Por que a ultradireita quer Educação Domiciliar?

Proposta é síntese da antipolítica: transfere deveres do Estado às famílias e implode espaços de cidadania. Crianças podem ficar ilhadas da vida coletiva, e mais expostas a violações e ensino alienador. Por isso bolsonarismo a encampou

Arte: Alcione Ferreira/Cendhec
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A parcela verde-amarela do eleitorado brasileiro gosta de bradar pela sua “liberdade”, como princípio sempre aplicável, válido em qualquer situação. Ingenuamente, alguns podem enxergar aí algo na direção de um “exercício da cidadania”, mas uma análise muito breve aponta que se trata do oposto – penso que podemos compreender como parte de um encolhimento do espaço de cidadania, que se apresenta através de diferentes aspectos.

Tal encolhimento vem se delineando e se instituindo no país por meio das práticas políticas liberais-fascistas e como proposta mesmo de parte da população do país, em um jogo que apenas começa a ser jogado e que, se eleito Bolsonaro, aprofundará assustadoramente.

Vimos isso (“liberdade” x cidadania) aparecer claramente na questão da vacinação quando da luta contra a pandemia de covid. Bolsonaro vai tornar-se um porta-voz dessa suposta liberdade, praticando ele mesmo um extremismo da ideologia liberal, desenhando à população o argumento de que “Se eu me vacino ou não é problema exclusivamente meu!”

Sabemos que isso não é verdade. A pessoa que não se vacina está colocando em risco uma coletividade, colocando em risco a vida em sociedade, desrespeitando um princípio de corresponsabilidade dentro do que se poderia chamar de espaço público – considerando que esse espaço não é físico, mas se constitui pela relação entre os diferentes sujeitos em uma mesma sociedade, espaço de trocas, no qual o cidadão convive com os outros, os seus concidadãos. É claro que maior seria a responsabilidade nesse aspecto de um chefe de Estado.

O encolhimento do espaço público assim percebido, como espaço de relacionamento entre diferentes sujeitos, é a marca desse movimento político verde amarelo, que reconhece e projeta Bolsonaro como seu porta voz. Muito se disse já dessa extrema direita eleita, como representando um país branco, patriarcal, mas também burguês, claro, uma burguesia sempre muito seduzida e iludida pelo american way of life, ou pelo individualismo em seus diversos aspectos.

Se procurarmos compreender as pautas do atual governo nessa perspectiva, podemos perceber que o encolhimento do espaço de cidadania é o eixo que sustenta o projeto da extrema direita. Daí o sentimento mesmo de destruição, além do ódio generalizado ao que é civil (não só o ataque às universidades, mas também à educação e cultura de modo geral), permeando as ações e declarações do/ no contexto do governo atual.

Segundo o resultado das urnas em 2 de outubro de 2022, temos então que encarar que uma parcela muito grande da população brasileira não está preocupada com a cidadania – isso é sem dúvida extremamente desesperador para aqueles que desejam uma sociedade mais igualitária, aqueles que, mais do que possuir e consumir (verbos que apontam um “somente para si mesmo”), desejam algo da e na sociedade.

O brado pela liberdade nesse caso representa a possibilidade de não-coexistência com o outro: um Brasil de cercas e câmeras, no campo ou nas cidades, que vai das elites desvairadas, rodando em seus automóveis blindados, fechadas à miséria generalizada da população, à vida nos condomínios milicianos/miliciados e à crença das/nas igrejas e cultos amorais. Para a manutenção desses agrupamentos endógenos, os armamentos vêm ser injetados com força: a sociedade é assim armada e a polícia está aí para bater ou matar. Ou ainda: armas e policiais estão aí para intimidar e ameaçar o “outro”, cerceando e invisibilizando a existência dos “inaceitáveis” (pretos, índios, famintos). Na verdade, nada de novo em ver que a polícia zela pela propriedade, à custa da cidadania entre os diferentes sujeitos, separando os que devem poder matar dos que devem poder morrer. A novidade é ver nisso o apoio de mais de 51 milhões de brasileiros.

