Fascismo, do subterrâneo ao poder. Por quê?

Ultradireita chega a governos e constitui poderosas oposições em diversas partes do mundo. Como na década de 30, explora a crise econômica e brutais desigualdades, catalisando o ressentimento difuso. É preciso entender sua escalada global

Imagem: Mino Maccari, “Mussolini” (1943)
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Por Chris Hedges, no ScheerPost | Tradução: Cesar Locatelli

As contas de energia e alimentos estão em alta. Sob o ataque da inflação e da estagnação prolongada dos salários, o poder de compra dos trabalhadores está em queda livre. Bilhões de dólares são desviados pelas nações ocidentais, em um momento de crise econômica e impressionante desigualdade de renda, para financiar uma guerra por procuração na Ucrânia. A classe liberal, aterrorizada com a ascensão do neofascismo e de demagogos como Donald Trump, tem jogado sua sorte com políticos do establishment, desacreditados e injuriados, que servilmente cumprem as ordens da indústria de guerra, dos oligarcas e das corporações.

A falência da classe liberal significa que vêm crescentemente da extrema direita aqueles que condenam a loucura da guerra permanente e da expansão da OTAN, os acordos comerciais mercenários, a exploração dos trabalhadores pela globalização, a austeridade e o neoliberalismo. Esta ira de direita, com a roupagem de fascismo cristão nos EUA, já fez enormes progressos na Hungria, Polônia, Suécia, Itália, Bulgária e França e pode assumir o poder na República Checa, onde a inflação e o aumento dos custos da energia fizeram dobrar o número de checos abaixo do limiar da pobreza.

Na próxima primavera, após um penoso inverno de apagões e após meses de luta das famílias para pagar por comida e aquecimento, o que resta nossa anêmica democracia ocidental poderá estar, em grande parte, extinto.

O extremismo é o custo político da acentuada desigualdade social e da estagnação política. Demagogos, que prometem a renovação moral e econômica, a vingança contra inimigos imaginários e um retorno à glória perdida, erguem-se do pântano. O ódio e a violência, já no ponto de ebulição, são legitimados. A classe dominante é injuriada e as supostas normas de civilidade e democráticas, que ela defende, são ridicularizadas.

Não é, como aponta o filósofo Gabriel Rockhill, como se o fascismo, em algum momento, tivesse ido embora. “Os EUA não derrotaram o fascismo na Segunda Guerra Mundial”, escreve ele, “eles o internacionalizaram discretamente”. Após a Segunda Guerra Mundial, os EUA, o Reino Unido e outros governos ocidentais colaboraram com centenas de antigos nazistas e criminosos de guerra japoneses, que foram integrados aos serviços de inteligência ocidentais, bem como regimes fascistas como os da Espanha e de Portugal.

Eles apoiaram as forças anticomunistas de direita na Grécia durante sua guerra civil em 1946 a 1949, e depois apoiaram um golpe militar de direita em 1967. A OTAN também tinha uma política secreta de operar grupos terroristas fascistas. A Operação Gladio, como a BBC detalhou em uma série investigativa agora esquecida, criou “exércitos secretos”, redes de soldados ilegais que permaneceriam atrás das linhas inimigas para a eventualidade de um movimento militar na Europa por parte da União Soviética. Na realidade, os “exércitos secretos” realizavam assassinatos, bombardeios, massacres e ataques terroristas de bandeira falsa contra ativistas de esquerdas, sindicalistas, entre outros, em toda a Europa.

Veja minha entrevista com Stephen Kinzer sobre as atividades pós-guerra da CIA, incluindo o recrutamento de criminosos de guerra nazistas e japoneses e a criação de locais clandestinos onde ex-nazistas eram contratados para interrogar, torturar e assassinar supostos esquerdistas, líderes trabalhistas e comunistas, detalhados em seu livro Poisoner in Chief: Sidney Gottlieb and the CIA Search for Mind Control (Evenenador Chefe: Sidney Gottlieb e a busca da CIA por controle mental).

O fascismo, que sempre esteve conosco, esta novamente em ascendência. A política de extrema direita Giorgia Meloni deve se tornar a primeira primeira-ministra da Itália após as eleições de domingo (25/9). Em uma coalizão com outros dois partidos de extrema-direita, Meloni conseguiu a maioria dos assentos no Parlamento.

