O algoritmo e Goebbels

Pauta da democratização das comunicações precisa incluir as redes sociais. Por meio delas induzem-se comportamentos econômicos e políticos — sem que os influenciados tenham consciência. Nesse sentido, a técnica assemelha-se à dos ministro da Propaganda de Hitler

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A importância de um tema ou mesmo a projeção social de um indivíduo, em qualquer atividade, já teve forte influência da relevância do tema e do mérito dos sujeitos. Não é mais assim. É preciso que uma funcionalidade chamada algoritmo potencialize o que “merece” ser visto e promova quem “merece” ser ouvido. Esse, o algoritmo, corresponde em essência a uma sequência de instruções lógicas para resolver problemas complexos, executar tarefas e cálculos. Embora não seja novidade no campo do conhecimento humano, pois já se encontra seu registro na antiga Babilônia, a modernidade e notadamente a internet é que o alçaram à condição da importância atual. Sua complexidade vai da execução de uma receita de bolo (que é um algoritmo) à construção de cenários prováveis com base nos dados de entrada (IN PUT) e resultados esperados (OUT PUT).

Nas redes sociais, uma de suas aplicações principais é a recomendação quase “personalizada” daquilo que nos é oferecido nos feeds. Recomendações que levam em conta nossas buscas no Google, comportamento político, perfis de consumo e outras variáveis capazes de definir quem somos. Pode-se afirmar, sem exageros, que as redes sociais sabem mais sobre nossas preferências do que nós mesmos. Ou seja, o uso do algoritmo por ferramentas como Facebook, Instagram, Twitter e YouTube permite dizer o que é ou não relevante para mim como sujeito. É como se os algoritmos dissessem: “não se preocupe, eu sei do que você precisa”.

Não sem estranhamento, essa é quase a definição do marketing no capitalismo: “a criação de necessidades”. A mercadoria sob esse modo de produção, no caso os trabalhadores também aqui incluídos como tal, é fetichizada e assume vida própria. Assim, Marx teria mais uma vez razão. Segundo a perspectiva marxiana, sabe-se que as nossas relações sociais são mediadas por mercadorias. Travamos relações sociais mediante sua troca e as nossas necessidades são criadas para atender a uma necessidade dos proprietários dos meios de produção: a acumulação.

Falando do ponto de vista do capital e de sua exploração, o algoritmo seria a realização de um dos maiores “sonhos” do capitalista. Qual? “Prever” e “induzir” o que eu como sujeito preciso consumir. Antever o que queremos antes de querermos. Quase uma tarefa mística. Porém, nossa preocupação deve ir além. Há outra dimensão do uso do algoritmo na atualidade. A produção da mercadoria, da fama e do fascismo parecem beber da mesma fonte.

Sobre a fama pensemos juntos no seguinte: hoje, a projeção de um profissional corresponde, necessariamente, à sua competência como tal? É possível termos certeza de que apenas música de qualidade, livros indispensáveis, acadêmicos famosos e profissionais talentosos estão em evidência? Ou seja, quem está sob os “holofotes” é de fato quem possui mérito?

Conheço de perto gente talentosa na arquitetura, na cultura e na academia que não tem quase nenhuma projeção e que não é conhecida ou badalada. Por não ser favorecida pelo algoritmo na teia de sociabilidade vigente, segue quase “invisível”.

Milton Santos, geógrafo brasileiro, em uma entrevista dada no início da década de 1990, respondeu sobre sua fama dizendo que isso não lhe importava muito. Segundo ele, muitos geógrafos, docentes e pesquisadores de extrema competência iriam morrer no anonimato. Claro, devido à modéstia do eterno professor Milton, mesmo sabendo que ele era possivelmente um dos maiores intelectuais da história brasileira, sua resposta revela um lado pouco conhecido da academia.

Logicamente, sabemos que o mérito pode, por vezes, corresponder à visibilidade. Isso seria a justiço, especialmente na área acadêmica. Porém, quero chamar a atenção para o fato que estaríamos diante de um processo novo no qual o mérito ou mesmo a justeza das nossas causas não seriam mais suficientes. É preciso compreender o poder do algoritmo.

