De quem é a dissonância cognitiva?

Diálogo com teoria que busca explicar o voto bolsonarista como curto-circuito entre eleitor e realidade social, produto da midiosfera extremista. Mas este delírio coletivo não seria dos que, desde 2014, criminalizaram democracia, educação e direitos?

Imagem: Daniel Caballero/Valor
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Duas certezas temos nos últimos meses. A primeira é que precisamos urgentemente preservar nossa democracia de um segundo governo Jair Bolsonaro. E a segunda é que talvez nenhum fenômeno político da história brasileira recebeu quantidade tão imensa de tentativas para se compreender o que ele é. É Bolsonaro o líder de um governo fascista? O bolsonarismo expressa tendências autoritárias da sociedade brasileira? Populismo neoliberal é a melhor definição para o que vem ocorrendo desde 2018? Jair Bolsonaro e seus filhos, na verdade, conseguiram apreender os sentimentos da direita popular entre nós?

A última investida com esse objetivo foi escrita pelo crítico literário João Cezar de Castro Rocha da UERJ. Para ele o bolsonarismo e seus eleitores representam uma “dissonância cognitiva coletiva” de setores polarizados que conseguiu ser difundida por uma “midioesfera terrorista”. No que segue apresento ponderações críticas à análise de João Cezar – entendendo a relevância sempre erudita que suas abordagens nos propiciam em momento tão delicado da vida nacional.

Mobilizando o psicólogo social norte-americano Leon Festinger, João Cezar argumenta que o “bolsonarismo como fenômeno e massa […] é uma dissonância cognitiva” daqueles e daquelas que apresentam “um desconforto subjetivo causado pela consciência da distância entre crenças e comportamentos”. No caso dos bolsonaristas e seus eleitores (que o filósofo Rodrigo Nunes em Do transe à vertigem: ensaios sobre o bolsonarismo em um mundo em transição distingue com precisão analítica), diz João Cezar, a dissonância cognitiva ocorreu depois que o 7 de setembro de 2021 viu frustrada sua intenção de golpe pelo presidente, o que acarretou a intensificação das “convicções” e das “apostas”. João Cezar no mesmo parágrafo em que comenta o 7 de setembro cita Michel Temer: o personagem principal do drama do impeachment de Dilma Rousseff em 2016.

Na ocasião poucos foram, para não dizer que unicamente os setores da esquerda, que se opuseram a processo que fatalmente desestabilizaria as instituições da democracia. Dali em diante, vivemos uma realidade em que expressões de dissonância cognitiva, como diz João Cezar, passaram a estar presenta na vida pública do país. Mas Temer, sempre incólume, naquele momento era o estadista (e democrata) que redigiu, como bom tribuno do povo, “a ponte para o futuro”. Mas em um eco do pensamento conservador dos anos 1920, como sempre, o problema é da “massa” e “do povo” e suas afetações pouco racionalizadas – os que desde sempre são os empecilhos para a construção de uma sociedade brasileira de excelência e boa vida. É verdade que João Cezar não está sozinho aqui, é um topos na esmagadora maioria das abordagens sobre o fenômeno do bolsonarismo – a pretensa objetividade ao se tratar a dita “pauta dos costumes”, o viés mosquiano-paretiano ao comentar o Auxílio Brasil e a recorrência no uso do emplasto Brás Cubas que se tornou a noção de populismo são expressões de uma tendência arraigada entre nós.

João Cezar comenta sobre a recusa em aceitar a insegurança alimentar de milhões de pessoas. Contudo, não podemos esquecer que quando Lula, Dilma, Haddad e amplos setores da esquerda defendiam o combate à pobreza eram sistematicamente criticados como se estivessem a fundar em país tão pacífico, diverso e das conciliações virtuosas, uma divisão entre pobres e ricos. Hoje é impudente escrever textos enunciando que “assistimos consternados ao retorno do Brasil ao mapa da fome” e que não aceitar fato tão objetivo são deslocamentos insanos de cognição. Mas afinal de quem era ou é a dissonância cognitiva?

