No futebol, uma síntese do racismo brasileiro

Nas palavras de atletas, as injustiças que persistem dentro e fora de campo. Em um país que ainda não encarou seu passado escravocrata, vozes negras se levantam contra o sistema, inclusive nos gramados. Seremos capazes de reinventá-lo?

Aranha, ex-goleiro, sofreu racismo no campo enquanto jogava para o Grêmio. “Teve coragem, denunciou, e o que aconteceu com a carreira do Aranha? Depois de se tornar ativista, despencou. Passou a ter menos oportunidades, foi escanteado, até encerrar a carreira quase no ostracismo.”
.

Por Inês Castilho

A carne mais barata do mercado é a carne negra”
(da canção de Elza Soares e José Miguel Wisnik)

O racismo no Brasil é estrutural. Naturalizado, negado. Urge por fim a essa negação e à mentira da meritocracia. Jogadores precisam se posicionar. Brancos, reconhecer seus privilégios e unir-se aos negros na luta antirracista. Só juntos poderemos derrubar as estruturas que ele fundamenta. Até que esses passos sejam dados, o racismo não será vencido – no futebol e fora dele.

Esses são os destaques do debate “Vidas Negras e Futebol”, o primeiro realizado sobre o assunto pela Federação Paulista de Futebol (FPF), em 5 de junho – quando os Estados Unidos ardiam em chamas pela asfixia de George Floyd por um policial branco e o Brasil irrompia em revolta pela morte de João Pedro, 14 anos, assassinado pela polícia militar no Rio de Janeiro; e Miguel, 5 anos, pela negligência da patroa da mãe da criança, uma mulher da elite branca pernambucana.

O bate-bola aconteceu entre os ex-jogadores Mauro Silva, vice-presidente, e Aline Pellegrino, diretora do futebol feminino da FPF; Roque Jr, ex-jogador e diretor executivo do Ferroviária; Suellen Rocha, lateral-esquerda do Corinthians; e os jornalistas esportivos Breiller Pires, do El País, e Luiz Teixeira, da BandNews FM, que coordenou o debate. Todos negros.

Luiz Teixeira deu a largada recordando episódios de resistência no nascedouro do esporte. Na Porto Alegre dos anos 1910, a “Liga dos Canelas Pretas” organizou um torneio dos times de “atletas de cor”, excluídos pela elite branca. Entre 1920 e 1930, São Paulo chegou a ter 12 clubes disputando o campeonato informal dos negros. Um século depois, a luta continua. Entre 2014 e 2019 ocorreram 56 casos de discriminação racial no futebol brasileiro, registrados pelo Observatório da Discriminação Racial no Futebol. Em 2020, os rivais Grêmio e Internacional uniram-se a outros times na campanha #PoderiaSerEu, contra o assassinato de um jovem negro brasileiro a cada 23 minutos.

“Dada sua importância na sociedade brasileira, o futebol tem a capacidade de expor, encenar e dramatizar nossos maiores conflitos e dilemas”, observa Flávio de Campos, professor de pós-graduação em História Sociocultural do Futebol da USP e coordenador do Núcleo Interdisciplinar de Estudos Sobre Futebol e Modalidades Lúdicas, com pesquisadores da USP, Unicamp, Unesp e Unifesp. “E talvez não haja maior dilema recente, desde as Jornadas de Junho de 2013, do que a própria democracia.”

Negação do racismo e supremacia branca

“A primeira coisa é reconhecer. Dar voz, jogar luz nisso. Não podemos falar que não temos racismo no Brasil, quando 55% da população não branca é comandada por 45% de brancos”, defende de saída o zagueiro Roque Jr, campeão pelo Palmeiras nas Copas do Brasil e do Mercosul de 1998 e na Libertadores de 1999, hoje dirigente do Ferroviária. “O que a gente vivencia aqui, na arquibancada e dentro de campo, só pode ser comparado ao que acontece na África do Sul e nos Estados Unidos.”

“Se já sofri racismo no futebol? Já sofri. Na sociedade então nem se fala”, apoia a lateral-esquerda Suellen Rocha, campeã pelo Corinthians no Brasileirão 2018 e Libertadores 2019. “É uma luta diária. Não adianta falar que a gente é igual, que é vitimismo nosso. Não é. Num olhar já sinto a discriminação. O racismo é velado, mas presente o tempo todo. A maioria dos atletas é negra, o racismo não pode ser visto como natural.”

“Não acho que o racismo aqui seja velado”, rebate o jornalista de direitos humanos Breiller Pires.

“Nos estádios a gente vê pessoas chamando outras de macaco, nas ruas vê o extermínio da população negra pela violência policial, nas estatísticas vê que poucos chegam aos cargos de alto escalão. O futebol tem estruturas racistas. Quem não quer enxergar o racismo no Brasil é conscientemente racista. A gente precisa apontar isso.”

Professor, jurista e filósofo, Silvio Almeida explica. “Os filtros da meritocracia são racializados. Perceba como a negação do racismo, principalmente neste momento histórico, é um reforço absoluto de posições racistas. Não é à toa que um governo como esse que temos no Brasil insiste em negá-lo, porque o racismo lhe dá base pra cometer os absurdos que estão sendo cometidos, e quiçá um dia serão devidamente apurados nos tribunais internacionais”, afirma. “Para além da superioridade branca desde sempre colocada no Brasil, estamos pela primeira vez assistindo a ‘laivos de supremacismo branco’. Estamos vendo pessoas que têm ligações com gente que defende a supremacia branca aqui nos Estados Unidos. Isso é muito violento. O presidente dos Estados Unidos é um homem que se cerca de pessoas que são ou que têm algum tipo de ligação com o supremacismo branco.”

Doutor e pós-doutor em Filosofia e Teoria Geral do Direito (USP), professor da FGV e da Universidade Mackenzie e professor visitante do Centro de Estudos Latino Americanos e Caribenhos da Universidade de Duke, na Carolina do Norte, Silvio Almeida é filho de boleiro. Seu pai, o ex-goleiro do Corinthians Lourival de Almeida Filho, carregou pela vida o estigma do goleiro negro iniciado com o goleiro da seleção Moacyr Barbosa, duramente penalizado por sofrer os gols da derrota do Brasil contra o Uruguai na final da Copa do Mundo, em 1950. “Meu pai era chamado de Barbosinha”, ele conta, falando dos Estados Unidos, ao participar do programa Roda Viva em 22 de junho.