Nota-se que a questão da diminuição do espaço da cidadania, do espaço de corresponsabilidade entre e dos cidadãos, está estruturalmente associada ao movimento pelo direito de educação domiciliar. O que está em jogo nessa demanda de legalização é como se compreende educação no país. Não se diz nada (não há legislação) sobre educação domiciliar porque a educação está localizada no direito público.

“Na opção do ensino domiciliar há uma ideologia ultraliberal e ao mesmo tempo conservadora, que concebe o desenvolvimento do sujeito numa perspectiva individualista”. Do ponto de vista pedagógico, aponta-se para a importância das crianças usufruírem de um espaço de vida ampliado em relação ao seio familiar. A escola é um outro espaço e permite o amadurecimento do sujeito em formação. Fala-se ainda de como a escola tem cumprido um papel importante de perceber no comportamento da criança problemas de violência e abuso ocorrendo em casa.1

Há uma associação no Brasil desde 2010 que reúne pais “insatisfeitos com a educação que seus filhos estavam recebendo nas salas de aula” (conf. www.aned.org). A ANED – Associação Nacional de Educação Domiciliar não só organiza essa demanda, mas também a promove, divulga, e se propõe a conseguir a regulamentação da chamada ED no país.

No site da associação, podemos ver imagens de casais jovens com seus filhos em situações domésticas que produzem um sentido de “paz, amor e harmonia no seio da família”. Imagens que nos lembram a insistência com que a palavra de ordem “pela família brasileira” é utilizada como marca desse extremismo de direita, expressão cuja dimensão de ataque – veja – vai muito além da não aceitação das diferenças de gênero e escolhas sexuais diversas do matrimônio tradicional intersexo.

Quando Bolsonaro assumiu, a educação domiciliar era a única prioridade da pauta educacional de seu governo. De fato, pela educação pública nada foi feito durante os quatro anos de seu governo, a não ser a promoção mais intensa e devastadora de seu sucateamento, como parte das instituições públicas que estão e continuarão a ser atacadas.

Segundo informa o site da associação, a Educação Domiciliar no Brasil “é um fenômeno consolidado e imparável, tendo crescido mais de 2000% nos últimos 8 anos. Saltando de cerca de 360 famílias em 2011, para 7500 famílias educadoras, em 2018, com cerca de 15000 estudantes, entre quatro e dezessete anos”.

Nunca houve e ainda não há no país nenhuma lei que proíba a prática do homeschooling, informa a ANED em seu site – o que nos remete a formulações sobre uma obrigatoriedade de matrícula das crianças na escola. Na realidade, a obrigatoriedade de matrícula da criança passa em 2013 a se dar a partir dos 4 anos de idade: “Para atender essa obrigatoriedade — a matrícula cabe aos pais e responsáveis —, as redes municipais e estaduais de ensino têm até 2016 para se adequar e acolher alunos de 4 a 17 anos. O fornecimento de transporte, alimentação e material didático também será estendido a todas as etapas da educação básica.” (Cf portal do MEC In: http://portal.mec.gov.br/ultimas-noticias/211-218175739/18563-criancas-terao-de-ir-a-escola-a-partir-do-4-anos-de-idade)

Podemos perceber como a obrigatoriedade recai como demanda para o Estado. Não se trata de um DEVER dos pais, a não ser na medida em que estes devem garantir o DIREITO da criança e adolescente; o dever é do Estado em oferecer isso a sua população. Com a ampliação para a idade de 4 anos, prefeituras e governos estaduais devem se organizar para oferecer vaga, bem como transporte e alimentação, para essa faixa muito maior de crianças, atendendo ao requerido por pais e mães como suporte para que possam trabalhar. A lei obriga que o Estado ofereça essas vagas, essa educação, com tudo que ela implica.

