Tarcísio: o risco de milicianizar a segurança

Extinguir pasta de Segurança Pública. Poder absoluto aos chefes das políticas, sem qualquer controle social. Eliminar câmeras corporais em PMs, que reduziram 84% dos homicídios. Plano do candidato pode impor à SP a lógica das milícias…

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Há anos, segurança pública é um dos temas de maior interesse dos eleitores na hora de decidir o voto no Brasil. Algo tão central como a economia, a saúde ou a educação. Não é surpresa que, nesta reta final da campanha ao governo de São Paulo, o tema tenha entrado no foco dos debates. Tampouco é surpresa que ele tenha entrado de forma negativa. As propostas do candidato Tarcísio parecem, com razão, ter assustado boa parte do eleitorado paulista.

Não é que a segurança pública paulista esteja às mil maravilhas, mas é realmente assustador que Tarcísio, na última semana de campanha, tenha sugerido trazer o modelo carioca, símbolo da falência da área de segurança no país, para São Paulo.

A proposta em questão seria a extinção da Secretaria de Segurança Pública, dando ao chefe de cada uma das duas polícias estaduais (Civil e Militar) o status de Secretário. Seria um retrocesso imenso nos esforços de integração do trabalho policial e uma escolha que vai na contramão das melhores práticas policiais no restante do mundo.

No Brasil, aliás, este é um tema no qual já estamos bastante atrasados. Por aqui, escolhemos continuar com o histórico “ciclo fracionado” de policiamento, em oposição ao “ciclo completo” que é aplicado na maior parte do mundo.

No geral, a polícia tem duas principais atividades: a investigação centrada no inquérito e o policiamento ostensivo de ruas. Na maior parte do mundo, estas tarefas são integradas em unidade de comando e de política pública. No Brasil, demos a primeira atividade à Polícia Civil e a segunda à Polícia Militar. Esta divisão consolidada durante a ditadura trouxe uma série de consequências ruins: a falta de integração no trabalho policial, a baixa resolução de crimes, o sucateamento das Polícias Civis e a militarização da maior parte do policiamento.

Com tantos problemas, não é à toa que foi a partir desta política da ditadura que os índices de violência no país passaram a explodir. Agora, Tarcísio quer aprofundar este sistema aqui em São Paulo, pior, copiando um modelo claramente falido do Rio de Janeiro.

Ano após ano, São Paulo foi passando por um processo em que a PM cresceu e engoliu funções tipicamente civis, como a inteligência e a investigação, enquanto a PC diminuía. Isso foi criando um cenário em que o trabalho de resolução de crimes, de um lado, foi sucateado na instituição que deveria fazê-lo e, de outro, começou a ser feito por uma instituição que não tem os instrumentos corretos para botá-la em prática. Como consequência, os índices de resolução de crimes em São Paulo são baixíssimos, enquanto, em 2020, o estado caminhava para o recorde de “execuções extrajudiciais” praticadas por PMs.

Embora algumas associações da Polícia Civil abraçadas ao bolsonarismo apoiem a ideia, a proposta de Tarcísio pode acelerar ainda mais esse processo de sucateamento da corporação paulista e de transferência de poder civil à PM. E vale dizer que o próprio Sindicato dos Delegados afirma que a PC-SP já possui, hoje, um déficit de 38,2% de policiais.

Pra piorar, a proposta aponta para um espaço ainda menor de participação da sociedade civil nas políticas de segurança pública. Tarcísio quer criar um sistema sem intermediários, onde os chefes de polícia não tenham absolutamente nenhuma estrutura civil acima deles, além do próprio governador. Nas palavras dele, “ter a ligação direta entre o comando e o governador daria a relevância necessária às tomadas de decisão de segurança pública”, não sendo ideal “ter o comando das polícias no 4º escalão do governo”.

Ouvir essas palavras de Tarcísio me lembra de outros tempos nada bons para a democracia brasileira. Em 1937, na ditadura do Estado Novo, o então Chefe de Polícia do DF, Filinto Muller, ao ser questionado pela imprensa sobre a existência de presos políticos, respondeu que só prestava contas diretamente ao Presidente da República Getúlio Vargas. Esses são os efeitos nefastos de uma polícia que não se subordina a estruturas civis.