A sociedade brasileira é muito mais violenta que a dos EUA, afirma Silvio Almeida. “O Brasil é um país que pouquíssimas vezes na História teve democracia. Poucos presidentes foram eleitos. É um país que não desenvolveu nem instituições, nem cultura democrática. Para manter 54% da população de maneira subalterna é necessária uma brutalidade por parte do Estado muito maior, tanto do ponto de vista prático da violência quanto de uma reprodução cultural que naturaliza a dominação dos brancos sobre os negros.”

O rapper Emicida concorda – e vai além. “Já andei o mundo e digo: o racismo do Brasil é o pior racismo do planeta. Torço muito para que tudo isso consiga conduzir a gente para um lugar melhor”, diz, referindo-se às manifestações de protesto nos Estados Unidos e no Brasil. “A gente perdeu a capacidade de fazer uma conta muito simples: se a gente quebrasse hoje todas as vidraças de todos os bancos, de todo planeta, ainda assim toda destruição não seria nada, se comparada ao que é uma família destruída por fechar a tampa de um caixão com uma criança dentro, baleada por um policial. Quem chama o discurso de vitimista está convidadíssimo a experimentar o vitimismo debaixo do joelho do policial.”

Lugar do negro e racismo estrutural

O mito da democracia racial, que romantiza a mestiçagem ocorrida no Brasil, foi desmentido pelo movimento negro há pelo menos cinquenta anos, afirmou a ativista dos direitos humanos Jurema Werneck – médica, doutora em Comunicação e Cultura pela UFRJ, desde 2017 diretora executiva da Anistia Internacional Brasil – no artigo “A era da inocência acabou, e já foi tarde”, de 2001. “Levou séculos para que o Estado brasileiro pudesse reconhecer a presença do racismo como fator estruturante das relações sociais no país. E isto só acontece agora, ao final do século XX e início do século XXI, como resultado de um trabalho longo, árduo, vivido em profundo isolamento por nós, negros.”

O antropólogo brasileiro-congolês Kabengele Munanga, desde os anos 1970 referência sobre o racismo na sociedade brasileira, recua ainda mais na História. “A luta pela mudança, pela transformação da sociedade, demora muito. Já tivemos no Brasil algumas conquistas sobre a questão da igualdade entre branco, negro, indígenas e outros diferentes e isso foi luta de gerações do movimento negro, que vem desde Zumbi dos Palmares até agora.”

De lá pra cá, contudo, o país avançou pouco e vem regredindo, com o silenciamento querendo impor-se, agora, oficialmente. Por exemplo, com a censura de biografias de lideranças afrodescendentes históricas no site da Fundação Palmares, instituição federal criada em 1988 com o objetivo, justamente, de zelar por essa memória.

“Acompanhei esses dias nosso vice-presidente dizer que a gente não podia importar dos Estados Unidos o caso de George Floyd. Não, a gente não precisa fazer isso. Aqui a gente vive pior do que nos EUA”, sustenta Roque. “Aqui parece normal não ter treinador negro, não ter dirigente negro, não ter CEO negro, não ter reitor de universidade negro. Estamos aqui hoje pelo futebol porque é a única saída para muitos. Futebol e música é onde conseguimos bater de igual pra igual. Esse é o nosso racismo estrutural”, afirma.

“A sociedade premia racistas. Uma figura pública que mede a carne negra em arrobas e faz piada com o sofrimento negro vira presidente. Jornalistas que também fazem piadas sobre negros são demitidos mas recontratados no dia seguinte com salário maior”, aponta Breiller.

Tetracampeão em 1994 e zagueiro do La Coruña, na Espanha, onde jogou durante 13 anos e virou nome de rua, hoje vice-presidente da FPF, Mauro Silva testemunha. “Há lugares onde só estamos presentes como serviçais. Às vezes você chega num hotel de luxo e os caras acham que você é segurança, motorista, porque negro não deveria estar naquele ambiente exclusivo de brancos. O europeu vem aqui e vê elevador de serviço, entrada de serviço, o quarto de empregada onde mal cabe uma televisão. Quem morou na Europa sabe que isso não existe por lá. E aqui faz parte da rotina.”

“A gente é sempre o operacional”, reafirma Aline Pellegrino. Capitã da seleção brasileira entre 2005 e 2013, medalha de prata nas Olimpíadas de 2004, campeã dos Pan-Americanos e vice-campeã do Mundial de 2007, na China, e hoje única mulher dirigente na FPF, ela sabe muito bem que é um ponto fora da curva. “São poucos os negros à frente de equipes, em posições estratégicas. A sociedade relativiza, ainda não entendeu onde foi que se inverteram os valores e fomos colocados de lado num país onde somos maioria. No futebol, além de relativizar, a gente reforça.”

“O que o racismo produz sobre o corpo negro? Produz a ideia de que quem produz racionalidade e merece confiança são os brancos. Então, goleiros, dirigentes e treinadores são cargos de confiança, por isso há poucos negros nessas posições”, observa Silvio Almeida.

Branco é a norma – negro, o desvio da norma. O racismo que estrutura as relações sociais no Brasil está no cerne das instituições e enraizado na cultura. Ele regula práticas, determina relações, forja subjetividades e produz as “condições de vida e morte” de brancos e negros. Por isso, “não se encerra em ‘não gostar de negros’, está nas condições estruturais que perpassam as dimensões subjetivas, políticas e econômicas”, explica Ricardo Alexandre Corrêa, especialista em Educação Superior.

“Revela também como a escravidão ressoa ainda hoje em múltiplos domínios, desde relações interpessoais até medidas governamentais mais amplas (como aquelas relacionadas à ação da polícia e de combate à pandemia)”, observa o professor da UFRGS Alexandre Magalhães.

Barreiras e apagamento da história

Negros são grupo de risco por suas difíceis condições de vida e por não manter o distanciamento social – moram geralmente em habitações precárias e precisam ir pra rua em busca de sustento. A consequência é a mortalidade maior pela covid-19 entre a população preta, pobre e periférica. Eles compõem 75% da população pobre, sendo os mais afetados pela falta de prevenção, saneamento e serviços de saúde. Há uma morte para cada três brasileiros negros hospitalizados por covid-19, e uma a cada 4,4 brancos – como revela estudo da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco).

