universalização: 100% da população tem abastecimento de água, e 99,9%, esgoto tratado, segundo o ranking do Instituto Trata Brasil.

Para o professor Isaac Volschan Jr., do Departamento de Recursos Hídricos e Meio Ambiente da Escola Politécnica da UFRJ, a desestatização é uma oportunidade única para fazer o trabalho que o poder público nunca fez no estado do Rio. “As empresas privadas tornaram-se grandes concorrentes graças à ineficiência das companhias estaduais para investir no setor”, diz ele. Isso porque a maior parte da arrecadação, no caso da Cedae, era usada para bancar o custo da máquina (pagar pessoal e contas, comprar produtos químicos etc.) e não para investir na melhoria do serviço.

Em dezembro do ano passado, as duas empresas vencedoras do primeiro leilão – Iguá Saneamento e Águas do Rio – já haviam iniciado algumas intervenções para aprimorar o sistema. A Iguá se concentrava inicialmente em obras na Estação de Tratamento de Esgoto da Barra da Tijuca e trabalhos de limpeza do Sistema Lagunar de Jacarepaguá, retirando lixo das margens da Lagoa do Camorim e implantando 50 mil mudas de plantas nativas, de modo a recuperar a área de mangue da região. A Águas do Rio havia gastado 120 milhões de reais em materiais para obras de emergência: troca de tubulações inadequadas por falta de manutenção, recuperação de estações elevatórias e instalação de bombas. A empresa trabalha com metas de redução de perdas, o que gera maior disponibilidade de água dentro do sistema e, em teoria, melhora o fornecimento para quem sofre com a falta dela.

A Águas do Rio iniciou, em fevereiro passado, a implantação de uma rede de abastecimento para a comunidade do Sebinho, em Mesquita, na Baixada Fluminense. Concluída a obra, os 3 mil moradores da região receberão água pela primeira vez. Antes dessa intervenção, as casas não eram ligadas ao sistema, e os moradores precisavam improvisar buscando água fora da comunidade.

Nos termos do edital, as empresas devem priorizar o investimento para despoluição de corpos hídricos estratégicos – inclusive a despoluição da Baía de Guanabara e o fim do despejo de esgoto não tratado no Rio Guandu. O contrato prevê que 90% do esgoto lançado na baía seja tratado até 2033 com uma rede tradicional (nos primeiros cinco anos de contrato, municípios no entorno da baía receberão uma solução provisória, com o esgoto ligado à rede pluvial, que capta água da chuva). A ideia de recuperar a Baía de Guanabara não vem de hoje. Os primeiros projetos começaram a ser feitos a partir da década de 1990, atravessaram ao todo nove governos – e nunca foram concretizados. A Águas do Rio e a Secretaria de Estado da Casa Civil garantem que, desta vez, a odisseia chegará ao fim.

Especialistas também indicam os pontos negativos da desestatização. Em cidades do interior do estado, a empresa concessionária será responsável por todo o processo de abastecimento, inclusive a produção de água tratada. Mas na cidade do Rio e na área metropolitana da capital, que operam com os maiores reservatórios – dos sistemas Guandu e Laranjal –, a captação e o tratamento da água serão ainda responsabilidade da Cedae. A estatal venderá a água às concessionárias, que cuidarão da sua distribuição e da coleta de esgoto.

A pesquisadora Ana Lucia Britto, coordenadora do Observatório Nacional dos Direitos à Água e ao Saneamento (Ondas) e professora do Laboratório de Estudos das Águas Urbanas da UFRJ, prevê um “jogo de empurra-empurra”, com chances de se transformar em enorme imbróglio. De um lado, diz ela, estará a companhia estadual vendendo água de qualidade duvidosa, devido à contínua poluição dos corpos hídricos do estado e ao sucateamento da companhia. De outro, empresas privadas, que vão ter que distribuir essa mesma água e cobrar pelo serviço. Wagner Victer, o ex-presidente da Cedae, chama esse modelo híbrido de “jabuticaba”. “A Cedae vai produzir água só para continuar existindo e para carregar seus passivos”, diz.

A “jabuticaba” já começou a gerar atritos. Em novembro do ano passado, um dos superintendentes da Águas do Rio, Cleyson Jacomini, afirmou que neste ano a geosmina voltará à água fornecida pela Cedae. A geosmina é uma substância produzida por algas e cianobactérias que proliferam em épocas de calor e se avolumam ainda mais nos tanques de água com a liberação de esgoto não tratado, afetando a cor, o odor e o sabor da água. Em 2020, em pleno verão e pouco antes da pandemia, cariocas de todas as regiões e moradores da Região Metropolitana do Rio começaram a receber nas torneiras de suas casas uma água em tons terrosos, com odor muito forte e gosto peculiar. A crise durou mais de um mês, mas até hoje os cariocas desconfiam da qualidade da água de suas torneiras.

Quando soube da declaração de Jacomini, o atual presidente da Cedae, Leonardo Soares, ligou para o presidente da Águas do Rio, Alexandre Bianchini. “Eu falei com quem realmente é o ator desse debate e ele me passou que esse sujeito [Jacomini] não participava das conversas”, conta Soares. A Cedae afirmou que adota todos os protocolos para garantir a qualidade da água em suas estações de tratamento. A Águas do Rio, por sua vez, disse que Jacomini apenas havia explicado que os investimentos para despoluição do Rio Guandu serão realizados ao longo de cinco anos, não gerando impacto imediato neste verão – mas que isso não significa necessariamente que a geosmina vai reaparecer nas torneiras. “Evitar a geosmina continua sendo uma responsabilidade da Cedae”, frisou a Águas do Rio, em nota enviada à Piauí. A concessionária explicou que fará testes laboratoriais independentes na água e que acompanhará o trabalho técnico da estatal.