Mas o desastre de Tarcísio para a segurança pública paulista não para aí. Como disse acima, em 2020, São Paulo caminhava para bater o recorde de violência policial no estado. Estes números, aliados à divulgação massiva das imagens da chacina de Paraisópolis em dezembro de 2019, criaram uma pressão sobre o governo paulista, que se viu obrigado a implementar medidas de redução da letalidade policial.

Uma das medidas de mais impacto foi a implantação do Programa Olho Vivo, ampliando o uso de câmeras corporais em policiais militares. Em 2021, batalhões da PM que foram incluídos nesse programa chegaram a apresentar uma queda de até 80% de mortes decorrentes de intervenções policiais. Ao mesmo tempo, o número de confrontos caiu, protegendo a vida de policiais, ao passo que o número de flagrantes nesses batalhões mostra que o trabalho policial não foi afetado, ao contrário do que dizem os bolsonaristas.

Em suma, o uso de câmeras corporais em policiais tem sido uma medida efetiva para salvar vidas e, por isso mesmo, Haddad propõe a ampliação desse programa. Já Tarcísio quer acabar com essa política, seguindo o discurso de Bolsonaro de que policiais devem ter carta branca para matar.

Por fim, outro acontecimento dos últimos dias deve deixar qualquer paulista com a pulga atrás da orelha em relação à Tarcísio e à nossa segurança. O tiroteio ocorrido em Paraisópolis enquanto o candidato visitava a comunidade parece esconder algo de muito podre que Tarcísio traz em sua bagagem para São Paulo.

Quando a suposta “troca de tiros” ocorreu, a turma bolsonarista se apressou para criar a narrativa de que Tarcísio teria sofrido um atentado do crime organizado. A própria polícia paulista teve de correr para desmentir a informação, o que fez com que até mesmo Tarcísio recuasse do que estava afirmando.

Dias depois, uma verdade bastante terrível parece começar a surgir. Em áudio que se espalhou pela mídia, um assessor de Tarcísio dava a ordem para que o jornalista que flagrou o ocorrido apagasse o vídeo. Segundo o The Intercept, trata-se de Fabrício Cardoso de Paiva, ex-militar e agente da ABIN, e as imagens apagadas supostamente não mostravam qualquer troca de tiros, mas sim davam indícios de uma possível execução praticada por PMs.

Se Tarcísio estaria envolvido diretamente neste caso ou não, ainda não se pode afirmar. Aliás, há pouquíssimas informações sobre o que de fato ocorreu em Paraisópolis, e o próprio bolsonarismo agiu para colocar panos quentes na história.

De qualquer maneira, este estranho caso e o comprovado envolvimento do agente da ABIN ligado a Tarcísio ativam o sinal de alerta entre os paulistas. Essa cooptação de agentes públicos para o atendimento à interesses privados aponta para uma possível milicianização da segurança pública em São Paulo, aos moldes do monstro que se criou no Rio de Janeiro.

Para piorar, a campanha de Tarcísio recebeu doações generosas de pessoas ligadas a empresas de segurança privada. Sozinhos, dois desses empresários somaram R$ 500 mil em doações. Um deles tem como sócio na empresa AutoDefesa Brasil o tenente Santini, cotado para assumir a segurança pública no governo de Tarcísio caso a Secretaria seja mantida. Não que seja algo novo em São Paulo, mas esta mistura entre o público e o privado também é um traço forte que aponta para a milicianização da segurança.

Some-se a tudo isso o fato de que, como governador de São Paulo, Tarcísio oficializaria o discurso golpista e violento de Bolsonaro no comando da maior, mais equipada e mais treinada Polícia Militar do país. Em um cenário nacional com Lula eleito, seria o equivalente a riscar um fósforo ao lado de um barril de pólvora.

Tarcísio seria um desastre para a segurança pública paulista, mas tenham a certeza de que este desastre não pararia aí. Se achamos que a situação não está boa, é bom ter em mente que, no Brasil dos últimos anos, as coisas sempre podem piorar.

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