Em São Paulo, cidade com o maior número de casos, oito dos dez bairros com o maior número absoluto de mortes pela covid-19 têm mais negros que a média municipal. O mesmo acontece em relação à moradia: os distritos com mais favelas concentram mais vítimas do que os que não registram moradia irregular. Pessoas negras de baixa escolaridade morrem quatro vezes mais pela covid-19 do que pessoas brancas com ensino superior, concluiu outro estudo, da PUC-Rio. Entre aqueles que têm a mesma escolaridade, negros e negras apresentam índice 37% maior de mortes em relação aos brancos.

E mais. O projeto SoroEpi MSP, criado para medir a proporção de indivíduos que já têm anticorpos contra o coronavírus em São Paulo, mostra que 19,7% das pessoas que se declararam pretas, 14% das que se reconhecem como pardas e apenas 7,9% das brancas são soropositivas.

Somados pretos e pardos, os negros totalizam 56% da população brasileira – 118,9 milhões de pessoas que consomem 1,9 trilhões de reais, ou 40% do consumo total dos brasileiros – segundo estudo do Instituto Locomotiva em parceira com a CUFA (Central Única de Favelas) que ouviu 3.100 pessoas entre 16 e 69 anos, de todos os estados do país, em 4 e 5 de junho.

A pesquisa revela que a população negra tem menos oportunidades de ascensão no trabalho, ocupa cargos mais precários, recebe salários mais baixos e tem maiores possibilidades de ser abordada de forma truculenta pela polícia. Mostra também que não há clareza, entre nós, sobre o caráter estrutural do racismo. Para 38% dos entrevistados, somente algumas pessoas são racistas; para 53%, os brancos também sofrem preconceito racial.

Nove em cada dez pessoas, ou 91% da população, consideram que os brancos têm mais possibilidade de conseguir emprego; 85%, que têm mais chance de cursar uma faculdade. Trabalhadores brancos ganham em média 76% mais que trabalhadores negros; 66% das chefias é de brancos, 21% de pardos e 10% de negros; para 18% dos entrevistados (cerca de 30 milhões de adultos), não há problema em fazer piadas sobre pessoas negras; 76% dos entrevistados negros afirmaram conhecer alguém que já sofreu preconceito ou algum tipo de discriminação, humilhação ou deboche por sua cor ou raça no ambiente de trabalho.

O retrato do racismo estrutural revelado pelo Locomotiva mostra ainda que negros têm menos acesso ao ensino superior e e sua renda é inferior à dos brancos – especialmente se forem mulheres. Entre os que têm diploma universitário, o salário médio dos homens brancos (23% entre os entrevistados) é 32% superior ao dos homens negros (9% entre os entrevistados). Já entre as mulheres, o salário médio das brancas com diploma superior (27% entre os entrevistados) é inferior ao do homem negro (R$4.990 e R$4566, respectivamente) e 33% superior ao da mulher negra com formação universitária (13% entre os entrevistados). O salário médio do homem branco é mais que o dobro do salário médio da mulher negra com a mesma escolaridade (R$7.286 e R$ 3.067, respectivamente).

“Se a sociedade é estruturalmente racista, não é o funcionamento irregular dela que gera racismo: é a regularidade do funcionamento. E, nesse sentido, as instituições que estão na base da sociedade funcionam na lógica de reprodução de desigualdade”, ensina Silvio Almeida.

Essa é a lógica que sustenta a História. “Nossa primeira constituição, de 1824, já falava em segurança, educação, direitos civis, mas só para aqueles que eram livres – e naquela época a maioria da população era de escravos. Isso mostra porque chegamos dessa forma até aqui: o negro nem era considerado cidadão”, lembra Roque. A lei Saraiva, de 1881, dava direito ao voto somente a quem soubesse assinar o nome, e a grande maioria dos escravos era analfabeta, recorda Mauro. “Três séculos de escravidão e com a libertação dessa massa de escravos não houve nenhuma política pública de inserção. Junta isso com o desprezo do governo quanto ao ensino básico, e se vê que as oportunidades são muito desiguais. Um em cada quatro estudantes não tem internet, a maioria é de negros”, aponta.

A desigualdade continua cruel, mesmo depois de conquistas significativas dos movimentos negros. Uma delas é a lei que obriga o ensino da história da África e dos africanos nas escolas, de 2003. Outra é a do sistema de cotas em universidades públicas, adotado pela primeira vez na Universidade de Brasília, em 2004, mas que só foi sancionada em 2012.

“A gente gostaria que fosse mais, mas desde então muita coisa já aconteceu, muito professor foi capacitado, livros foram publicados e a sociedade brasileira discutiu a importância de uma escola que acolhe”, afirma Cida Bento, doutora em psicologia e diretora do Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades, que atua em escolas, empresas e na justiça para promover a igualdade racial e de gênero. “Triplicou o número de jovens negros nas universidades e mais de 40% dos jovens nas universidades federais são negros”, informa. “Há um grande contingente de negros e negras que querem que seu esforço na educação se traduza no trabalho. A presença negra cresce e é mais visível na mídia, na educação.”

Mas, lembra, as crianças negras são as que mais abandonam a escola, pode-se dizer que são expulsas, ao não ver considerada a sua cultura. Os negros, especialmente as mulheres negras, são a maior massa de desempregados ou subempregados. “Em tudo que você olhar, as mulheres negras são as mais prejudicadas, com menores salários, maiores dificuldades. E são também, em todo o país, o segmento que mais protagoniza a luta pela sociedade igualitária.

Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) de 2018 revelam que 6,24 milhões de pessoas trabalhavam então como domésticas no Brasil. Quase 70% delas eram mulheres negras, e 4,4 milhões sem carteira assinada. “A mão da limpeza”, do genial Gilberto Gil, expressa essa realidade.

A reabertura da economia pós-pandemia sem a volta às aulas presenciais deve aumentar ainda mais a desigualdade. São mulheres quase 9 em cada 10 trabalhadores que vivem sozinhos com filhos menores de 14 anos – 1,76 milhão entre 2 milhões de pessoas. Pretas e pardas são 54% da força de trabalho feminina, mas somam 64% das mães chefes de família, as que mais dependem das escolas.

“As condições de trabalho às quais [as mulheres] são submetidas não nos deixam esquecer que a escravidão foi a primeira instituição desta nação”, aponta Áurea Carolina, deputada federal do PSOL-MG.