Outro possível imbróglio da concessão relaciona-se ao corte da água em caso de inadimplência. No passado, a Cedae não tinha uma política forte de restrição dos serviços por falta de pagamento. Por ser uma estatal, evitava cortar a água em áreas mais pobres, pois isso podia representar risco político para os governantes da vez. De acordo com pesquisadores, esse procedimento pode se tornar comum com o controle das empresas privadas, que precisam distribuir lucro aos acionistas. As concessionárias vencedoras do leilão, por outro lado, afirmam que não pretendem realizar grandes cortes e, se preciso, vão negociar eventuais dívidas com os consumidores.

O contrato de concessão determina que as empresas privadas ofereçam tarifa social – com valor abaixo do preço de mercado – a 5% dos clientes de baixa renda. Mas também estabelece que esse benefício poderá ser revisto, caso a proporção de população sujeita ao pagamento de tarifa social ultrapasse 5%. A Águas do Rio disse que trabalha para conceder o benefício a um número maior – 10%. Segundo dados de 2020 da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD), do IBGE, mais de 20% da população fluminense vive abaixo da linha da pobreza. Ou seja: com qualquer percentual, 5% ou 10%, sobrarão moradores pobres pagando pela água a mesma tarifa dos consumidores mais abastados.

No contrato não está previsto aumento da tarifa – os valores serão corrigidos apenas pela inflação. Mas nada impede que isso ocorra, em caso de “reequilíbrio econômico-financeiro”, um recurso ao qual as empresas privadas recorrem em negócios com o poder público. Em 2020, pesquisadores da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) analisaram a minuta do documento e declararam, em nota conjunta, ter encontrado 26 brechas para as companhias conseguirem ajustes mais elevados.

O ministro da Economia, Paulo Guedes, costuma citar a telefonia como exemplo bem-sucedido de privatização, mas ignora o argumento mais usado pelos que a defenderam: a ampliação da concorrência. No caso da água, o mercado é cativo: se o cliente não estiver satisfeito com a empresa que ganhou a concessão na área em que vive, ele não poderá escolher outra, pois o contrato entrega o serviço a uma única e exclusiva companhia por um período de 35 anos.

Até hoje, apenas uma empresa estadual de saneamento foi totalmente privatizada no Brasil: a Companhia de Saneamento do Estado do Tocantins (Saneatins). Ela teve seus ativos vendidos em 1998 para a Emsa – Empresa Sul Americana de Montagens S.A., que os revendeu em 2011 para a Odebrecht Ambiental, hoje BRK Ambiental, uma das maiores companhias privadas de saneamento do país. Essa privatização, que afetou 139 cidades, é um caso exemplar de fracasso. O governo tocantinense precisou criar uma autarquia para gerenciar o serviço em 78 municípios, a maioria na zona rural, que saíram do acordo de privatização, pois as empresas não haviam cumprido os acordos firmados. A Agência Tocantinense de Saneamento passou a ser responsável pelo serviço nesses municípios em 2013. A BRK ficou com o filé, dispensando o osso: continuou a gerenciar a capital Palmas e as cidades mais populosas do estado.

Todas essas mudanças trouxeram pouco proveito para a população do Tocantins. Em 2020, apenas 27% dos moradores do estado haviam conseguido acesso à rede de esgoto (em 2010 eram 13,5%), segundo dados do SNIS – um avanço muito pequeno e, mesmo assim, concentrado nas áreas mais ricas. “As pesquisas mostram uma priorização do investimento nas áreas rentáveis, onde a população tem capacidade de pagamento de tarifas mais altas. É lá que o operador privado faz mais investimentos”, diz a pesquisadora Suyá Quintslr. “Enquanto isso, nas outras áreas, as mais pobres, as redes começam a ficar obsoletas e sem manutenção adequada.” Para Quintslr, é grande a chance de que isso ocorra também no Rio de Janeiro.

O edital de concessão fixou um valor mínimo de investimento em áreas “irregulares” não urbanizadas na cidade do Rio de Janeiro – ou seja, áreas rurais e comunidades com baixa infraestrutura urbana, para onde serão alocados 1,8 bilhão de reais visando à ampliação de saneamento. A Secretaria de Estado da Casa Civil disse que a prioridade é focar em áreas onde há “planejamento de urbanização do poder público” e “maiores condições de segurança”. Mas não explicou no contrato o que entende por áreas “seguras” no Rio de Janeiro. “Em lugar de as definições serem norteadas pelo critério de saúde pública, priorizando as áreas mais insalubres, a modelagem adota o critério de rentabilidade [relacionado a áreas onde o governo já tem planos econômicos] e de segurança”, disse uma nota emitida pelos pesquisadores da Fiocruz.