No entanto, a única ameaça não é apenas a invisibilidade. Há uma bandeira (chamemos assim) que perigosamente parece ser privilegiada por alguns algoritmos e que cresceu no Brasil. Embora seja um processo social e político antigo, sem espaço para contestação quanto a tal afirmação, o fascismo cresceu potencializado pelas redes sociais.

A despeito dos questionamentos levantados por uma recente pesquisa da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), a noção de que a relevância de um tema ou de um indivíduo seja dada como OUT PUT, através do que as pessoas têm buscado na internet, merece atenção pela esquerda.

O estudo conduzido pelo NetLab da UFRJ teve entre algumas de suas conclusões que o algoritmo usado pelo YouTube estaria privilegiando um canal de notícias que tem manifestadamente um olhar favorecedor ao atual presidente da República. Esse algoritmo usaria a linguagem das redes sociais, “entregando” – como recomendação para visualização – notícias que dariam destaque positivo ao presidente. Falas do mesmo sobre dúvidas do processo eleitoral e outras teriam também destaque. Já seu principal adversário eleitoral, o ex-presidente Lula, seria recomendado em vídeos que induziriam a atribuição do mesmo a alcunha de corrupto.

A plataforma YouTube contesta a pesquisa e oferece argumentos que abrem, a meu ver, um debate importante. Até onde vai a “isenção” do que nos é oferecido e recomendado como relevante no uso de nossas redes sociais? Seja pela validade da pesquisa, ou do contra-argumento da plataforma, o que fica demonstrado é que talvez não esteja tão claro para o usuário o grau de influência das redes sociais no modo como a sociedade tem feito suas escolhas. Seja a escolha do voo e da hospedagem que nos são sugeridos no nosso feed após uma busca no Google, seja pelo candidato no qual votaremos no dia 2 de outubro.

Por que isso deve ser alvo de preocupação? Dentre vários motivos, porque hoje empresas de investimento costumam usar algoritmos para prever resultados em tempo hábil com o objetivo de realocar o capital investido. Nesse momento, certamente há a construção de cenários políticos sobre o Brasil sendo realizados não apenas por pesquisas do Datafolha, mas por aquilo que eu e você pesquisamos e comentamos na rede.

Construir cenários, obviamente, não é em si algo não recomendado. A pesquisa científica nesse sentido é hábil também para construção de cenários. As análises de conjuntura são esse exercício. A questão que se coloca é saber no nível das redes sociais o que realmente é construído.

Constroem-se cenários com base no IN PUT fornecido pelos usuários – suas preferências, suas buscas e escolhas na vida real – ou o IN PUT (aquilo que pesquisamos) é construído pelas plataformas? Em outros termos: entre o algoritmo e o usuário, quem domina quem?

Usemos para melhor compreender essa ameaça, um exemplo histórico, concreto e factual que seja capaz de ilustrar o perigo a que me refiro: Joseph Goebbels.

O político alemão e ministro da propaganda nazista, também doutor em filosofia pela Universidade de Heidelberg coordenou esforços de marketing considerados vanguardistas à época. Goebbels usou rádio e cinema como armas. Era um hábil formador de opinião e pode-se dizer que é o profeta de um dos períodos mais sombrios da história mundial.

Sua propaganda que veiculava temas centrais de grande relevância para o regime nazifascista alemão – como o antissemitismo, ataques ao bolchevismo e o desejo, esse menos conhecido, de implementação de uma nova ordem moral – tiveram tanto sucesso que ainda hoje é possível encontrar, tanto na Alemanha como no Brasil simpatizantes, defensores e propagandistas.

Mas sua atividade não se limitou à propaganda. Ele foi o incentivador da famosa política de guerra total na Alemanha, via recrutamento ampliado aos isentos de serviços militares, o fechamento de unidades de produção industrial com destinação para aparelhamento bélico e recrutamento forçado de mulheres como força de trabalho na produção de armamentos.