“Vale lembrar que foi apenas em 2015 que a PEC das Domésticas, sancionada pela presidenta Dilma Rousseff, ampliou os direitos trabalhistas das empregadas domésticas, equiparando-os aos dos demais trabalhadores. O quartinho de empregada, no entanto, para além de um espaço físico, segue sendo o lugar imaginário que este país reserva às mulheres negras”, observa a socióloga Palloma Menezes, professora do departamento de Ciências Sociais da UFF e coordenadora de produção de verbetes do Dicionário de Favelas Marielle Franco, lançado pela Fiocruz.

“Educação é fundamental”, reafirma Roque. “Tive a sorte do Guarani [time em que iniciou a carreira] me colocar num colégio particular da PUC Campinas, me dar as ferramentas pra lutar – mas isso é exceção. Tive uma família com orgulho da raça, de admitir essa negritude – são poucas assim. Na escola não me falaram, mas um dos maiores escritores do Brasil, Machado de Assis, é negro – diziam que é branco”,

“A gente poderia ter a história de vários heróis na escola, mas infelizmente não tivemos”, lamenta Suellen. “Pergunto a amigas quem foi Malcom X, quem foi Martim Luther King e elas não sabem. Isso me machuca, porque é nossa história, nossa herança.”

“Só tive oportunidade de fazer uma formação universitária porque ganhei uma bolsa de estudos”, recorda Aline. “E é muito isso que vai abrir uma porta, te dar uma oportunidade pra correr atrás daquilo que a gente está sempre dois ou três passos atrás.”

“Numa corrida de 100 metros, você sai 20 metros atrás quanto à melhor educação, aos melhores empregos, aos melhores salários”, reafirma Mauro. “Isso perpetua o ciclo vicioso das pessoas negras e o ciclo virtuoso das pessoas brancas. O negro, pelo simples fato de ser negro, encontra dificuldades, morre. Todas as vidas importam, mas não me lembro de ter visto uma pessoa branca morrendo com o joelho no pescoço durante 8 minutos.”

Não consigo respirar”

As derradeiras palavras de George Floyd expressam o sufocamento em que vive a população negra.

“Violência racial é como síndrome respiratória aguda grave, não permite respirar!”, alerta a filósofa e escritora Sueli Carneiro, fundadora do Geledés – Instituto da Mulher Negra, primeira organização negra e feminista independente de São Paulo.

“Respondendo à declaração do vice-presidente, é só pegar os números. A cada 23 minutos morre um jovem negro [dado da Anistia Internacional]. Um jovem que poderia ser um jogador do Corinthians, um jornalista, um dirigente, num país em que o negro é maioria”, rebate Luiz. “A gente tem o nosso George Floyd: o Evaldo dos Santos, segurança e músico, morreu com 80 tiros dentro do carro com a família, simplesmente por ser negro.”

“Tenho um irmão mais novo, negro, e vejo meu pai sempre dizer pra ele ‘cuidado, se vier um carro de polícia abaixe o vidro!’. Eu faço isso até hoje! Quem tem essa preocupação de abaixar o vidro quando está dentro de um carro? A gente precisa parar de relativizar! É bom que olhem o que está acontecendo nos Estados Unidos pra colocar o dedo na nossa ferida. O menino caiu do nono andar ontem!”, exclama Aline.

Corpos negros são marcados como perigosos. A pesquisa do Instituto Locomotiva mostra que nove em cada dez brasileiros (94%) reconhecem que pessoas negras têm mais chance de ser abordadas de forma violenta pela polícia. Que 35% dos negros brasileiros já foram seguidos por seguranças em lojas ou shoppings e 21% dos negros já evitaram usar algum tipo de roupa, acessório ou penteado por medo de ser confundidos com um assaltante.

A atacante da seleção brasileira Ludmila da Silva, primeira jogadora do país a ser contratada pelo Atlético de Madrid, postou no ano passado um vídeo mostrando um segurança que a seguia no supermercado. “É sempre a mesma coisa”, escreveu. “Sempre que eu entro no mercado tem um segurança pra me vigiar… Não é só no Brasil, não.”

A chance de um jovem negro ser vítima de homicídio no Brasil é, em média, 2,5 vezes superior à de um jovem branco, informa o Índice de Vulnerabilidade Juvenil à Violência e Desigualdade Racial de 2018. Pretos e pardos são 65% dos encarcerados no país, cerca de 800 mil pessoas. São negros 75,4% dos mortos em razão de intervenção policial em 2018; e são negras 6 em cada 10 mulheres assassinadas pelo machismo, aponta o Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2019. Nesse ano, os negros foram 78%, ou 1.423 das 1.814 pessoas mortas pela mão da polícia no Rio de Janeiro. Entre elas, 43% tinham entre 14 e 30 anos de idade. Em São Paulo, a PM matou 218 pessoas no primeiro trimestre de 2020 – 63,5% eram pretas ou pardas.

“No Brasil, o racismo vai tomando vários ‘nomes’. Você mata porque ele era uma ameaça, você mata porque ele tinha cara de ladrão, você mata porque achou que o guarda-chuva era um fuzil, você não diz ‘matei porque era negro’. Mas, quando a gente olha os dados, a gente fala ‘não’. Independente das narrativas que foram criadas, o que une essas mortes é, portanto, o fato de serem negros”, afirma a pesquisadora Obirin Odara a partir de seu estudo sobre Estado, Colonialidade e Branquitude.

Mulheres negras e estética branca

Impedido por lei durante quase 40 anos (de 1941 a 1973), o futebol feminino tem sua própria história de resistência. Mulheres que gostavam de jogar bola enfrentaram – ainda enfrentam – descaso, repressão e tentativas de normatização de seus corpos. Por exemplo, a proibição de usar cabelos curtos, decretada pela FPF em 2001.

Sissi, artilheira do Mundial de 1999 e hoje técnica do Las Positas College Women’s de Livermore, na California, um dos maiores nomes do futebol feminino antes de Marta, conta o que enfrentou ao raspar a cabeça em solidariedade a uma criança com câncer. “Tive que escutar um monte de coisa. O fato de ter cabelo curto… todo mundo olhava. Em São Paulo, até não aceitaram que eu participasse de um campeonato. Mas sempre falo para as meninas não deixarem que mudem seu jeito: ‘Se aceita do jeito que você é’.”

Suellen conhece bem essa luta. “O fato de ser negra e mulher no futebol é complicado, na sociedade então nem se diga. A pessoa falar nossa, o seu cabelo é duro, isso é racismo. Vem lá de trás, dessa estrutura colonizada. A gente é vista como se tivesse que usar os mesmos padrões dos brancos. Ter o cabelo liso, não usar o nosso cabelo crespo natural. Ficar favorecendo a sociedade branca.”