A relação entre as empresas privadas e a Cedae durante a prestação do serviço será mediada pela Agência Reguladora de Energia e Saneamento Básico do Estado do Rio de Janeiro (Agenersa) – órgão que, segundo Ana Lucia Britto, “não tem pessoal nem capacidade técnica para fazer a regulação desses contratos”. Atualmente, menos de vinte funcionários concursados trabalham na Agenersa, que até meados de 2021 estava impedida de realizar concursos públicos. “Enquanto a agência reguladora é frágil, as empresas vencedoras são gigantes e têm um setor jurídico implacável”, diz.

“No Rio, estamos no nível mais baixo possível de regulação e não há nenhum esforço no sentido de preparar a agência para esse enorme desafio que está colocado”, avalia Volschan Jr., da UFRJ. Ele acredita que as agências reguladoras ainda precisam construir uma cultura própria para o enfrentamento de conflitos e definir os métodos a serem seguidos. Nos bastidores da Cedae, as críticas são mais ferozes: quem entende dos meandros do setor de saneamento afirma que a Agenersa simplesmente não tem corpo técnico com competência e qualificação adequada para regular as empresas privadas e o contrato bilionário feito entre elas e o estado.

Enquanto isso, a própria Cedae, apesar das responsabilidades que ainda terá na captação de água no Rio de Janeiro, está se esvaziando. De maio a novembro de 2021, mais de mil funcionários foram desligados – 16 pediram demissão e 1.157 aderiram ao Programa de Demissão Voluntária criado pela estatal. Parte dos servidores está sendo contratada por empresas privadas, como o próprio presidente da Cedae que fez a “venda” da companhia, Edes Fernandes de Oliveira. Ele foi exonerado do cargo poucos meses depois do leilão e, logo em seguida, contratado como consultor técnico pela Águas do Rio. A contratação não é ilegal, mas o uso da porta giratória não deixou de causar polêmica. Em nota, a empresa informou que já contratou setenta ex-funcionários da estatal com o objetivo de manter o funcionamento do sistema e de “sempre contar com os melhores profissionais do mercado”.

A Cedae agora pretende se tornar uma produtora de tecnologia para vender soluções a outras companhias de saneamento – públicas e privadas – e planeja inaugurar neste ano um laboratório de inovações. A companhia já começou a certificar, por exemplo, hidrômetros com sistema IOT (internet das coisas), que proporciona interconexão digital de objetos por meio da internet.

O rumo tomado pelo Brasil vai na contramão de um movimento identificado no resto do mundo pelo Instituto Transnacional (TNI), centro de pesquisa holandês: o de remunicipalização do serviço de água – ou seja, do fim das concessões do setor de saneamento à iniciativa privada. O instituto registrou 235 casos de retomada do serviço de água pelo poder público em 37 países, entre 2000 e 2015 (e esse número só não foi maior porque cerca de 90% dos sistemas de água no mundo já estavam sob gestão pública). Na lista da remunicipalização, figuram cidades como Paris, Berlim, Budapeste e Buenos Aires. Uma das autoras responsáveis pela pesquisa do TNI, Satoko Kishimoto, explicou que, em geral, as cidades estão voltando atrás porque constataram que as privatizações ou parcerias com o setor privado geram tarifas muito altas para a população e as empresas acabam não cumprindo as promessas de investimento ou operam sem transparência.

Na França, entre as cidades que decidiram fazer o caminho inverso estão Grenoble, Briançon e Nice, além de Paris. Na capital francesa, duas gigantes do setor privado passaram a cuidar da distribuição da água a partir de 1984, e uma companhia (no modelo de parceria público-privada) era responsável pela produção e transporte. Em 2001, com a eleição de Bertrand Delanoë, do Partido Socialista, a prefeitura manifestou o desejo de retomar a gestão do serviço. Os que eram favoráveis à ideia defendiam que a falta de transparência das empresas privadas e a atuação guiada pelo lucro seriam incompatíveis com o caráter público da água.

Em 2009, no segundo mandato de Delanoë, a prefeitura decidiu não renovar o contrato de concessão e criou a Eau de Paris (Água de Paris), entidade pública que passou a ser responsável pelo serviço. A medida trouxe resultados favoráveis de imediato aos usuários. A tarifa logo baixou 8% – e dez anos depois ficou 20% mais barata que a cobrada por operadores privados. Como seu objetivo principal não é distribuir lucro entre os acionistas, a Eau de Paris investiu a receita na melhoria do serviço e em trabalhos sociais para implementar bebedouros e banheiros públicos nas ruas da capital.

Mesmo nos Estados Unidos, onde o capitalismo é mais avesso a estatizações, o saneamento é uma espécie de limite para o avanço das empresas privadas. Apesar dos esforços corporativos, a privatização do setor é incomum no país. Em 2012, uma pesquisa mostrou que apenas 6% dos governos municipais contratavam serviços de água e esgoto de entidades privadas. De 2000 a 2015, as grandes empresas de água perderam 169 contratos em cidades que decidiram remunicipalizar o serviço, segundo o relatório do TNI.

A privatização foi tentada em Atlanta, no Sul dos Estados Unidos, mas terminou em prejuízo. Desde o fim da década de 1990, a cidade mantinha um contrato milionário – o maior do país – com uma companhia francesa, concessão que foi vista como uma vitória dos agentes privados. Para otimizar os lucros, a concessionária cortou custos operacionais e ainda no início da operação demitiu funcionários.