Goebbels promoveu e conduziu a Alemanha em direção a um projeto não de nação, mas de guerra constante contra inimigos dentro e fora do território. Conseguiu isso promovendo uma mudança cultural com o uso de rádio, cinema e voz, sem usar ele mesmo nenhuma arma.

Há dois aspectos nesse breve relato que sustento como sinalizadores do perigo fascista via propaganda:

1) O marketing político não corresponde a uma agenda propositiva somente. A agenda é também reativa

É fundamental que a esquerda e os setores progressistas – até mesmo os da direita – compreendam que a ascensão de formas autoritárias no Brasil não são projetos propositivos em essência. São reativos. Ou seja, toda agenda reacionária, como define o nome, é produto de questões não tratadas historicamente e que insistem como obstáculos à realização da transição democrática.

Agendas como a reforma urbana e a reforma agrária, por exemplo, são ilustrativas nesse sentido do arcabouço de conflito social que, se não realizadas, permitirão o abrigo de estruturas de poder racistas e oligárquicas que em dado momento podem se ver representadas em novas personas (no sentido de Marx).

O autoritarismo é processo social antes de ser político. A implicação disso, tragicamente, parece ainda não totalmente compreendida por progressistas. No que implica, então? Implica em que, ainda que figuras históricas como Adolf Hitler e assemelhados sejam neutralizadas, já que as forças sociais que permitiram a sua ascensão a posições de mando seguirão vivas. O que é preocupante é que essas forças sociais vivas parecem, por vezes, compreender melhor que seus adversários o poder do algoritmo e da propaganda.

O fenômeno das fake news, determinante para o resultado das eleições presidenciais de 2018 no Brasil, embora hoje combatido por medidas de controle institucionais, não deve ser visto como processo superado. Resta ainda combater outras fake news como, por exemplo, a criminalização dos movimentos sociais de luta pela reforma urbana e agrária e outras que seguirão tendo espaço mesmo com a derrota nas urnas do fascismo em vigência no Brasil.

A grande imprensa que hoje, na superfície, se ressente do modo como é tratada segue sem regulação e, diga-se claramente, foi responsável sim pela criação da ambiência institucional e coletiva que vivenciamos atualmente. Dirão seus representantes, por vezes cinicamente: “abrimos apenas a janela para o que já estava posto”. Ora, como se aquilo que estava “posto” não tivesse sido plantado também por quem construiu a “janela”.

2) Mudança cultural tem por fim a constituição de materialidades

As mudanças culturais, ou melhor dizendo, a guerra cultural empreendida pelo nazismo contra os comunistas nos anos de 1930, e contra a esquerda no Brasil a partir de 2013, não tem por finalidade algo abstrato. Seu fim é a materialidade. Novamente usando repertório marxiano, as condições materiais de existência são o fim último da pauta de costumes conservadores. Observe-se que o lema “Deus, pátria e família” caminham juntos com a propriedade.

A pauta de costumes é o substrato de um processo que é tudo menos etéreo. É concreto o fim do fascismo. Busca esse a materialidade de uma cidade sem direitos, de uma população subordinada às forças do capital em sua fração superexploradora e a negação da universalização de oportunidades. Entretanto, busca também a materialidade por meio de uma mudança cultural. Mudança cultural essa que hoje é potencializada pelo uso do algoritmo nas redes sociais.

Nesse sentido, parece que a regulação e o maior controle democrático dos veículos de imprensa não serão as únicas tarefas que teremos pela frente. Provavelmente, será preciso que lutemos por abrir uma outra Caixa de Pandora (caixa onde os deuses guardaram todas as desgraças do mundo), a caixa das plataformas de conteúdo digital.

É de Goebbels a fala final que nos serve de alerta ao que busquei argumentar. Disse ele: “a essência da propaganda é ganhar as pessoas para uma ideia de forma tão sincera, com tal vitalidade, que, no final, elas sucumbam a essa ideia completamente, de modo a nunca mais escaparem dela. A propaganda quer impregnar as pessoas com suas ideias. É claro que a propaganda tem um propósito. Contudo, este deve ser tão inteligente e virtuosamente escondido que aqueles que venham a ser influenciados por tal propósito nem o percebam”.

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