Dez anos atrás, os cabelos trançados à moda africana de Suellen não seriam permitidos num campo de futebol, observa Luiz. Ele lembra a baiana Formiga, duas medalhas de prata olímpicas (2004 e 2008), um vice-campeonato na Copa (2007), três ouros em Pan-Americanos, única atleta do mundo a ter participado de sete Mundiais, incluindo homens e mulheres, aos 42 anos jogadora de alto nível no Paris Saint-Germain. “Seu reconhecimento, em outro país, seria muito maior.”

“É a minha inspiração. Nunca vi a Formiga de cabelo liso pra agradar a sociedade, as pessoas do futebol”, exclama Suellen. “Mulher de raça, autêntica, que teve a coragem de usar o cabelo natural crespo naquela época! Porque a gente sempre se viu com uma necessidade extrema de alisar o cabelo por não se achar bonita o suficiente. Imagine o quanto de racismo ela não sofreu nos países onde jogou. Formiga lutou muito pra estar onde está. É um símbolo de mulher negra forte no futebol, me sinto representada por ela e acredito que muitas outras meninas também.”

Filmes, novelas, publicidade reforçam os estereótipos de subalternidade negra e estética de superioridade branca. Num episódio recente, a Bombril foi acusada de racismo ao lançar a esponja de aço Krespinha, cujo nome desqualifica o cabelo afro e associa o corpo de mulheres negras ao trabalho doméstico pesado. Foi obrigada a recuar.

A afirmação racial pelo cabelo cresce e se impõe, principalmente entre jovens. O curta-metragem KBELA, da pesquisadora e cineasta Yasmin Thayná, nascida em Nova Iguaçu, no Rio de Janeiro, expressa “a descoberta de uma força ancestral que emerge de seus cabelos crespos, transcendendo o embranquecimento”. O estudo acadêmico “O cabelo docilizado” analisa a importância da desconstrução da estética da branquitude no empoderamento da mulher negra a partir da análise do romance Americanah, da escritora nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie (2013), no qual ocupa papel central.

Aline considera que afrodescendentes enfrentam ainda mais barreiras do que mulheres no mundo do trabalho. “A mulher, com muita luta, já começou a ter seu espaço reconhecido na sociedade. Mas os negros, não”, diz ela em artigo de Breiller Pires.

Posicionamento dos jogadores

O bate-bola continua. Luiz observa que é raro ver jogadores de futebol se levantarem contra o racismo no Brasil. “Só no caso do George Floyd tem o LeBron James e o Colin Kaepernick, e aqui a gente não vê quase ninguém.”

A História mostra que já tivemos jogadores que se levantaram contra a opressão. “Houve um tempo em que nos vestiários do futebol havia atletas que se mostravam mais conscientes, como nos anos 80, com o fenômeno da Democracia Corintiana”, recorda Flávio de Campos. “Atletas mais críticos, mais engajados, que tinham um posicionamento político mais interessante.”

Silvio Almeida ensina que é preciso politizar a luta. “O racismo destrói a possibilidade de laços entre as pessoas que sofrem violência. O negro só se vê como parte de um grupo historicamente discriminado a partir do momento em que ele se forja na luta política”, observa.

“Talvez não se posicionem pelo desconhecimento da história de 300 anos de escravidão, da arquitetura da exclusão, de como esse racismo estrutural se consolidou no país”, considera Mauro. “Fica clara a responsabilidade que nós temos, como representantes das entidades, atletas e ex-atletas de destaque, de inibir ações racistas. Colocar o dedo na ferida e ser a voz de milhões de brasileiros que não conseguem expor as dificuldades que enfrentam no dia a dia perante a sociedade brasileira.”

“A gente espera que os não negros se posicionem”, afirma Roque. “Mas se 53% da população é negra, temos que nos posicionar. Porque quando o cara for fazer de novo vai pensar duas vezes. Aconteceu uma discriminação, fale. Se posicione. Faço isso desde criança, e é o que ensino aos meus filhos. Porque assim a gente começa a mudar.”

“Não basta se dizer antirracista”, sustenta Suellen. “Você não gosta do racismo? Mostre isso nas atitudes. Qualquer pessoa que fizer piadinha de negro vai lá e diz, olha, não gostei, por que isso?”, questiona. “Precisa tomar uma posição só depois que o George Floyd morreu? Marielle morreu de tiros, Miguel, João Pedro… Quantas pessoas mais vão ter de morrer pra gente começar a acordar?”

Aline pondera. “A gente precisa olhar também o lado desse atleta. Já passei por isso, o Roque também já foi capitão. Você vai lá e diz, então vamos! Dá sua cara pra bater e quando olha pra trás, não vê ninguém. Quantos já sofreram represálias! Então essas gerações foram educadas para sair da linha de frente, porque quem estiver lá vai se dar mal. Acho que a gente precisa iniciar a mudança para uma próxima geração.”

Breiller evoca Aranha, ex-goleiro que sofreu muito racismo jogando na arena do Grêmio. “Teve coragem, denunciou, e o que aconteceu com a carreira do Aranha? Depois de se tornar ativista, despencou. Passou a ter menos oportunidades, foi escanteado, até encerrar a carreira quase no ostracismo. Isso acontece sempre com pessoas que se dispõem a se manifestar. São retaliadas, e é natural que outros atletas, temendo ter a carreira prejudicada, resolvam se preservar.” Lembra ainda o Taison, que foi alvo de insultos racistas de uma torcida e levou cartão amarelo, enquanto a torcida ficou impune.

“Sem a adesão maciça dos brancos a essa causa a gente dificilmente vai conseguir avançar. E não é uma adesão de postar campanha ou hashtag nas redes sociais”, continua Breiller. “Se o seu antirracismo é só isso, eu dispenso. A gente precisa de engajamento permanente, de posições antirracistas contundentes. Como está acontecendo nos Estados Unidos, em protestos em que a gente vê a população branca em massa dando apoio à indignação dos negros.”

“Essa mudança só vai acontecer se quem está hoje nessa situação de privilégio parar com essa história de meritocracia, de que as oportunidades são iguais pra todo mundo. Porque não são!”, afirma Aline.