Meloni começou na política como ativista, aos 15 anos, em uma ala juvenil do Movimento Social Italiano, fundado após a Segunda Guerra Mundial por apoiadores de Benito Mussolini. Ela chama os burocratas da União Europeia de agentes de “elites globais niilistas dirigidas pelas finanças internacionais”. Ela difunde a teoria da conspiração da “Grande Substituição” que prega que os imigrantes não-brancos estão sendo autorizados a entrar nas nações ocidentais como parte de uma trama para minar ou “substituir” o poder político e a cultura das pessoas brancas. Ela pediu à marinha italiana que obrigasse barcos com imigrantes a retornar a suas origens, como fez, em 2018, o ministro do Interior de extrema-direita, Matteo Salvini. Seu partido Fratelli d’ Italia (Irmãos da Itália) é um aliado próximo do presidente de Hungria, Viktor Orban. Uma resolução do parlamento europeu declarou recentemente que a Hungria já não pode mais ser definida como uma democracia.

Meloni e Orban não estão sozinhos. Os Democratas da Suécia, que tiveram mais de 20% dos votos nas eleições gerais da Suécia na semana passada, para se tornar o segundo maior partido político do país, foi formado em 1988 por um grupo neonazista chamado B.S.S., ou Manter a Suécia Sueca. Ele tem profundas raízes fascistas. Dos 30 fundadores do partido, 18 tinham afiliações nazistas, incluindo vários que serviram na SS Waffen, de acordo com Tony Gustaffson, historiador e ex-membro dos Democratas da Suécia.

Marine Le Pen, da França, conquistou 41% dos votos em abril contra Emmanuel Macron. Na Espanha, o partido de extrema direita Vox é o terceiro maior partido do Parlamento espanhol. O partido de extrema direita alemão AfD, ou Alternativa para a Alemanha, conquistou mais de 12% nas eleições federais em 2017, tornando-se o terceiro maior partido do país, embora tenha perdido alguns pontos percentuais nas eleições de 2021. Os EUA têm sua própria versão do fascismo incorporada em um partido republicano, que se aglutina de maneira cult em torno de Donald Trump, abraça o pensamento mágico, a misoginia, a homofobia e a supremacia branca da direita cristã e subverte ativamente o processo eleitoral.

O colapso econômico foi indispensável para a ascensão dos nazistas ao poder. Nas eleições de 1928 na Alemanha, o partido nazista recebeu menos de 3% dos votos. Então, veio a crise financeira global de 1929. No início de 1932, 40% da força de trabalho segurada alemã, seis milhões de pessoas, estavam desempregadas. Nesse mesmo ano, os nazistas se tornaram o maior partido político do parlamento alemão. O governo de Weimar, incapacitado para perceber a aflição e refém dos grandes industriais, priorizou o pagamento de empréstimos bancários e a austeridade em vez de alimentar e empregar uma população desesperada. Impôs tolamente severas restrições para aqueles que eram elegíveis para o seguro-desemprego. Milhões de alemães passaram fome. Desespero e ira espalharam-se pela população. Comícios reuniam grandes massas, liderados por uma coleção de bufões nazistas em uniformes marrons que se sentiriam em casa em Mar-a-Lago [residência de Trump], denunciaram judeus, comunistas, intelectuais, artistas e a classe dominante como inimigos internos. O ódio era sua principal moeda. Vendeu bem.

A evisceração de procedimentos e instituições democráticas, no entanto, precedeu a ascensão dos nazistas ao poder em 1933. O Reichstag, o Parlamento alemão, era tão disfuncional quanto o Congresso dos EUA. O líder socialista Friedrich Ebert, presidente de 1919 a 1925, e mais tarde Heinrich Brüning, chanceler de 1930 a 1932, baseou-se no artigo 48 da Constituição de Weimar para governar, em grande parte, por decreto para contornar o fragmentado Parlamento. O artigo 48, que concedia ao presidente o direito de emitir decretos em caso de emergência, era “um alçapão através do qual a Alemanha poderia cair na ditadura”, escreve o historiador Benjamin Carter Hett.

O Artigo 48 era o equivalente de Weimar às ordens executivas usadas liberalmente por Barack Obama, Donald Trump e Joe Biden, para contornar nossos próprios impasses legislativos. Como na Alemanha da década de 1930, nossos tribunais – especialmente a Suprema Corte – foram capturados por extremistas. A imprensa se bifurcou em tribos antagônicas onde mentiras e verdades são indistinguíveis, e lados opostos são demonizados. Há pouco diálogo ou acordo, os pilares gêmeos de um sistema democrático.

