A dor desta gente não sai no jornal

Medo de morrer; machismo; falta de grana, espaço e esperança. Os impactos emocionais da covid-19 na periferia. Uma líder comunitária e uma psicóloga que atuam na, zona leste de SP revelam como a pandemia agravou a vulnerabilidade

Meninos da Comunidade do Boi interrompem a brincadeira para receber orientações sobre o abuso sexual infantil durante o período de isolamento social. | Foto: Thainá Prado/Ponte Jornalismo
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Por Thainá Prado, especial para a Ponte Jornalismo

Grandes famílias dividindo o mesmo cômodo construído entre telhas de amianto, lençóis velhos, tábuas corroídas e à beira do córrego Lageado, no Itaim Paulista, na periferia da zona leste de São Paulo. Falta de ventilação, baile funk aos sábados e máscaras ignoradas. O número de famílias que vivem na Comunidade do Boi, no Itaim Paulista, é incontável, mas estima-se que sejam em torno de 1,2 mil famílias, com, em média, cinco ou seis integrantes.

Até hoje, foram inscritas 900 famílias no programa de cestas básicas proposto pelos próprios moradores quando o coronavírus chegou de vez. E, segundo o mais recente boletim epidemiológico da Prefeitura de São Paulo, a região da Comunidade do Boi já registrou mais de 120 mortes devido à Covid-19, sendo a segunda região com maior incidência da zona leste.

Psicóloga orienta idosa sem máscara sobre a necessidade de prevenção contra a Covid-19 | Foto: Thainá Prado/Ponte Jornalismo

Em primeiro lugar está Sapopemba, que já ultrapassou 200 óbitos. “A comunidade é o cenário de um ambiente desprotegido na questão de direitos e acessos”, afirma a psicóloga Cinthya Santos, que, por causa da pandemia, implantou um projeto sobre a saúde mental na região.

A psicóloga tomou a iniciativa de criar cartilhas com linguagens específicas para cada perfil da comunidade. Por exemplo, uma delas é feita sob medida para os meninos que ficam na vielas soltando pipa. Outra é voltada para meninas alertando sobre o abuso sexual infantil e adolescente, e ainda há uma sobre a violência contra a mulher.

Moradoras da Comunidade do Boi sendo informadas sobre a violência contra a mulher e formas de denunciam | Foto: Thainá Prado/Ponte Jornalismo

“Observei muita gravidez na adolescência, crianças na rua, casa na beira do esgoto e agressividade com os animais”, conta a psicóloga que se juntou a líder comunitária Francisca Cleuda Soares da Silva, da Associação de Moradores do Jardim Jaraguá. Dona Francisca, como gosta de ser chamada, atua na região desde 2000 e, além de doar 1,5 mil máscaras, se juntou aos professores da rede municipal e fez um movimento de arrecadação para distribuir cestas básicas às famílias sem auxílio de governos.

Ela conta que apenas 20% da comunidade têm um emprego e, com a pandemia, a maioria dos trabalhadores informais, como vendedores de balas ou água nas ruas, viu a renda mensal cair e ainda segue na espera para o recebimento do Auxílio Emergencial do Governo Federal. Juntas, Dona Francisca e Cinthya criaram uma estratégia de comunicação. De porta em porta, de pessoa em pessoa, foram entregando as cartilhas de orientação. “Aqui tem número pra ligar, tia?” perguntou um garoto, na faixa dos sete anos de idade, ao receber a cartilha e explicação sobre o abuso sexual infantil e adolescente.

Córrego Lageado, na Comunidade do Boi, Itaim Paulista, cercado por lixos e moradias | Foto: Thainá Prado/Ponte Jornalismo

Muitos homens se negaram a pegar a cartilha sobre mulheres em situação de violência. O único que pegou um exemplar sobre abuso e exploração sexual de crianças e adolescentes foi um senhor com sua neta de quatro anos em um bar.

A agressão física entre homens e mulheres tem um grande índice de ocorrência na Comunidade do Boi, mas é algo camuflado e as mulheres sentem vergonha de falar, conta a líder comunitária. “Está acontecendo o tempo todo, os adolescentes acabam desabafando, mas as mulheres escondem”, afirmou.

Dona Francisca, líder comunitária e agente social da Associação Jaraguá, na Comunidade do Boi, Itaim Paulista, zona leste de São Paulo | Foto: Thainá Prado/Ponte Jornalismo

Francisca afirma que quase não consegue contar o número de moradores que, depois de meses na fila da UBS (Unidade Básica de Saúde), pedem ajuda a ela para conseguir acesso a psicólogos e psiquiatras. Os motivos, explica, são diversos: familiares presos, depressão, pessoas em situação de violência, ansiedade e, agora, com a pandemia, questões como o medo de morrer, perder familiares, convívio em pequenos cômodos sem direito a individualidade, falta de emprego e impactos econômico dentro de casa.

“Saúde mental não reduz somente ir a um psicoterapeuta. É um pacote de cuidados paliativos, auxiliar a pessoa a escolher com consciência e qualidade”, afirma Cinthya, acreditando que tal cuidado com a mentalidade é uma estratégia de redução de danos.

No caso da Comunidade do Boi, pessoas relatam estar em estado de depressão e medo, assim, a psicóloga reservou alguns dias em sua agenda para fazer atendimentos psicológicos de 50 minutos ao povo de sua região. “Me deixar à disposição da população para acolher qualquer tipo demanda”, afirmou.

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