Logo começaram a pipocar problemas na rede de abastecimento. Uma linha de água rompida, por exemplo, demorava meses para ser consertada, e só metade dos projetos de manutenção eram finalizados. Enquanto isso, o valor da tarifa não parava de subir – 12% ao ano, em média. A concessionária pediu um reajuste de 80 milhões de dólares (cerca de 407 milhões de reais, no câmbio atual) no valor do contrato inicial e, depois, requisitou um aporte de 37 milhões de dólares para bancar custos de reparo e a manutenção de capital. A Prefeitura de Atlanta pagou 16 milhões de dólares (hoje, cerca de 82 milhões de reais), mas descobriu em seguida que a concessionária estava usando o dinheiro em projetos fora da cidade, inclusive nas tentativas de negociar contratos país afora. O escândalo foi a gota d’água: em 2003, a Câmara Municipal de Atlanta decidiu rescindir o contrato e, desde então, o poder público controla o serviço de saneamento.

Mas não é preciso ir tão longe para encontrar exemplos de atuação desastrosa de empresas privadas no setor. A América do Sul está repleta de casos parecidos e, às vezes, mais graves. Isso porque nas cidades ricas dos países europeus a universalização do abastecimento de água era, bem ou mal, assunto resolvido antes da entrada de empresas privadas. Nos países vizinhos do Brasil, com histórico semelhante de pobreza e desigualdade, o buraco é mais embaixo.

Em Cochabamba, uma das maiores cidades da Bolívia, a privatização terminou em confronto – a “guerra da água”, como ficou conhecido o episódio. No início dos anos 2000, a recém-criada Aguas del Tunari, consórcio formado por empresas transnacionais, anunciou que dobraria o valor da tarifa na região. Para proteger os interesses da concessionária, a polícia proibiu a população rural de captar água da chuva em seus sistemas comunitários tradicionais. Além disso, o consórcio havia prometido investimentos milionários que nunca foram feitos.

Os moradores, então, organizaram uma série de manifestações, exigindo que a concessionária saísse de Cochabamba. Os conflitos se tornaram mais e mais violentos, levando o governo a decretar estado de sítio. Por fim, acabou cedendo à pressão popular e anulou o contrato de concessão, que deveria durar quarenta anos. A companhia municipal de água e saneamento, que tinha fama de ser ineficiente e corrupta, voltou a operar, reorganizada por movimentos da sociedade civil.

Em Buenos Aires, a privatização terminou em frustração. A cidade realizou, em 1993, a maior concessão de saneamento do mundo à época. Além dos sucessivos aumentos tarifários, a concessionária francesa descumpriu uma série de obrigações contratuais, entre elas, compromissos de investimento e metas de expansão do sistema – o contrato inicialmente previa a universalização do serviço, mas foi reajustado depois para diminuir a meta. A empresa também não cumpriu os objetivos de proteção ambiental e de qualidade do serviço.

Quando o custo social da privatização em Buenos Aires chegou a um patamar insustentável, começaram os acordos. A concessionária pediu que o governo pagasse parte dos investimentos e reivindicou um novo ajuste tarifário para manter a margem de lucro. Em 2006, o presidente Néstor Kirchner anulou o contrato de concessão e devolveu os serviços ao poder público, com a criação de uma nova empresa. Pesquisadores avaliam que o prejuízo econômico, ambiental, político e social da privatização do saneamento de Buenos Aires é incalculável.

“No Brasil foi usado o discurso de que o serviço público não estava dando certo, e a única forma de resolver seria recorrer à iniciativa privada. Mas o governo não fez nenhum estudo que apontasse países ou contextos em que as empresas privadas de saneamento foram a solução”, diz Léo Heller, pesquisador da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e ex-relator especial da ONU sobre direito humano à água e ao saneamento. Em 2020, último ano de seu mandato na relatoria da organização, Heller escolheu como tema de seu derradeiro relatório a privatização do saneamento e os riscos de violação dos direitos humanos. “Precisei de seis anos para me preparar”, conta ele, rindo.

Em uma das páginas do documento entregue à Assembleia Geral da ONU, Heller concluiu que “a privatização dos serviços de água e esgotamento sanitário levanta preocupações relacionadas à sustentabilidade, pois muitas vezes as empresas privadas se abstêm de investir na expansão, melhoria ou manutenção da infraestrutura”. O relatório, que trazia uma análise concreta dos riscos associados à privatização, repercutiu fortemente nos salões da ONU. Heller foi atacado por representantes do setor privado, que o acusaram de não respeitar o código de conduta dos relatores das Nações Unidas e procuraram a alta-comissária para os Direitos Humanos da organização, Michelle Bachelet, ex-presidente do Chile, para denunciá-lo. Em contrapartida, centenas de ONGs saíram em sua defesa. “Existem atores muito preocupados com os rumos dessa discussão, e os agentes privados querem silenciá-la”, diz ele.

Na avaliação de Heller, o Brasil está seguindo um caminho “meio obsoleto”. A escala da privatização em curso no país – em relação ao tamanho da população atendida pelo serviço e a quantidade de municípios afetados em uma só canetada – é comparável apenas ao movimento feito pelo Reino Unido e pelo Chile nas décadas de 1980 e 1990 de implementação da agenda neoliberal. “E o que há nesses países hoje são questionamentos em relação a esse modelo”, completa Heller. No Chile, existem apelos para cancelar a propriedade dos ativos de empresas privadas. No Reino Unido, são inúmeros os problemas, como a falta de investimento por parte das empresas e questionamentos sobre os altos salários dos executivos. Ou seja, justamente nos países que seriam os grandes exemplos de privatização, o modelo parece estar ruindo.