“Não basta dizer eu não sou racista. São necessárias atitudes antirracistas se a gente quer mudar o nosso país, se a gente quer olhar para o futuro e ver um país justo, plural, onde as pessoas tenham as mesmas oportunidades. Um país que poderia ser maravilhoso, diverso, como a gente vê em alguns momentos, como no carnaval. Que poderia ser assim nas empresas, nos cargos de liderança”, reafirma Mauro. “Fiquei muito feliz com esse debate porque o futebol é uma ferramenta de transformação que pode ser usada pra dar visibilidade ao racismo estrutural que existe no Brasil.”

Pacto narcísico da branquitude

Foi justamente o fato das relações raciais no Brasil terem sempre sido tratadas como problema exclusivo de negros que levou Cida Bento a escrever, em seu doutorado em Psicologia Social pela USP, em 2002, a tese “Pactos narcísicos no racismo: branquitude e poder nas organizações empresariais e no poder público”. Ela ali trabalha com o conceito freudiano do Narciso, que de tão apaixonado pela própria beleza cai no lago onde vê seu reflexo – e morre. Assim expressa a forma “como o grupo hegemônico, independentemente de ideologia político-partidária, se acomoda à sociedade racista que forjou no Brasil.”

“Há um lugar da branquitude que é colocar todos que não são brancos em uma condição de inferioridade. Isso é um pacto”, explica. “O branco tem muito medo de ser minoria e em alguma parte dele sabe que aquilo que ele tem como privilégio foi expropriado dos negros. Durante quase 400 anos de escravidão, entre pouco mais de 500 anos de Brasil, quem trabalhou no país foram os negros. Esse lugar do branco aciona o medo. Os negros são credores que incomodam”, explica.

“Se o racismo espolia e exclui muita gente, é natural que ele seja vantajoso à outra parte”, reafirma Jurema Werneck. “Recusamos essa branquitude ora desresponsabilizada, ora culpada, fundada na falsa ideia de ausência de cor e de raça, que goza privilégios como se direitos fossem. Que se orgulha de ter e ser o que nos foi expropriado. Que repousa em um lugar confortável, de onde, então, pode ser generosa… Nosso orgulho é ter sobrevivido, a despeito do que nos foi – e tem sido – imposto. Nosso orgulho é possuir o que não nos foi dado nunca”, proclama em “A era da inocência acabou, já foi tarde”.

“Veja que a luta contra o racismo começa a assustar quando os brancos também entendem que o racismo é um problema deles e que, enquanto um negro for violentado, eles também nunca conseguirão ter a sua humanidade plenamente ressignificada”, considera Silvio Almeida. “A morte do George Floyd representa a degradação humana. E, na boa, representa sabe o quê? O fracasso do homem branco. Naquela imagem dele sendo assassinado, para mim, a decadência civilizatória não está no corpo do Floyd, mas no do policial”.

Cida Bento dá um cuidadoso recado para nós, os brancos. “Se você quiser construir um novo país, você vai ter que compreender o seu lugar de branco, identificar a branquitude em você e nas instituições, identificar como se sente com relação a isso, identificar as questões éticas e morais que estão envolvidas nisso. Tem uma lacuna moral quando você finge que não tem um legado de mais de 500 anos que está se atualizando o tempo inteiro. Este é um enfrentamento que exige, primeiro, você olhar para os seus privilégios.”

Brancos entram no jogo: uma virada histórica?

Potencializado pela reflexão forçada do coronavírus, o levante antirracista com epicentro nos EUA talvez esteja provocando uma virada histórica. No Brasil, atletas se manifestaram pelas vidas negras na volta do futebol aos estádios. Ao entrar em campo contra a Cabofriense pelo campeonato carioca, no domingo 28 de junho, os jogadores do Botafogo portavam uma faixa contra a volta dos jogos em meio à pandemia e camisas pretas em alusão à campanha Vidas Negras Importam. No segundo minuto do jogo, ecoando o gesto seminal de Colin Kaepernick, ajoelharam-se em protesto contra o racismo, e foram seguidos por um jogador adversário. No mesmo dia, no estádio de São Januário, jogadores do Vasco e do Macaé também se ajoelharam – e ergueram os punhos.

O gesto de ajoelhar-se ganhou notoriedade quando Colin Kaepernick, jogador de futebol americano, ficou de joelhos durante a execução do hino dos Estados Unidos em protesto contra a violência racial. Atacado por Donald Trump, sofreu represálias e ficou fora dos jogos durante dois anos, até que a Nike o contratou para representar a marca, numa campanha que estourou de sucesso. Com o assassinato de George Floyd, centenas de atletas passaram a ficar de joelhos durante o hino nacional, a despeito dos ataques de Trump. Numa partida recente o vice-presidente Mike Pence abandonou o estádio diante do gesto dos jogadores, que tem sido adotado também por europeus.

No Brasil, o grupo Esporte pela Democracia reuniu atletas, ex-atletas, artistas e jornalistas em defesa do “direito supremo à vida, a uma sociedade justa e igualitária, antirracista, o respeito das individualidades e o valor do coletivo em nome do bem-estar e da dignidade para todos.” Entre os jogadores de futebol que assinam o manifesto estão Casagrande e Wladimir, protagonistas do movimento Democracia Corintiana ao lado de Sócrates Brasileiro, e Afonsinho, um lutador das antigas contra a opressão no futebol. Pelo grupo Esporte pela Democracia, Casagrande ajudou a organizar um debate sobre o racismo no cinema.

Atos antifascistas e antirracistas foram protagonizados por torcidas organizadas, lado a lado com os coletivos Vidas Negras Importam do movimento negro. No protesto de 7 de junho, em São Paulo, cartazes questionavam: “Branco, você é realmente antirracista?”. Números sobre a violência policial e o genocídio da população negra pela Covid-19 bradavam pelo megafone. “Não nos deram direito ao isolamento!”. No mesmo dia, aconteciam atos no Rio de Janeiro e Brasília.

As manifestações ocorridas durante semanas nos Estados Unidos têm sido comparadas, em força e magnitude, às que sucederam em 1968 o assassinato de Martin Luther King. O fato novo é a adesão maciça de jovens brancos aos protestos, muitas vezes formando um “escudo branco” na linha de frente das manifestações para proteger os companheiros negros da repressão policial.

“Aliados brancos na frente! Entrem na fila! Se você não vai colocar seu corpo em risco por vidas negras, vá para casa! Compense os pecados de seus antepassados!”, clamava um jovem num megafone diante de uma multidão que ocupava uma rodovia em Atlanta, na Georgia, no entardecer de 13 de junho – desta vez, protestando por Rayshard Brooks, assassinado pela polícia no estacionamento de uma lanchonete da cidade na noite anterior.