Os dois partidos no poder servem servilmente aos ditames da indústria bélica, das corporações globais e da oligarquia, à qual concedeu enormes cortes de impostos. Estabeleceu o sistema de vigilância governamental mais difundido e intrusivo da história da humanidade. Administra o maior sistema prisional do mundo. Militarizou a polícia.

Os democratas são tão culpados quanto os republicanos. O governo Obama interpretou que a Autorização para Uso da Força Militar de 2002 dava, ao poder executivo, o direito de apagar o devido processo e agir como juiz, júri e executor no assassinato de cidadãos dos EUA, começando com o clérigo radical Anwar al-Awlaki. Duas semanas depois, um ataque de drone dos EUA matou Abdulrahman al-Awlaki, filho de 16 anos de Anwar, que nunca esteve ligado ao terrorismo, junto com outros 9 adolescentes em um café no Iêmen.

Foi o governo Obama que sancionou a Seção 1021 da Lei de Autorização de Defesa Nacional, derrubando a Lei Posse Comitatus de 1878, que proibia o uso dos militares como força policial doméstica. Foi o governo Obama que resgatou Wall Street e abandonou as vítimas de Wall Street. Foi o governo Obama que repetidamente usou a Lei de Espionagem para criminalizar aqueles, como Chelsea Manning e Edward Snowden, que expuseram mentiras, crimes e fraudes do governo. E foi o governo Obama que expandiu massivamente o uso de drones militares.

Os nazistas responderam ao incêndio do Reichstag em fevereiro de 1933, que provavelmente eles mesmos organizaram, empregando o Artigo 48 para aprovar o Decreto para a Proteção do Povo e do Estado. Os fascistas instantaneamente extinguiram a pretensa democracia de Weimar. Eles legalizaram a prisão sem julgamento para qualquer pessoa considerada uma ameaça à segurança nacional. Eles aboliram os sindicatos independentes, a liberdade de expressão, a liberdade de associação e a liberdade de imprensa, juntamente com a privacidade das comunicações postais e telefônicas.

O passo da democracia disfuncional para o fascismo completo foi, e será novamente, pequeno. O ódio pela classe dominante, encarnado pelos partidos do establishment republicanos e democratas, que se fundiram em um partido dominante, é quase universal. Cada vez mais, o público, que luta contra a inflação que está no ponto mais alto em 40 anos e custou à família média dos EUA um adicional de US$ 717 por mês apenas em julho, verá como aliado qualquer figura política ou partido político disposto a atacar as elites dominantes tradicionais. Quanto mais grosseiro, irracional ou vulgar o ataque, maior o regozijo dos desprivilegiados. Esses sentimentos são verdadeiros aqui e na Europa, onde os custos de energia devem aumentar em até 80% neste inverno e uma taxa de inflação de 10% está corroendo a renda.

A reconfiguração da sociedade sob o neoliberalismo para beneficiar exclusivamente a classe bilionária, o corte e a privatização dos serviços públicos, incluindo escolas, hospitais e serviços públicos, juntamente com a desindustrialização, o despejo perdulário de fundos e recursos estatais na indústria de guerra, às custas da infraestrutura e dos serviços sociais do país, a construção do maior sistema prisional do mundo e a militarização da polícia têm resultados previsíveis.

No centro do problema está a perda de fé nas formas tradicionais de governo e nas soluções democráticas. O fascismo da década de 1930 teve sucesso, como observou Peter Drucker, não porque as pessoas acreditassem em suas teorias da conspiração e mentiras, mas porque viam além delas. O fascismo prosperou em face de “uma imprensa hostil, um rádio hostil, um cinema hostil, uma igreja hostil e um governo hostil que incansavelmente apontava as mentiras nazistas, a inconsistência nazista, a inatingibilidade de suas promessas e os perigos e insensatez de seu curso”. Ele acrescentou que “ninguém teria sido nazista se a crença racional nas promessas nazistas tivesse sido um pré-requisito”.

Como no passado, esses novos partidos fascistas atendem a anseios emocionais. Eles dão vazão a sentimentos de abandono, inutilidade, desespero e alienação. Prometem milagres inatingíveis. Eles também vendem teorias da conspiração bizarras, incluindo o QAnon. Mas acima de tudo, eles prometem vingança contra uma classe dominante que traiu a nação.

Hett define os nazistas como “um movimento nacionalista de protesto contra a globalização”. A ascensão do novo fascismo tem suas raízes em uma exploração semelhante por corporações globais e oligarcas. Mais do que qualquer outra coisa, as pessoas querem recuperar o controle sobre suas vidas, mesmo que apenas para punir os culpados e bodes expiatórios por sua miséria.

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