“O Brasil é o único país que está radicalizando o processo de privatização no setor. Não existe nenhum outro lugar do mundo que opere a privatização do saneamento com essa abrangência e nessa escala”, afirma o ex-relator da ONU. Para ele, os vários exemplos internacionais desmentem a tese de que o modelo privado é a solução para os problemas de saneamento. “A decisão dos governantes brasileiros foi claramente ideológica e não se pautou em dados ou evidências concretas”, diz.

O governo federal atuou diretamente em favor da concessão da Cedae à iniciativa privada. Tanto assim que o presidente Jair Bolsonaro e o ministro da Economia, Paulo Guedes, estiveram presentes no primeiro leilão na B3, a bolsa de valores sediada em São Paulo.

Guedes subiu ao palco para agradecer aos investidores. “O Brasil vai retomar o crescimento”, disse ele na solenidade realizada em abril. “Nós vamos atravessar as duas ondas: a da pandemia que está aí e a ameaça econômica que nos afeta. O Brasil vai crescer e nós vamos voltar a dias melhores à nossa frente com confiança no país.” Em seu discurso de três minutos e meio, o ministro citou a palavra “confiança” dez vezes. Quando estava deixando o palco, foi avisado de que esquecera de bater o martelo, gesto teatral repetido por todas as autoridades que discursaram. Com expressão de tédio, segurou o martelo de madeira adornado com detalhes dourados e deu três rápidas batidinhas na base.

“Este é o momento que marca nossa história, nossa economia”, discursou Bolsonaro no final do leilão. “[Somos] um governo voltado para a liberdade de mercado, na confiança dos investidores e na crença de que o Brasil pode ser diferente.” Ao chegar sua vez de bater o martelo de madeira, Bolsonaro deu um grito breve, como se fizesse um brinde e, rindo, encerrou o evento com três fortes pancadas do instrumento. As marteladas não têm nenhuma culpa, mas, de lá para cá, a confiança na recuperação econômica do Brasil desabou.

Dias depois, o PDT pediu a anulação do leilão ao Supremo Tribunal Federal (STF). Os advogados do partido disseram que não havia informações sobre o destino dos postos de trabalho e do fundo de previdência dos empregados da Cedae no edital de concessão. Segundo eles, cerca de 5 mil trabalhadores seriam “lançados à própria sorte”. A organização Ondas também pediu o cancelamento do leilão, alegando conflito de interesses, já que o BNDES, entidade envolvida na modelagem da concessão, detém 13% das ações da Iguá Saneamento, que arrematou um dos blocos leiloados. Mas os dois pedidos foram em vão – e os primeiros contratos foram assinados em agosto de 2021.

Para o leilão, o BNDES fatiou a cidade do Rio de Janeiro e outros 34 municípios fluminenses em quatro blocos. Todos eles incluíram bairros da capital combinados com municípios da região metropolitana e do interior. A ideia era que a empresa vencedora levasse um “filé”, ou seja, áreas que dão lucro, mas também um “osso”, com regiões deficitárias. Os prefeitos puderam escolher entre participar no leilão costurado pelo governo estadual ou licitar o saneamento de forma independente.

O bloco 1 compreende dezoito bairros da Zona Sul do Rio de Janeiro, a região mais rica da cidade, e outros dezoito municípios. Essa foi a fatia mais cara do leilão, ofertada por 4 bilhões de reais. O bloco 2 conta com bairros da Zona Oeste da capital (alguns dos mais ricos dessa região) e duas cidades do interior. A oferta foi de 3 bilhões de reais. O bloco 3 tinha, inicialmente, outros 22 bairros da Zona Oeste (entre eles os mais pobres) e cidades da região metropolitana, com infraestrutura reconhecidamente precária. Por isso, foi o bloco mais barato do leilão, ofertado por 908 milhões de reais. Já o bloco 4 abrange bairros do Centro e da Zona Norte da capital – que formam um bolsão de pobreza no subúrbio –, além de cidades da Baixada Fluminense. A oferta foi de 2,5 bilhões de reais.

Três blocos foram arrematados em 30 de abril do ano passado. Os blocos 1 e 4 passaram às mãos da Águas do Rio. A empresa pagou 8,2 bilhões de reais pelo bloco 1, e 7,2 bilhões de reais pelo bloco 4 – mais que o dobro que havia sido proposto inicialmente pelo estado. Com as maiores fatias do bolo, a Águas do Rio se tornará a principal operadora de saneamento na capital e na região metropolitana. A Iguá Saneamento levou o bloco 2 por 7,3 bilhões de reais, também mais que o dobro do fixado inicialmente. A briga pelas regiões ricas e rentáveis foi acirrada. O cálculo é simples: vale a pena gastar mais onde haverá bom retorno financeiro – ou seja, onde a população tem maior poder aquisitivo.

Depois de assinados os contratos de concessão, em agosto de 2021, as duas empresas vencedoras do primeiro leilão entraram em período de operação assistida. Além de acompanhar as atividades da Cedae in loco, visitando instalações e observando a prestação de serviço, os funcionários da Águas do Rio e da Iguá tiveram acesso ao departamento contábil e comercial da estatal. “A alta administração está muito engajada no processo”, diz o atual presidente da Cedae, Leonardo Soares. “Se o serviço não chegar bem na ponta, vai ser culpa de todo mundo. Então estamos bastante integrados para fazer funcionar.”

A Águas do Rio decidiu finalizar o período de operação assistida antes do prazo e começou sua atuação em novembro do ano passado. A Iguá optou por continuar acompanhando a Cedae e deu início à operação em fevereiro passado.

Apenas o bloco 3 não foi arrematado em abril, na primeira rodada do leilão. Na avaliação da pesquisadora Ana Lúcia Britto, o bloco era o menos interessante para o mercado porque na região já opera, desde 2012, uma concessionária privada, a Zona Oeste Mais Saneamento. A empresa atua na coleta e tratamento de esgoto de 22 bairros da região e tem entre seus acionistas a BRK Ambiental e o grupo Águas do Brasil. Quando essa concessão teve início, 5% do esgoto da região era tratado. Em 2019, o percentual chegou a 36%. “É estranho que a própria BRK não tenha entrado no leilão, já que poderia completar o sistema sozinha. Mas aquela realmente é uma região muito pouco rentável. A tarifa social lá vai precisar ter um volume mais alto do que no resto do estado”, avalia Britto.

Para o professor de geografia André Germano, morador de Santa Cruz, um dos bairros da Zona Oeste que compõem o bloco 3, a região não foi arrematada de imediato simplesmente por não ser lucrativa. “O não leilão revela como esses empresários pretendem agir. A questão talvez não seja a qualidade do serviço, mas tratar a água como mercadoria”, diz. “A Zona Oeste é uma grande mancha de uma urbanização precária, de baixa renda e com um aglomerado de áreas pobres. As pessoas não têm como pagar a água.”

Germano, de 26 anos, cresceu acostumado com a falta d’água. “Aqui é certo: se fizer calor, não tem água. Você liga a torneira e só escuta barulho de ar na tubulação”, conta. Na casa onde ele mora com os pais também funciona um terreiro de umbanda e, por isso, o local dispõe de três caixas d’água e de um sistema de registro interno que controla o fluxo, liberando a água armazenada nas caixas se faltar a que vem da rua. Quando a água chega sem força suficiente para encher as caixas, o que ocorre com certa frequência, é preciso usar uma bomba.

Checar o nível da caixa d’água virou rotina na família porque, a qualquer momento, a água da rua pode simplesmente acabar. No verão, a família de Germano costuma ficar semanas sem água, que não tem hora certa para chegar. “Eu já tive que ficar acordado de madrugada esperando a caixa encher para conseguir tomar banho e escovar os dentes”, diz Germano.

A situação do professor de geografia é comum no Rio de Janeiro, por causa da topografia acidentada da cidade, com morros altos e casas construídas em diferentes níveis de elevação, o que demanda um sistema de bombas mais complexo. “Nasci aqui e nunca vi uma obra da Cedae para ampliar a infraestrutura”, afirma Germano. “A primeira vez que eu vi a Cedae fazer alguma coisa foi logo depois do leilão: passaram colocando hidrômetros.” O aparelho é usado para medir o consumo de água. “Para mim é sintomático que mesmo antes de ter uma concessionária definida, eles resolveram colocar hidrômetro em todas as ruas. O preço da conta já subiu muito e a água continua não chegando.”

A Águas do Rio foi a única empresa a fazer uma oferta pelo bloco 3 em abril, mas a retirou antes do leilão. À época, em entrevista à rádio CBN, o governador Cláudio Castro (PL) disse que a região da Zona Oeste não fora arrematada “porque os outros [blocos] eram muito melhores” e que a remodelagem dessa concessão iria “com certeza” atrair interessados. Para a pesquisadora Suyá Quintslr, a pendência do bloco 3 acabou servindo ao governo do estado para renegociar a entrada de outros municípios cujos prefeitos não quiseram participar do primeiro leilão. “Como o ágio na primeira remessa foi muito grande, isso serve como instrumento de barganha política”, avalia.

Em novembro passado, o governo publicou o novo edital para o leilão do bloco 3, realizado no mês seguinte. O número de municípios no bloco saltou de 6 para 20, além dos bairros da Zona Oeste. Os que não quiseram participar continuarão a ser atendidos pela Cedae até que as prefeituras façam suas próprias licitações ou assumam a operação. Apesar de o número de municípios ter aumentado, o valor mínimo fixado para a outorga foi reduzido de 2,6 bilhões para 1,1 bilhão de reais.

A Águas do Brasil arrematou o bloco 3 em um leilão realizado no fim de dezembro de 2021, oferecendo o dobro do valor fixado pelo estado. A empresa é uma das investidoras da Zona Oeste Mais Saneamento, concessionária que já opera os serviços de esgoto na Zona Oeste e, a partir de agora, fará também a distribuição de água da região.

O projeto de privatizar o setor de saneamento não é recente. A ideia remonta ao Programa Nacional de Desestatização, lançado pelo governo Fernando Collor no início dos anos 1990 e redesenhado em 1997 na gestão de Fernando Henrique Cardoso. No ano seguinte, foram vendidos os ativos da Saneatins, do estado do Tocantins. Em 2000, a Manaus Saneamento, subsidiária da Companhia de Saneamento do Amazonas, também foi entregue ao setor privado. A privatização da Cedae e de outras companhias estaduais deveria ocorrer na mesma época, mas foi suspensa, por causa de um conflito em relação à titularidade do serviço. A rigor, os municípios têm controle sobre o serviço de saneamento e podem optar por não transferi-lo a companhias privadas. O imbróglio foi parar no STF, que suspendeu os negócios.

Em 2018, o governo federal retomou o projeto de privatização do saneamento a partir da edição de medidas provisórias. O movimento culminou na promulgação de um novo Marco Legal do Saneamento, sancionado em julho de 2020, que modificou a lei anterior, de 2007. A pesquisadora Ana Lucia Britto diz que o novo texto é cheio de incompletudes. “O direito humano à água sequer foi mencionado”, ressalta. Trata-se de um direito que a Constituição brasileira não menciona, mas que foi reconhecido pela Organização das Nações Unidas em 2010.

O novo Marco Legal do Saneamento, na prática, veio a calhar com a proposta de concessão da Cedae à iniciativa privada. O texto praticamente inviabilizou a captação de recursos públicos por autarquias municipais e extinguiu os contratos de programa, feitos entre entes da federação ou com empresas privadas para a gestão de serviços públicos. Esses contratos eram a forma mais comum de atuação das companhias estaduais.

Após a aprovação do Marco Legal, a companhia estadual de Alagoas foi a primeira a ser leiloada, ainda no fim de 2020. Mas apenas os serviços da Região Metropolitana de Maceió foram arrematados e não houve empresas interessadas nos municípios do sertão e do agreste alagoano. Somente em dezembro de 2021, o BNDES realizou outra rodada de concessão, atraindo novos interessados. Na prática, foi o leilão da Cedae que serviu de exemplo para o início da desestatização de outras companhias estaduais de saneamento. Logo depois do pregão da estatal fluminense, foi a vez da companhia de saneamento do Amapá. O BNDES também já preparou um modelo para a concessão dos serviços em Porto Alegre, muito parecido com o adotado no Rio. Planeja ainda a venda de ações da Companhia Riograndense de Saneamento e a concessão dos serviços da estatal da Paraíba, de Rondônia e Sergipe, além de uma Parceria Público-Privada (PPP) no Ceará. Tem também no radar a concessão da Companhia de Saneamento de Minas Gerais.

A Cedae foi criada em 1975 pelo governo militar, que tinha o objetivo de centralizar o setor nas mãos do Estado. Nas décadas seguintes, a exploração política da estatal foi uma constante. Em 2020, uma denúncia apresentada pelo Ministério Público Federal (MPF) citou a Cedae como “instrumento próprio para exercício de poder” de Everaldo Dias Pereira, conhecido como Pastor Everaldo, presidente do Partido Social Cristão (PSC) e subsecretário da Casa Civil no governo Anthony Garotinho (na época PDT, hoje sem partido) de 1999 a 2002.

Conforme a denúncia, desde pelo menos a década de 1990, Pastor Everaldo loteou cargos e utilizou o orçamento da companhia em benefício próprio, em conjunto com o ex-deputado Eduardo Cunha (MDB) – mais tarde condenado à prisão em vários casos de corrupção e atualmente em liberdade. O Ministério Público apontou ainda que Cunha e Pastor Everaldo se aliaram a Garotinho para gerir uma “caixinha da propina” com parte dos valores de contratos da estatal. A dupla Everaldo-Cunha foi afastada do “comando” da Cedae no mandato do ex-governador Sérgio Cabral (na época MDB, hoje sem partido), entre 2007 e 2014, quando a companhia passou por uma reestruturação administrativa.

Cabral dizia ter três problemas para resolver no estado: a saúde, a segurança e a Cedae. O ex-secretário Estadual de Energia, da Indústria Naval e do Petróleo, Wagner Victer foi o escolhido para comandar a mudança na Cedae. Ele encontrou a estatal praticamente sem dinheiro em caixa, com as linhas telefônicas cortadas e as contas de luz atrasadas. Funcionários não tinham crachás nem equipamentos adequados de proteção individual. “Era certamente uma empresa quebrada”, resume Victer, um homem de olhos verdes e fundas olheiras, em seu escritório com vista para a Baía de Guanabara. Ele adotou uma série de medidas para reerguer a Cedae, sanear suas contas e prepará-la para a abertura de capital. A companhia começou a ser auditada por órgãos independentes, implantou um sistema integrado de informações e até ajustou seu nome: passou a ser “Nova Cedae”.

As mudanças abriram um tempo perigoso para Victer. Dois de seus seguranças foram assassinados em 2009 em um subúrbio do Rio de Janeiro, e ele achou melhor levar sua família para o interior, com medo de que sofresse algum atentado. Em outra ocasião, um político ligado à milícia cobrou uma indicação para um dos cargos da companhia. Antes de iniciar a conversa, tirou uma arma da cintura e a colocou em cima da mesa. O ex-presidente da Cedae diz que não ofereceu o cargo, mas programou uma obra para ampliar o abastecimento de água – que de fato era necessária – na comunidade sob a influência daquele político. Uma vez finalizada a obra, Victer compareceu à inauguração. “Comprei para o político uma camisa do Fluminense, pedi para o Fred [centroavante do time] autografar, e ele virou meu chapa.”

Aos poucos, a Cedae deixou de ser uma dor de cabeça e se tornou a joia da coroa do governo de Cabral (que tempos depois seria condenado por corrupção a mais de 390 anos de prisão e agora cumpre a pena no Batalhão Especial Prisional da Polícia Militar, em Niterói). Com as contas em dia, a Cedae começou a captar empréstimos, conseguiu classificação duplo A (qualidade muito alta) da agência internacional Standard & Poor’s e por duas vezes foi eleita a melhor empresa de infraestrutura do Brasil pela revista Exame, competindo, inclusive, com empresas privadas. Começou a dar lucro e a distribuir dividendos – 99,9% da empresa pertence ao governo do estado do Rio e o restante é dividido entre acionistas minoritários. Em 2010, a Fundação Getulio Vargas publicou a compilação de artigos A Nova Cedae: Um Case de Sucesso na Gestão Pública, destrinchando as mudanças na companhia e os avanços na cobertura do serviço.

Há, porém, um contraponto a essa história de sucesso. A Cedae passou anos sem fazer reajustes financeiros nos contratos da companhia – e carrega esse passivo nas suas contas até hoje. “Evidentemente o resultado naquele primeiro momento foi positivo, mas hoje a gente paga um passivo judicial expressivo por causa disso. Essas ações mitigam, na minha opinião, o fato de que a Cedae era extremamente lucrativa”, diz o presidente da companhia, Leonardo Soares, que defende a desburocratização da empresa. A Piauí perguntou qual o valor da dívida, mas a estatal não informou, dizendo apenas que identificou 140 contratos que foram à Justiça para atualização.

Com a posse de Wilson Witzel (PSC) como governador em 2019, Pastor Everaldo retomou seu feudo na Cedae, conforme denúncia do Ministério Público Federal. Para a presidência da estatal, Witzel nomeou um indicado por Everaldo, o executivo Hélio Cabral, que na época era réu no processo que investiga o rompimento da barragem de Mariana, em Minas Gerais (em 2015, Hélio Cabral atuava como conselheiro da Samarco, empresa responsável pela barragem).

Foi durante o governo de Witzel e a gestão Hélio Cabral que ocorreu um dos maiores escândalos públicos relacionados à qualidade da água no país. Em pleno verão de 2020, os moradores da capital e da região metropolitana tiveram a sensação de que havia algo podre na água que estavam recebendo em suas casas. Especialistas foram consultados e disseram que se tratava de geosmina, a substância produzida por algas. Em uma análise posterior, pesquisadores da UFRJ encontraram também a substância 2-metilisoborneol, um composto semelhante à geosmina, na água bruta captada pela Cedae e na água potável. Na companhia, já existia um procedimento formal para mitigar a ocorrência desses compostos, uma operação de rotina. “Mas eles não seguiram o procedimento-padrão”, diz Victer. “Não sei se foi por erro, incompetência ou para manchar a imagem da Cedae. Seria leviano tentar cravar uma explicação. Mas, coincidentemente, essa trapalhada da geosmina ocorreu às vésperas do leilão.”

A sede da Cedae fica em um prédio moderno de sete andares na região central da cidade, em frente ao Canal do Mangue – outro corpo hídrico poluído que deságua na Baía de Guanabara. No Condomínio Vila Portuária, um conjunto habitacional a cerca de 1 km dali, mora a professora de português Lívia Marins, estudante de letras. “Hoje a situação ainda é melhor do que era antes: agora temos água dia sim, dia não. Isso é luxo. Já tivemos meses em que não caiu sequer uma gota d’água da torneira por duas semanas”, ela conta. A escassez não ocorre só no condomínio, mas em todo o bairro do Santo Cristo.

Marins convive com a falta de água desde a infância. “Eu abria a torneira e via a água saindo suja, mas não tinha muito o que fazer”, recorda. Quando criança, ela sofria com frequência de diarreia e mal-estar, em razão da água consumida. Para atravessar os períodos de estiagem, a mãe de Marins costumava estocar água em garrafas PET no apartamento de dois quartos. Sem recursos para comprar água mineral regularmente, a família recorria a um filtro de plástico para tentar limpar a água usada nas tarefas domésticas. “A gente rezava para o filtro funcionar direito. Vivemos nesse esquema durante muito tempo.”

Era preciso também racionar o consumo: cada pessoa só podia usar uma garrafa PET por banho. “Eu só consegui abrir o chuveiro e tomar banho mesmo agora, com 21 anos”, diz a professora. Ainda hoje, o seu banho não dura mais que três minutos, porque se acostumou a isso. Houve uma relativa melhora no fornecimento, mas quando chega o verão é certo que vai faltar água em sua casa e em todos os prédios do conjunto habitacional. Em meados de dezembro passado, os vizinhos já haviam entrado numa espécie de plantão para encher barris e caixas d’água – tudo para não passar as festas de fim de ano na seca. “A gente já vai se preparando psicologicamente para gastar menos água.”

Apesar do clima de euforia no governo e das promessas de investimentos, Marins é cética quanto à melhoria do serviço depois do leilão. “Eu sinceramente não sei se vai melhorar, acho que não”, diz ela. “Eu tenho uma memória muito ruim de quando uma empresa privada chega para fazer algo aqui. Bem ou mal, é obrigação do governo zelar pelo nosso bem-estar, então podemos reclamar quando algo desagrada. Mas, quando fazemos denúncias sobre empresas privadas, nunca somos ouvidos.” Graças ao “luxo” de ter água em dias intercalados, Marins e sua família passaram a virada do ano na seca.

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Camille Lichotti é repórter da Piauí.

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