Para Silvio Almeida, o que muitos brancos brasileiros estão sentindo agora é mais vergonha dos brancos norte-americanos do que uma genuína revolta pelo assassinato diário dos negros no Brasil. “Ser branco é isso também, é tentar mimetizar os parâmetros culturais e comportamentais das pessoas que estão no Hemisfério Norte.” ironiza.

A escritora Djamila Ribeiro, mestre em Filosofia Política, alerta: “O enfrentamento ao racismo precisa ser mais do que posts para aliviar a consciência. A branquitude brasileira é tão racista que, diante dos protestos nos Estados Unidos pela morte de George Floyd, inaugura o debate racial”, diz ela. “Não basta só reconhecer o privilégio, precisa ter ação antirracista de fato. Ir a manifestações é uma delas, apoiar projetos importantes que visem à melhoria de vida das populações negras é importante, ler intelectuais negros, colocar na bibliografia. Quem a gente convida pra entrevistar? Quem são as pessoas que a gente visibiliza?”, pergunta.

Conquistas e pauta antirracistas

Vozes negras contra o racismo vêm ganhando visibilidade em várias esferas da vida pública. No mundo das artes, saraus, hip hop e slams fizeram dos pretos pobres periféricos os produtores e consumidores de sua própria cultura. Despontaram, entre muitos outros, artistas inspiradoras como a poeta Elisa Lucinda; as cineastas Viviane Ferreira, presidente da Associação dxs Profissionais do Audiovisual Negro e primeira cineasta negra a realizar um longa-metragem em 37 anos (a primeira foi Adélia Sampaio, em 1983) e Yasmin Thayná a artista plástica Rosana Paulino; a Cia Étnica de dança de Carmen Luz; o canto de Luedji Lima e da rapper Luana Hansen. Sem contar a sempiterna Elza Soares com seu disco Deus é Mulher.

Na literatura, as vozes se multiplicaram e ganharam espaço nas editoras, jornais, revistas, tevês. Djamila Ribeiro frequentou listas de best-sellers com os livros “Pequeno Manual Antirracista”, “Quem tem medo do Feminismo Negro?” e “Lugar de Fala”. Ela coordena a coleção Feminismos Plurais, da Editora Letramento, que acaba de lançar “O que é racismo estrutural?”, de Silvio Almeida. Conceição Evaristo, Sueli Carneiro, Eliana Alves Cruz, Ana Maria Gonçalves, Juliana Borges são algumas das autoras que têm livros em circulação.

Maria Lúcia da Silva, psicanalista negra, relata as dificuldades da escuta de uma pessoa negra num meio hegemonicamente branco, a luta pela transformação dessa realidade e como se descobriu negra e mulher na história do movimentos negro e feminista. Ela pode ser ouvida no episódio Psique e Negritude da websérie Psicanalistas que falam, idealizada por Lúcia Lima e Heidi Tabacof.

A pressão dos consumidores negros atingiu em cheio o mundo corporativo. Além da Bom Bril, a fabricante de tintas Suvinil, do grupo Basf, desculpou-se e alterou o nome de oito cores consideradas racistas. Nos Estados Unidos, multinacionais como a Procter & Gamble, da marca Unilever, estão se recusando a anunciar em páginas do Facebook próximas ou ligadas a “discurso de ódio, discriminatório ou difamatório”.

“Não podemos falar só da Bombril como bode expiatório. Todas as empresas estão com os tetos de vidro expostos, pela falta de investimentos na temática e pela falta de negros em cargos executivos. O produto é só fruto da falta dessa estrutura. Tem existido uma revisitação pública do portfólio de muitos produtos em diversas áreas”, informa Luana Genót, diretora-executiva do Instituto Identidades do Brasil (ID_BR). “Empresas como Pepsico, Mars e L’Oreal já anunciaram mudanças em alguns dos seus produtos.”

“As empresas que vão se destacar no futuro são aquelas preocupadas em induzir o desenvolvimento social e ambiental. Gostaria de ver o país dar as mesmas oportunidades para todos. É disso que se trata, além da questão racial. Fiquei muito feliz com esse debate porque o futebol é uma ferramenta de transformação que pode ser usada pra dar visibilidade ao racismo estrutural que existe no Brasil”, considera Mauro.

De fato, afirma Cida Bento, referindo-se especificamente às consumidoras. “Estudos mostram que organizações que se preocupam com equidade de gênero, de raça e orientação sexual ganham pontos na avaliação das cidadãs e isso se traduz nos resultados do negócio. Por exemplo, uma mulher gosta de ser atendida em uma companhia em que ela veja a presença feminina em cargos importantes, não apenas em posições mais baixas.”

No jornalismo, apresentadoras e comentaristas negras protagonizaram um debate sobre racismo no programa “Em Pauta”, da Globonews. A iniciativa, inédita, foi uma reação aos protestos de telespectadores pelo tema ter sido tratado apenas por comentaristas brancos no dia anterior.

“Os meios de comunicação são fundamentais para reproduzir o imaginário social racista, observa Silvio Almeida. “Não existiria a possibilidade de você ter um racismo estrutural e sistêmico se não houvesse, diuturnamente, reprodução nos meios de comunicação de esteriótipos de pessoas negras, se não houvesse programas de televisão que naturalizam toda hora o assassinato, a morte, a condição do negro como bandido.”

“O negro tem esse joelho no pescoço desde o nascimento, com o impedimento dos nossos sonhos, da nossa vida”, diz o manifesto “Vidas negras importam: nós queremos respirar”, lançado em 30 de junho pela Universidade Zumbi dos Palmares. Apoiado por 150 personalidades e instituições dos meios jurídico, político, empresarial, artístico e do esporte, ele propõe dez ações de segurança pública, fomento, apoio e financiamento de projetos educacionais e de acesso ao trabalho para jovens negros. Entre elas estão a reformulação dos protocolos policiais, a prorrogação do sistema de cotas raciais, e a criação do Fundo Vidas Negras Importam. O prazo para as mudanças é de cinco anos, 30% no primeiro ano. “Elaboramos um manifesto com ações que, em alguns casos, basta apenas fazer com que as leis sejam cumpridas”, afirmou durante o lançamento José Vicente, reitor da Universidade Zumbi dos Palmares.