Em outro trecho de seu texto João Cezar afirma que uma das dissonâncias cognitivas coletivas é que a “massa” e o “povo” vivendo em uma “metódica realidade paralela” negam os acordos fraudulentos do ministro da educação que transformou sua pasta “em um armazém de secos e molhados cujas […] gôndolas traficam […] barras de ouro, bíblias superfaturadas […] um apocalipse da educação pública”; ocorre que a cultura de desprezo e com viés declaradamente conspiratória contra as instituições de ensino superior e básico do país há tempos passam por observações de quem de fato, como diz o próprio João Cezar, não para “para pensar”.

Desde de 2014 lemos, ouvimos e assistimos um setor da opinião pública (e publicada), afirmar – com a convicção que se Leon Festinger estivesse escrevendo sobre o Brasil teria de reavaliar sua formulação para loucura cognitiva – que a educação superior estava tomada por marxistas, que a esquerda não permitia a circulação de outros modos de ler a realidade, que nas escolas públicas básicas Paulo Freire é o autor que organiza as metodologias e a didática. Ora, que legitimidade temos para pleitear um Ministério da Educação sério e competente com tais asserções, em uma nação, infelizmente, distante da democratização dos debates sobre educação, ciência e tecnologia? Disseminar dissonâncias cognitivas em contextos de interregno político é como plantar vento e esperar uma leve brisa matutina; o que estamos colhendo é um vendaval, um katechon, chamado-se Jair Messias Bolsonaro que tem como objetivo devastar qualquer vestígio de democracia que ainda resta entre nós e com consequências para quem bem sabemos.

Assim, impulsionados, tanto a construção de que o combate à pobreza e a educação eram projetos de um grupo que dividia o país, cerceava a liberdade de pensamento, conspirava dia-e-noite para implantar uma sociedade totalitária, pela “midioesfera extremista” inevitavelmente chegaríamos ao nível de um “desconforto” delirante que “tornou-se parte do mundo contemporâneo” chamado por João Cezar de dissonância cognitiva coletiva ou a massa que não quer se render ao mundo factual. Entretanto, a decifração do enigma da “esfinge que desafia a pólis” deveria se esforçar para desvendar também o “conselho noturno” (As Leis, Platão).

Estamos em um momento de desespero e angústia. As ruas das grandes metrópoles estão repletas de famílias que perderam suas casas, a maioria de negros e negras (sim há racismo no Brasil…). As universidades públicas não tem recursos para seu dia a dia de funcionamento mínimo, o que dirá do complexo em se tratando de pesquisas e permanência do corpo discente. As escolas básicas estão abandonadas de qualquer ação para minorar a devastação pedagógica causado pela pandemia. Bolsonaro “incentiva” seu grupo a agressões físicas a pessoas de esquerda e progressistas.

Em seu ensaio A Desfaçatez de Classe, Roberto Schwarz comenta que “a relação de abuso – a definir – que organiza o território explorado neste livro [Memória Póstumas de Brás Cubas, Machado de Assis] tem nela, no lance do agravamento súbito, quando o desmando subjetivo do narrador se exerce em sua plenitude, um momento de verdade [grifo meu].” O texto de Schwarz foi publicado em 1985; há setores da sociedade brasileira que de tanto abusarem estão tendo seu momento de verdade – que irrompeu com fúria desde 2014 e mostra sua face mais perigosa em 2022. Assim como João Cezar espero que Bolsonaro não seja eleito no 2º turno das eleições; sugira a ele, no entanto, que para não encontrar novamente o momento de verdade passe a perguntar – de quem foi ou é a (escandalosa) dissonância cognitiva?

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3 comentários para "De quem é a dissonância cognitiva?"

  1. ANDRÉA CRISTINA MARTINS disse:

    Respondendo o primeiro comentário, Sr. Scrlk. Belo nome, Sr.
    Sr, o medo do “Comunismo” parte de ranços. “O péssimo ensino de expansão universitária” faz outro orgânico enxergar a Falácia de um Velho Estado que sustenta párias ociosos. A possibilidade de estabilidade financeira traz Igualdades , é essa que incomoda. Põe outra solução no lugar ? Vc é um dos que não querem.

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