Com relação à educação como direito público, um serviço que deve ser oferecido pelo Estado, realmente essa obrigatoriedade tem sido sistematicamente mal cumprida no caso do Estado brasileiro. E pode parecer à primeira vista que uma parcela da população desejar que seus filhos estudem em casa e buscar a legalidade dessa formação, além de compreensível, em nada colocaria em risco o campo da Educação como direito público. Mas sim, coloca em risco, de diversos modos.

A demanda da regulamentação da Educação Domiciliar, na voz de seu atual presidente, é uma demanda por se desligar da educação oferecida pelo Estado, não aceitando mais que o Estado seja parceiro, como o é atualmente, mas pleiteando que a educação dos filhos fique a cargo exclusivamente da família.2

Pode-se argumentar que já ocorre uma distinção entre a formação de uma criança/adolescente da elite e a formação de uma criança/ adolescente das classes menos favorecidas, como de fato ocorre. Mesmo assim, a educação como algo que pertence ao direito público tem parâmetros curriculares, tem conteúdos disciplinares que instituem uma base comum entre os diferentes sujeitos em uma mesma sociedade. Ou seja, a tal da cidadania, que faz com que seja possível a existência de uma sociedade. Afinal, uma sociedade tem necessariamente de ser mais do que a soma de indivíduos preocupados única e exclusivamente consigo mesmos.

Além disso, esses parâmetros curriculares baseiam-se no conhecimento produzido, na ciência. Em determinado momento da história da humanidade – ou seja, depois da Idade Média, a chamada Idade das Trevas, quando o sujeito era submetido pelo dogma religioso – pensou-se na importância da ciência para a sociedade. E a escola é a instituição que forma esse cidadão da sociedade científica.

A Educação Domiciliar é bastante desenvolvida nos EUA, país em que quase metade da população rejeita a teoria da evolução darwiniana. Ou seja, a abertura para um desligamento do Estado no campo da educação pode propiciar toda a espécie de desautorização não só do próprio Estado, mas também da reflexão científica, dando amplo espaço para o negacionismo: o criacionismo, o terraplanismo, a postura antivacina etc.

Há ainda em jogo, é bom lembrar, o grande interesse empresarial, considerando todo um campo novo para “empresas de educação” oferecerem produtos aos pais que desejam que a educação de seus filhos se dê em casa. De modo que isso explica a associação o encampamento desse projeto pelo partido Novo, esse cujas pautas se estruturam de modo a produzir o aprofundamento da perda dos direitos trabalhistas, ou a “uberização” de todo e qualquer trabalhador, de modo a permitir que as empresas possam se desresponsabilizar de seus “encargos” – a educação domiciliar abre para novas possibilidades de assujeitamento do trabalhador/ trabalho, em uma perspectiva de novos desempregos e precarização maior ainda do que já ocorre com os professores atualmente.

E é isso que está em curso. Com Bolsonaro eleito em 2018, a ANED avançou, conseguindo em um primeiro momento “proteger as famílias processadas”, e buscando em seguida a regulamentação da ED. “Atualmente, a ANED negocia com os poderes Executivo e Legislativo, a regulamentação da Educação Domiciliar no Brasil, trabalhando para que a modalidade seja estabelecida como uma opção segura, e viável em todo o Brasil”.

Não há inocência nessa proposta, ela é extremamente nociva para a Educação Pública, mesmo que pareça tão legítima justamente a demanda pela educação dos filhos em casa, pela precariedade com a que Educação Pública tem se sustentado no país, pelas dificuldades que enfrenta cotidianamente, sendo atacada e desautorizada por todos os lados.


1 Conf. OPINIÃO Ensino domiciliar: por que e para quem? Por Anelise Manganelli / Publicado em 11 de junho de 2021. In: (https://www.extraclasse.org.br/opiniao/2021/06/ensino-domiciliar-por-que-e-para-quem/).

2 Cf. Programa Conexão, Canal Futura. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=nCqM9ZnuhC0

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