SP: O direito à vacina e as desigualdades urbanas

Mapa mostra: índice de imunização é baixo nas regiões mais populosas; mas altíssimo em bairros centrais e ricos, que concentram locais de trabalho e são próximos ao metrô. O que isso revela sobre a desigualdade, mobilidade urbana e Saúde pública?

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Mapa: Sandro Valeriano | Texto: Igor Venceslau, no Outras Cartografias

Sem coordenação nacional na aplicação de vacinas, estados e municípios tiveram que restringir unicamente à população local o acesso às doses de imunizantes contra a Covid-19, doença que já ceifou mais de meio milhão de brasileiros. Em São Paulo, a maior cidade do país, somente os residentes no município podem ser vacinados em alguma unidade básica de saúde, posto móvel, estação, entre outros, apresentando comprovante de residência. Nesse contexto de pandemia e crise política estendida, a própria noção de cidadania se torna esgarçada, limitada agora também pelas fronteiras internas do país, complicando ainda mais o frágil pacto federativo brasileiro.

Utilizando dados do Datasus, o mapa apresenta as doses de vacinas contra Covid-19 aplicadas em unidades básicas de saúde (UBS) do município de São Paulo, em número total, até 3 de setembro, apresentando por cores as áreas de abrangência das UBS, que por sua vez estão dentro de cada distrito (em linha preta). E o seu resultado surpreende. Ao contrário do que se poderia supor, os distritos mais populosos, especialmente nos intermediários e extremos das zonas leste e sul, apresentam as menores quantidades de doses aplicadas e encontram-se mesmo em situação bastante inferior a outras zonas da cidade. Numa UBS de São Mateus, Guaianazes ou Capão Redondo, foram aplicadas entre 16 e 27 mil doses até agora, enquanto em Moema, Bela Vista e Pinheiros esses números oscilam entre 78 e 125 mil aplicações. Como interpretar esses dados?

Uma observação inicial necessária está em assinalar que, a despeito das causas desse fenômeno, o Sistema Único de Saúde (SUS) garante o abastecimento de todas as UBS com vacinas, contribuindo para diminuir as históricas desigualdades de acesso a serviços básicos e essenciais à população, especialmente naqueles lugares onde esses são geralmente negados. A universalidade da saúde pública brasileira é um importante elemento constituidor da cidadania em sua expressão territorial, ou seja, ali onde a população vive. É somente porque esse é um direito constitucionalmente adquirido que esse mapa pode ser elaborado, isto é, considerando todos os distritos sem distinção, já que o direito à saúde pública básica se estende a todos eles.

Apesar dessas conquistas, as desigualdades estão aí escancaradas, especialmente na cidade mais rica do país – e aqui não há nenhum paradoxo, pois o modelo vigente de produção de riqueza é aquele que se assenta na reprodução da pobreza. Nesse ensaio cartográfico, pode-se claramente distinguir entre um centro expandido que se espraia para oeste e sul, incluindo também pontos da zona norte (Santana) e leste (Tatuapé) da cidade. Não são exatamente esses também os lugares centrais da metrópole corporativa? Não se apresse o leitor, aqui, supondo que os distritos mais ricos recebem mais vacinas, ou ainda que a população da periferia não tem se vacinado. Supor isso não condiz com a atributo universal do sistema de saúde.

Uma possibilidade mais aceita de interpretação é aquela que inclui outras dimensões da vida na cidade, além do próprio sistema de saúde. Estrutural do cotidiano paulistano são os deslocamentos diários entre local de residência e trabalho, medido em horas, que não somente consomem o escasso tempo como também frustra direitos: para boa parte da população ainda não sobra tempo para viajar de Cidade Tiradentes até o Itaim Bibi, cumprir a jornada de trabalho e retornar para casa a tempo de encontrar uma UBS aberta. Assim, a solução encontrada pelas pessoas foi aquela da vacinação no distrito onde trabalha, ou mesmo as estações de metrô por onde passavam. Como resultado, os lugares com maiores quantidades de doses aplicadas são exatamente aqueles que concentram os locais de trabalho: o arco da Av. Paulista, que também conta com a principal infraestrutura em saúde; Pinheiros, Itaim Bibi, Moema; Tatuapé, Anália Franco; Santana; entre outros.

Sabendo que um número significativo de trabalhadores é oriundo de mais de trinta outros municípios da Região Metropolitana de São Paulo, e esses são expostos a jornadas mais longas de transporte, seria importante refletir sobre a condição dessas pessoas que não puderam se vacinar nesses locais de trabalho, por não possuírem comprovação de residência no município. Condições críticas do modelo de urbanização historicamente privilegiado em São Paulo – a moradia, o trabalho, a mobilidade e o acesso a serviços públicos (ou a negação de todas elas) – convergem indissociavelmente na perpetuação de uma cidade muito desigual, ainda que políticas de direitos universais como o SUS venham amenizar suas consequências.

Assim, (re)pensar essa cidade em sua totalidade se torna mais urgente a cada nova conjuntura, como agora em pandemia. É por isso mesmo que esta coluna divulgou na publicação um mapa da desigualdade em São Paulo a tese da Dra. Katia Canova, que apontou a necessidade de considerar um anel esquemático de transformação estrutural entre as chamadas áreas mais centrais e ricas, de um lado, e as periféricas e mais empobrecidas, de outro, constituindo um território de transição. Já que não se vive/sobrevive a pauliceia apenas no lugar de residência, este mapa nos convida a pensá-la também em sua complexidade em constante movimento.

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