O discreto mago

Nos anos 1990, quando o Brasil vivia o segundo choque do período neoliberal, Wladimir Pomar ajudou a construir uma estratégia política e jurídica de luta contra a ditadura financeira. As experiências de então contra os juros abusivos podem ser valiosas hoje

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Por Antonio Martins

Corria 1996 e não me lembro quem nos apresentou. Wladimir Pomar atuava como uma espécie de consultor político permanente de Joaquim Palhares, um advogado que enriquecera defendendo empresários da sanha dos bancos. O escritório de Palhares mantinha Carta Maior – então um boletim jurídico impresso e distribuído pelos correios, focado em Direito Bancário. A publicação precisava de um novo editor. Eu estava ansioso por encerrar minha passagem breve e traumática pela imprensa comercial, em “Veja”. O encontro durou meia hora, se tanto, e me abriu as portas para um convívio de mais de um ano com as maquinações do Wladimir. Sempre discretas, sempre eficazes e desbravadoras de novas possibilidades políticas.

Nos anos 1990, a economia brasileira sofria o segundo grande choque do período neoliberal. Os juros já eram os mais altos do mundo. Havia grandes empresas muito endividadas. Palhares, um gaúcho audaz, desenvolvera um conjunto de teses jurídicas que, apoiadas na Constituição e no Código de Defesa do Consumidor, permitiam reduzir as dívidas – ou ao menos estender os prazos. Mas foi graças ao Wladimir que esta ação ganhou novos contornos políticos.

Primeiro, com a Carta Maior, que ele supervisionava discretamente. A cada mês, publicávamos novos casos de vitórias sobre os bancos. E fazíamos entrevistas desbravadoras. Lembro-me de ir a Porto Alegre para ouvir o então também advogado (e ex-prefeito) Tarso Genro sobre a necessidade de ressignificar a globalização; ou de recolher, no gabinete do deputado Delfim Netto, em Brasília, suas observações sobre os “gravatões” que ganhavam sem nada produzir.

Foi também o Wladimir quem ajudou a organizar, por volta de 1998, um encontro marcante, nos fundos do escritório do Palhares, situando no comecinho da Avenida Ibirapuera, em São Paulo. O advogado destemido, que por sua atividade conhecera pesos pesados do empresariado, queria apresentá-los a Lula, que se preparava para disputar sua terceira eleição presidencial. O iniciativa foi do Palhares — que além disso assou, com maestria, o churrasco de pernil de cordeiro. Mas a arte de seu consultor político contribuiu para o sucesso do encontro. A oportunidade animou Lula. Tanto que se seguiram-se, por meses, reuniões dominicais em que as saídas para a crise eram debatidas pelo defensor dos endividados, por assessores indicados pelo candidato — entre eles, José Dirceu e Marco Aurélio Garcia — e pela nata do empresariado.

Por fim, Wladimir, participou da organização, em março de 1998, do I Simpósio Internacional de Direito Bancário. As teses jurídicas que desafiavam o rentismo precisavam ter repercussão. O hotel Maksoud Plaza – outro cliente do Palhares – foi o palco. Entre os convidados estavam 41 catedráticos, de 11 países — entre eles, François Chesnais, que pouco tempo antes publicara A Mundialização do Capital – e que entrevistei na companhia do Edmilson Costa (meu primeiro editor, nos idos de 1979), hoje secretário geral do PCB.

Lembro-me vivamente da última vez que vi o Wladimir, num dos bares do Maksoud. O seminário terminara com grande sucesso. Ele recomendou ao Palhares: “A batalha da artilharia, você ganhou. Agora, é preciso vencer a da infantaria”. Wladimir pensava que Palhares deveria articular, com as centenas de advogados que haviam acorrido ao evento, um movimento jurídico e político de defesa dos clientes dos bancos. A ideia foi adiante. Por meses, as teses jurídicas do escritório inspiraram ações que denunciavam (e em muitos casos revertiam) as ilegalidades praticadas pelo sistema financeiro. Valeria a pena estudar maneiras de retomar o mesmo movimento hoje, quando a crise de crédito agigantou-se.

Pouco depois, Wladimir deixou o escritório. Em 2019, Palhares me contou que ambos haviam retomado a amizade e se falavam com alguma frequência. Ao saber, na sexta-feira, da morte do discreto mago, pensei nas possibilidades que o Brasil desperdiçou, e nas que tem diante de si.

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