Uma carta das “Mulheres brasileiras feministas antirracistas e antifascistas” também veio a público contra a discriminação a negros e indígenas e ameaças à democracia. Nela, as mulheres se comprometem com a luta contra “a perpetuação da desigualdade social que se amplia com os cortes nos orçamentos da saúde e da educação, do saneamento básico e de programas sociais”.

São muitas as mudanças estruturais necessárias para desmontar o racismo, ensina Silvio Almeida. “Qualquer pauta antirracista e a favor da democracia vai ter que estar conectada de um golpe só com uma agenda pública e uma agenda de transformação econômica. E essa agenda de transformação econômica engloba não apenas novas formas de organização do trabalho, de produção, de distribuição de renda: vai ter que englobar também a questão ambiental, porque uma das coisas de que a gente pouco fala é que o processo de degradação do meio ambiente tem a ver com a destruição dos povos originários, com o racismo ambiental”.

E mais. “Não adianta se dizer antirracista se você apoia as chamadas políticas de austeridade, a partir do momento em que elas implicam em corte dos direitos sociais e colocam a população negra, a população indígena, a população quilombola, as minorias, na situação de penúria em que se encontram hoje.”

“Não dá pra defender aquela PEC que congelou os gastos públicos sabendo que quem precisa do sistema público é a comunidade negra! Ela que não tem dinheiro pra saúde, pra educação!”, ecoa Cida Bento. “Não dá pra discutir com aquele que fica ainda defendendo certas posições que são absolutamente racistas, genocidas de diferentes maneiras.”

“Não estamos falando em inclusão, estamos falando em desigualdade. Estamos falando em herança dos dois grupos. Estamos falando em credores e devedores numa história de mais de 500 anos. Estamos falando que não é coincidência que estejam morrendo mais negros agora, que lá na favela – os CEPs foram tirados dos dados, agora – tem uma política de eugenia”, afirma ela.

“A gente precisa reorientar os afetos”, observa ainda Silvio Almeida. “O Brasil, que não é o Brasil oficial, produz o samba, as religiões de matriz africana. Veja como tem coisa bonita! Tudo isso tem que ser colocado numa agenda pública, trazer também para o centro as práticas culturais.”

E lança a boa nova. “Esses protestos são mais do que antirracistas. Eles são antissistema. Eles têm acento anticapitalista. A miséria se levanta, gente.

Sem justiça não há paz

“O pacto de silêncio foi quebrado. Além do Observatório da Discriminação Racial no Futebol, é crescente o número de movimentos que lutam contra vários tipos de preconceito no futebol”, observa Marcelo Carvalho, seu fundador em 2014. “Isso ajuda a encorajar as vítimas de ofensas racistas.”

“Ainda tem muito racismo na iniciação, aos 14, 15, 16 anos. Tenho filhos e eles passam por isso”, alerta Roque. “O fato da FPF abrir esse espaço mostra que nossa vida importa, o que viveram nossos antepassados importa e o que vão viver nossos filhos importa. Espero que seja o primeiro de muitos, porque essa luta é necessária pra alertar os outros negros a se juntarem a essa causa e os não negros a prestar atenção. O Brasil deve muito aos negros. Temos direito a muito mais do que tivemos até hoje.”

“Os processos de formação precisam cuidar da formação cidadã do atleta”, aponta Breiller. “Poucos clubes têm essa missão de formar atletas com consciência crítica, e muitos dirigentes não querem ter um atleta ciente dos seus direitos, combativo, porque acha prejudicial. Mas a gente precisa entender o esporte como algo maior e cobrar essa formação nas categorias de base.”

“O Brasil não se tornou racista, machista, sexista, homofóbico em cinco anos”, lembra Aline. “Foi em 500, e a gente não vai desconstruir 500 anos de história em cinco anos. Mas será que consegue em 50?”, pergunta. “Quem é que vai ensinar o menino negro na formação, o técnico branco? Quem vai educar o menino a não ser machista, o homem? Quem é que vai dar essa educação, se não tem negros como técnicos nos cargos de comando? A gente continua tendo pessoas brancas reproduzindo o que nos trouxe até aqui. Se queremos essa mudança, precisamos começar agora. Que esse seja de fato o princípio de uma mudança, porque a gente tem muito o que caminhar.”

“Enquanto a gente viver nessa sociedade que não só é racista mas também premia racistas, precisamos continuar em alerta. Enquanto não houver justiça e igualdade não podemos dar paz aos racistas”, diz Breiller.

“Educação é adquirir uma cultura cidadã, é aprender que democracia é conviver com a diversidade, é conviver com a diferença. Uma sólida educação forma cidadãos críticos. Se a pessoa aprendeu o racismo em casa, e está exposta a falas e atitudes não racistas na escola, ela vai ter argumentos e força para contestar o racismo da casa”, ensina o antropólogo Kabengele Munanga. “O brasileiro pode e deve construir sua identidade a partir da diversidade. Nossa identidade é plural. Temos contribuições das culturas indígena, japonesa, árabe, europeia, e, muitíssimo, da africana. O problema é que só uma delas, a europeia, está no poder.”

Cida Bento expressa a angústia e a fé de muitos. “Diante de tudo o que está acontecendo, como consideração final, posso dizer que oscilo entre o desespero do que será nos próximos dias para a nossa população pobre, periférica, negra e indígena e entre a esperança de saber que somos capazes de reinventar esse país, com todo o preço que já pagamos e ainda vamos pagar. Às vezes dói e às vezes é esperança.”

De minha parte, branca que sou, só posso agradecer aos personagens deste artigo pelo tanto que aprendi ao (re)conhecê-los.

Leia Também:

Um comentario para "No futebol, uma síntese do racismo brasileiro"

  1. Excelente artigo. Em geral, o crime de injúria está associado ao uso de palavras depreciativas referentes à raça ou cor com a intenção de ofender a honra da vítima. Já o crime de racismo, previsto na Lei nº 7.716/1989, implica em conduta discriminatória dirigida a um determinado grupo ou coletividade e, geralmente, refere-se a crimes mais amplos. Nesses casos, cabe ao Ministério Público a legitimidade para processar o ofensor. A lei enquadra uma série de situações como crime de racismo, por exemplo, recusar ou impedir acesso a estabelecimento comercial, impedir o acesso às entradas sociais em edifícios públicos ou residenciais e elevadores ou às escadas de acesso, negar ou obstar emprego em empresa privada, entre outros.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *