Classe média, este enigma

Sua relevância sociopolítica é inegável. Difícil é saber quem ela é, de que se alimenta, como se reproduz… Uma socióloga, um crítico literário, um cientista político e um estudioso da racialidade propõem um diálogo prismático sobre esse segmento social

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Por Edna Castro, Silviano Santiago, Simon Schwartzman e Valter Silvério na coluna da Biblioteca Virtual do Pensamento Social (BVPS)

Este texto foi publicado originalmente no Blog da Biblioteca Virtual do Pensamento Social, como parte do Simpósio “Essa tal classe média”, coordenado por Celi Scalon (UFRJ), André Botelho (UFRJ) e João Mello (PPGSA e NEPS/UFRJ). O simpósio ouviu especialistas de diferentes áreas das ciências sociais, humanas e literaturas, bem como de várias especialidades dessas áreas, sobre a relevância e a atualidade do tema. O diálogo multidisciplinar entre especialistas e não especialistas em classes médias tem o objetivo de promover trocas teóricas, históricas e empíricas e também investigar a possível multidimensionalidade e transversalidade do tema que discutimos.
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No texto de apresentação do Simpósio “Essa tal classe média”, os coordenadores Celi Scalon, André Botelho e João Mello explicam que “pesquisadoras e pesquisadores responderam a um questionário com quatro perguntas, elaborado com a expectativa de indagar diferentes formas de se pensar e trabalhar com a categoria de ‘classe/s média/s’ – no singular e no plural – a partir de diferentes áreas das ciências humanas. A organização dessa série se vincula ao Projeto Temático da FAPERJ “Classe média à brasileira: desigualdades, história e percepções”, coordenado por Celi Scalon, que articula duas áreas consolidadas da Sociologia: estratificação social e pensamento social brasileiro. O objetivo do projeto é investigar o perfil social e histórico assumido pelas chamadas classes médias no Brasil moderno e contemporâneo.”

A seguir, leia, em articulação prismática, as respostas dos seguintes convidados: 

Edna Castro, professora emérita de Sociologia da Universidade Federal do Pará. Autora, entre outros, de Pensamento crítico Latino-americano (2019) e Territórios em Transformação na Amazônia (2017). Presidente eleita da Sociedade Brasileira de Sociologia (SBS).

Silviano Santiago, professor emérito da Universidade Federal Fluminense e membro da Academia Mineira de Letras. Autor, entre outros, de Menino sem passado (2021) e Uma Literatura nos trópicos: ensaios sobre dependência cultural (1978).

Simon Schwartzman, pesquisador associado do Instituto de Estudos de Política Econômica (Casa das Garças, IEPE/CdG) do Rio de Janeiro. Autor, entre outros, de Higher Education in Latin America and the Challenges of the 21st Century (2020) e 130 anos: em busca da República (Org. 2019).

Valter Silvério, professor de Sociologia da Universidade Federal de São Carlos. Autor, entre outros, de Transnacionalismo negro diáspora africana: uma nova imaginação sociológica (2022) e Agência criativa negra: rejeições articuladas e reconfigurações do racismo (2022).

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1. O que a seu ver identifica/define uma pessoa de classe média? Esses elementos mudaram ou se mantiveram ao longo das últimas décadas?

Edna Castro: A questão me levou a refletir sobre as dinâmicas do processo histórico de formação de classes e identidades e a diversidade social do país que passou a ser uma categoria analítica relevante para o entendimento do que são as classes sociais. É sempre bom reler Bourdieu e refletir sobre os caminhos metodológicos da pesquisa social e como eles remetem a uma série de questões sobre as classes sociais. A classe média no Brasil é um conjunto de coletivos que contém grandes diferenças entre si e, por isso, nos parece complicado procurar entendê-la a partir de padrões como uma construção no plano da inteligibilidade.

A trajetória de grupos e de famílias nos ajuda a entender o papel desempenhado pelos valores de ascensão social da classe média. Várias pesquisas já mostraram que, nas últimas décadas, houve no Brasil aumento da renda média e deslocamento de grupos para estratos mais altos ou níveis intermediários de renda. Se pensarmos na segunda metade do século XX, quando se fortalecem os ideais nacional-desenvolvimentistas e de progresso no seio da classe média brasileira, observamos algumas mudanças, tais como alteração do perfil de renda e expansão geográfica com maior acesso às universidades, às políticas públicas, ao crescimento do emprego e conquistas em diversas ordens no plano dos direitos territoriais, sociais, de gênero e étnico-raciais. No entanto, permanecem, como padrão e estruturas, as lógicas de exclusão e a reprodução contínua da desigualdade social. O Brasil é um dos países mais desiguais do mundo. A desigualdade é o retrato do abismo entre gerações, entre bairros da mesma cidade e entre crianças do mesmo país. Abismo difícil de ser ultrapassado, por ter raízes profundas na própria história da dominação social. Apesar de avanços na educação, o sistema se reproduz quase idêntico, e mesmo as melhorias evidentes deste século foram perdidas em poucos anos de um governo do desmonte, o que evidencia a fragilidade das políticas e das rupturas com o sistema de reprodução social.

Silviano Santiago: No Brasil republicano, uma pessoa se identifica como das classes médias por se autoafirmar e se figurar, em um município, pela estabilidade funcional e financeira do grupo familiar a que pertence. Em sociedade patriarcal e cristã, o regime doméstico é imposto pela obediência religiosa do grupo ao Pai provedor. Dois lemas assumidos pelos republicanos explicam o sentido da norma patriarcal: A pátria é a família amplificada, Ordem e Progresso.

O protagonismo político é alheio às classes médias. A expressão “a maioria silenciosa” se justifica no Brasil. A corrosão das normas sociopolíticas parte do sentimentalismo materno, em conivência com os anseios de rebeldia dos descendentes. Dois canais atiçam a rebeldia dos jovens: a escola (educação pública) e os vários meios de comunicação por reprodução técnica do objeto dito artístico (cultura de massa). Apenas sobrepostas ao autoritarismo dominante na esfera doméstica, as duas forças disruptivas, derivadas da des/ordem comunitária em tempos tumultuados, transformam-se no legítimo motor das redefinições sociopolíticas que aceleram as mudanças – ou modernizações – nas classes médias. Reproduz-se o mito romântico da corrosão política e social pelo entusiasmo juvenil e/ou feminino. A identificação das classes médias pelo grupo familiar estável acolhe hoje uma terceira qualidade, a ascensão social pelo sucesso profissional. Boa e tardia justificativa para o sistema de cotas no sistema universitário. As mudanças nas classes médias se deixam configurar (1) pelo ritmo, o geracional, (2) pelo sentido, o da moda, e (3) pelo modo, o imitativo.

Simon Schwartzman: Existem pelo menos três maneiras de identificar uma pessoa como de classe média. A primeira, na tradição marxista, é pela suposição de que a sociedade está organizada em classes, definidas basicamente pela posição da pessoa na divisão social do trabalho: a classe alta, capitalista, proprietária dos meios de produção; a classe proletária, dos trabalhadores assalariados; e entre os dois, a classe média. A suposição é a de que as atitudes e orientações políticas das pessoas dependeriam de sua posição de classe. Mas as sociedades são muito mais complexas do que isso, com funcionários assalariados, provedores de serviços, operários especializados, profissionais liberais, pequenos proprietários rurais, favelados etc. A classificação de todos em três classes não dá conta da realidade. A segunda maneira é perguntar às pessoas em que classe elas se colocam, ou seja, adotar um conceito subjetivo de classe. O problema aqui é que nem sempre as pessoas se percebem como pertencendo a uma classe, mas a grupos de status, etnias, países, regiões etc., e essas outras identidades podem ser mais importantes para elas do que o pertencimento a uma classe determinada. A terceira maneira, adotada pelos institutos de opinião, por exemplo, é usar o conceito de estratificação, definido estatisticamente pela posição da pessoa em escalas de renda, educação e prestígio social. A vantagem desta maneira é que ela é relativamente simples de definir, e, na prática, atitudes e orientações políticas frequentemente variam em função de posições na estratificação social.

Valter Silvério: Há uma ideia hegemônica de que o grau de escolarização, local de moradia, status ou situação ocupacional define, por contraste, os estratos sociais inferiores e os superiores, tal como proposto pela(s) teoria(s) da estratificação social. Com a expansão significativa de estudos sobre identidades étnicas, raciais e de gênero, após a década de 1960, os critérios associados às classificações do ser (ou não ser) classe média se complexificaram e se alteraram.

Os questionamentos incidem basicamente sobre as “fronteiras” e/ou “limites” simbólicos, isto é, linhas que incluem e definem algumas pessoas, grupos, coisas, enquanto excluem outras(os). Os estudos sobre o trabalho de fronteira descrevem a identidade coletiva como constituída por uma interação dialética de processos de definição interna e externa. Estas ideias dão continuidade aos esforços iniciais de Du Bois (1990 [1903])[1], que enfatizou o trabalho de gestão da “linha de cor” ou “véu” que define a raça, e de Barth (1969)[2], que analisou o processo de criação de fronteiras étnicas. Também refletem o trabalho sobre o posicionamento de grupos raciais (Blumer, 1958[3]; Bobo &Hutchings, 1996[4]).

2. Como o tema aparece no seu campo de pesquisa e qual a relevância dele para os fenômenos que estuda?

Edna Castro: O vasto campo de estudos sobre o trabalho se construiu na relação com a noção de classe social desde autores clássicos da sociologia, sobretudo na tradição marxista. Um número expressivo de pesquisas no Brasil se dedicou a entender a classe operária fabril, em especial no decorrer das décadas de 1970 a 1990, mas também há pesquisas sobre empresas e trabalhadores informais, terceirizados, do setor de serviços, do meio rural etc. Mais recentemente, os estudos se ampliaram para cobrir um amplo espectro do mercado de trabalho devido às inovações e exigências tecnológicas no modo de realizar o trabalhar e a produtividade. No entanto, cabe ressaltar a participação de segmentos importantes justamente da classe média, comprometidos com projetos de ruptura do modelo de exclusão e presentes nas lutas sociais contra a desigualdade, a exclusão, o racismo, o colonialismo e em defesa de bandeiras de direitos sociais e ambientais.

Penso ser essencial retomar a reflexão sobre os temas e as teses de autores que se dedicaram a analisar os processos de desenvolvimento na América Latina desde meados do século XX e seus desdobramentos teóricos e políticos. A discussão sobre classes, marginalidade e desigualdades sociais constituiu um dos eixos da reflexão, embora sem a devida centralidade. Igualmente a leitura de autores e abordagens críticas sobre as consequências da modernidade são fundamentais na construção de um conhecimento sobre o sentido e a direção que tomam contemporaneamente a economia e a sociedade, levando em conta as crises recentes do capital e a emergência climática com seu potencial de riscos e incertezas. Nessa perspectiva, a leitura de autores de teorias decoloniais, feministas e da ecologia política que centram suas análises na perspectiva crítica tem contribuído para alargar a visão de uma sociologia contextualizada, com formulações epistemológicas de fronteira, a partir de uma reflexão científica justamente na margem do sistema-mundo dominante.

Silviano Santiago: O campo da criação literária acaba por trazer boas e tardias surpresas para o melhor conhecimento e a relevância do tema. A contribuição artística não é objetiva nem conceitual, é apenas disruptiva, já que o melhor dela deriva da curiosidade intelectual de um sujeito que se quer produtor(a) de arte. Theodor Adorno, em Minima moralia, foi sensível: “Ao longo desses cento e cinquenta anos que passaram desde o aparecimento do pensamento hegeliano, é ao indivíduo que coube uma boa parte do potencial de protesto”. A boa surpresa tardia deriva da sensibilidade de um sujeito letrado (as exceções à exigência de formação educacional são raras, mas crescem em número) capaz de observar a sua vivência no próprio meio social e a vivência alheia em grupos diferentes, e de testemunhar. Com essa matéria quase impalpável informa e conforma, primeiro, o tema e a composição da obra artística que produz e, segundo, no caso da prosa ficcional, a caracterização dos narradores e dos personagens pertencentes às classes médias, ou não. O leitor ou o crítico deve, pois, extrair da leitura uma teoria sobre as explosões de saber intuitivo que a estilização artística oferece de dada sociedade. Nesse sentido, qualquer teoria das ciências sociais, se imposta sob a forma de grille de leitura do conhecimento das classes médias, ou de outras classes, oferecido em arte, pode silenciar as melhores surpresas que um romance, poema, filme, peça de teatro, pintura, escultura etc. pode suplementar. No silenciamento da explosão de saber, a aplicação da teoria apenas ressalta um exemplo artístico – ou se quer legitimar multidisciplinarmente.

Simon Schwartzman: Nos meus trabalhos anteriores sobre o sistema político brasileiro, me preocupei muito mais com as divisões regionais e com o sistema institucional – sociedade de mercado, neopatrimonialismo – do que com a divisão de classes ou categorias sociais, ainda que, naturalmente, não ignorasse as diferenças entre elites, operários organizados, populações urbanas e rurais etc., que existem nos diversos contextos. Ao trabalhar, mais recentemente, sobre os temas de ciência, educação e das profissões, as diferenças entre grupos sociais com maior ou menor acesso aos diversos níveis educacionais são muito importantes, mas nunca tratei disto em termos de classe social.

Valter Silvério: Um olhar sobre a produção do grupo de acadêmicos e intelectuais negros, classificados pelos critérios de estratificação social como classe média negra, indicam, desde Du Bois, que eles se depararam com a rejeição enquanto uma dimensão objetiva do grupo branco. Por exemplo, as crianças negras de classe média em escolas maioritariamente brancas enfrentam obstáculos por parte da gestão escolar e dos professores brancos, que estão interessados em manter fronteiras raciais regressivas. Devido a esta discriminação, as crianças negras de classe média são forçadas a aprender como operar e ter sucesso no mundo branco dominante. E se partilham similaridades em termos de consumo com o grupo branco de classe média, as diferenças em termos de valores que orientam a ação social são marcantes, como sugere Patricia Hill Collins (2009)[5] em seu estudo sobre os valores sociais que orientavam a participação de jovens negros e brancos no movimento de 1968 nas universidades americanas.

Na sociedade brasileira contemporânea, as divergências sobre temas como ações afirmativas, racismo estrutural, lugar de fala, educação antirracista, identitarismo etc., podem ser melhor compreendidas se adotarmos como perspectiva de exame a classe média negra, considerando as fronteiras que os proponentes do colorismo, afrocentrismo e do multiculturalismo constroem em relação uns aos outros e nos conflitos no interior do sistema educacional. As divergências também se verificam nas comunidades religiosas (evangélica, católica e de matriz africana) e nas diferenças no enfrentamento das injustiças sociais a partir de distintas estratégias usadas internamente ao grupo negro, constituindo o “nós” e “eles” no ativismo negro.

3. Como você vê o protagonismo político desses grupos, especialmente, nas últimas duas décadas?

Edna Castro: A classe média sempre teve um papel importante no jogo político, por sua proximidade e submissão aos valores, orientações e privilégios das elites, e nesse plano defendeu aqueles ideais como seus. Aliada ao pensamento conservador, transitaram nas redes confessionais de perfil tradicional, em escolas que garantem a reprodução desses valores para seus filhos/as, ou na própria política partidária. Percebo uma parcela da classe média formada por profissionais liberais, pequenos e médios comerciantes, donos de pequenas e médias indústrias, funcionários públicos, de assalariados relativamente bem remunerados no setor privado e de outros setores. A classe média engrossou as marchas de tradição, família e propriedade em vários períodos da história brasileira recente. Entendo que a conformação ao pensamento conservador e o acesso a instituições que garantissem o mesmo padrão na reprodução de gerações, sempre esteve na base dos segmentos médios que aderiram às propostas de direita e extrema direita tanto no período da ditadura quanto no recente governo, quando ficaram bem mais claros os alinhamentos políticos e a adesão a narrativas extremistas. No entanto, é complexo falar da classe média e de segmentos que aderem mais ou menos aos privilégios que se realizam nos estratos altos em um país de extrema desigualdade. Por isso, a classe média contém a diversidade de perspectivas políticas, culturais, sociais etc. Assim, ela é formada também de segmentos bastante críticos e que resistiram aos movimentos políticos autoritários e têm tomado posições de rupturas políticas, formadora de opinião, produtora de conhecimento crítico e essa parte da classe média supostamente abriga um sem número de grupos orientados por padrões e alianças políticas, e de classe, bem diferentes. Refiro-me a inúmeros segmentos mobilizados em campos diversos, da arte à ciência e à religião, e que desempenharam papel crítico importante em vários períodos da história brasileira, e formam um eixo central do pensamento social brasileiro, com rupturas e questionamentos de valores, de práticas, de linguagens e, enfim, do modus operandi da própria classe média, das elites e da sociedade brasileira diante de seus maiores dilemas.

Silviano Santiago: No Brasil republicano, as classes médias não têm sido identificadas como constituintes de uma comunidade. Deixam melhor se identificar por um grupo familiar em destaque, ou pela aliança de grupos familiares no poder. Assim sendo, o protagonismo das classes médias tem sido apenas o considerado representativo, que se manifesta maciçamente pelo voto em eleição municipal, estadual e nacional. As classes médias não chegam, portanto, a constituírem um partido político majoritário. São, antes, massas de manobra do poder já instituído. Eis um dos motivos pelo qual o coup d’État tem oferecido pouca resistência no Brasil. O seu protagonismo é, pois, total e praticamente nulo, ou melhor, está sendo delegado pelo cidadão aos grupos familiares poderosos que têm, por sua vez, a ambição política de representar o capital nacional e o estrangeiro. A lista anual dos multimilionários brasileiros da revista Forbes informa, como diria Oswald de Andrade em manifesto. É por ambição autocentrada em poucos que os grupos familiares (representantes das classes médias) julgam exigente e lucrativo um protagonismo social, político e econômico na administração do Estado.

Nas últimas décadas surgiu uma exceção à regra. O protagonismo político das classes médias tem incorporado grupos de família necessitados, e se diversificado. Acolhe os grupos sociais que têm sido caracterizados como negligenciados na quase totalidade pelas políticas públicas e pelo capital privado. Daí a importância crescente, na atual discussão política e social, do interesse pelo grupo que foi identificado primeiramente por Caio Prado Jr. em 1942 – o dos homens livres na ordem escravocrata. Caio Prado prevê com pessimismo o sentido histórico do grupo na formação do Brasil moderno. Suas palavras são duras: “comprime-se [entre os senhores e os escravos] o número que vai avultando com o tempo, dos desclassificados, dos inúteis e inadaptados, indivíduos de ocupação mais ou menos incerta e aleatória ou sem ocupação alguma”. Ao ressaltar, no sentido da história das nações civilizadas, a falta de lugar[6] para o homem livre na ordem escravocrata, Caio Prado acena para um paradoxo perigoso: os desclassificados de ontem se avultam e se avultarão ainda mais amanhã. Indiretamente, Caio Prado aventa o potencial de luta por direitos dos homens livres e inadaptados, se considerados cidadãos. Essa luta ganha um sentido histórico anacrônico – busca um lugar político. Black lives matter – hoje o negro norte-americano grita nas ruas. Acede a um lugar próprio entre os antigos senhores e os escravizados, ou nos atuais grupos familiares no poder. Haja vista a atualidade (tardia) dos movimentos sociopolíticos dos povos originários e dos diaspóricos ex-escravizados no Brasil por um lugar ao sol do capital nacional e internacional. Na recente diversificação das classes médias, a noção de “família” (à la Rui Barbosa) curiosamente se politiza e passa a significar o legítimo pertencimento a um dos grupos sociais negligenciados, em ascensão.

Simon Schwartzman: De maneira bastante imprecisa, é possível falar em “classe média” para se referir à população de renda média que vive nos centros urbanos e que se sente excluída dos setores mais organizados da sociedade, sejam os sindicatos, os movimentos sociais, o alto funcionalismo, as profissões liberais organizadas, as redes assistencialistas e o empresariado capitalista. O que se observa é que este setor da sociedade tem vivido uma situação de grande incerteza, com aspirações que não se cumprem e frustrações que se repetem, levando a explosões ocasionais de protesto e voto consistentemente em oposição ao governo, e tem pouco apreço pelo sistema democrático enquanto tal, que é muito abstrato e pouco compreendido. No contexto político brasileiro mais recente, esta população tem se inclinado mais à direita do espectro político.

Valter Silvério: A classe média negra brasileira tem se utilizado das estratégias orientadas pelo Advocacy Coalition Framework, isto é, um modelo que permite analisar disputas que permeiam o processo decisório de políticas públicas, o qual nas últimas duas décadas passou a ser utilizado, em maior ou menor medida, por várias organizações do movimento negro espalhadas por todas as regiões do país, com impactos distintos na construção de evidências em torno do impacto de políticas públicas universalistas e color blind na manutenção das desigualdades. Em função de deslizamentos semânticos, tais estratégias recebem inúmeras denominações como, por exemplo, igualdade racial, equidade racial, educação antirracista etc. As principais organizações de advocacy no Brasil, composta por mulheres e homens negros, surgiram entre o final da década de 1980 e início de 1990.

O papel desenvolvido por estas organizações se constitui em uma forte evidência histórica da importância das classes médias em seu papel mediador no que diz respeito aos avanços ou retrocessos da política pública em diferentes dimensões da vida social. O caso brasileiro é exemplar para se compreender a importância das fronteiras simbólicas constituídas pela racialização da experiência negra no país. Durante todo o século XX, as organizações negras reivindicaram o acesso à educação como forma de mobilidade social. No século XXI a reivindicação permanece com a ampliação da necessidade de que todas as políticas públicas incorporem em sua elaboração e implementação os impactos da discriminação racial e do racismo.

4. Como você vê a relação das classes médias com as políticas públicas (educação, saúde, habitação, por exemplo)?

Edna Castro: O Brasil revelado nesse período recente de nossa história trouxe alguns esclarecimentos sobre a persistência de padrões conservadores e seus desdobramentos. Percebo, em geral, a classe média disposta a sustentar uma visão de mundo contrária às mudanças sociais. A desigualdade social se amplia terrivelmente no país, mas predominam os valores de distanciamento em relação ao outro – o pobre, o negro, o indígena, o camponês – que, no entanto, são parte de um mesmo processo de formação da nação. O Brasil é marcado pela justiça restrita, na qual não cabem todos os brasileiros. Os indicadores de mobilidade social são desastrosos ao apontarem forte reprodução intergeracional, ou seja, as condições baixas de escolaridade e renda dos pais determinam o futuro de seus filhos, situação que tende a se agravar sem políticas mais radicais de redução da desigualdade de renda, de educação, de habitação e de serviços. Filhos de pobres têm altíssima probabilidade de reproduzirem as mesmas condições dos pais, sem freio intergeracional. Esse circuito precisa ser quebrado para se ter outra projeção de futuro no país. A política da educação é fundamental para determinar a melhoria na redistribuição de renda e na mobilidade intergeracional. Mas a educação ainda é muito desigual e seus efeitos são reduzidos diante da estrutura complexa da desigualdade. Por isso, sua eficácia depende de ser acompanhada da geração de empregos de qualidade. É necessário pensar políticas mais eficientes de renda, de educação, de habitação e mobilidade para combater a desigualdade, a exemplo da valorização do salário mínimo ou de políticas que taxem os rendimentos do capital, os lucros e os dividendos e que, assim, reduza as impostos do consumo e taxas da renda do trabalho e dos salários. Enfim, a reforma tributária pode ter um largo alcance, ou ainda políticas distributivas com efeitos sobre a ampliação de chances para os filhos dos pobres poderem sair das faixas de baixa escolaridade. Mas a classe média talvez em sua maioria tenha receio de ver a ampliação de direitos como o de acesso à terra, ao emprego de qualidade, à universidade, aos bens e serviços de saúde e de transporte, e até à felicidade, enquanto direitos constitucionais que deveriam estar assegurados a todos/as.

Silviano Santiago: Como as classes médias são as naturalmente privilegiadas pelo sistema eleitoral brasileiro, suas reivindicações são relativamente bem contempladas e são ainda satisfeitas pelas políticas educacionais, sanitárias e habitacionais orientadas e movimentadas pelo capital privado. Nos três setores elencados, as políticas públicas primam por um papel inexistente ou absurdo nas relações com as classes historicamente negligenciadas. Os pleitos de melhoramento, ou de aperfeiçoamento em educação (Paulo Freire, por exemplo), saúde (SUS, por exemplo) e habitação (SNHIS, por exemplo) vieram de partidos políticos revolucionários e minoritários que, tão logo se aproximavam do poder nacional, criavam razões para que fossem alijados por atos de teor inconstitucional ou golpes de Estado. Nos dias democráticos de hoje, a ausência absurda de políticas públicas junto aos grupos sociais verdadeiramente necessitados, que buscam o acesso às classes médias (genealogicamente, os povos originários; os diaspóricos escravizados e livres; os diaspóricos mediterrâneos), gera demandas que se autoafirmam por valores culturais obrigatoriamente estranhos à colonização europeia em evidência na formação escolar do cidadão brasileiro.

Destaco dois dos valores em curso, nitidamente contrarrevolucionários na tradição iluminista: o de raça (defendido hoje pelos povos originários e pelos povos diaspóricos africanos) e o de religião (defendido hoje pelos evangélicos e pelos descendentes de africanos). Aos dois se somam duas questões finalmente desabotoadas: a de gênero, gender (machismo), e a de formação, bildung (eurocentrismo). Faltaria debater o aspecto complementar da administração neoliberal no Brasil: a questão da péssima qualidade dos serviços que estão sendo prestados pelas variadíssimas empresas de capital privado às classes médias. Quando o consumidor lutará por voz política?

Simon Schwartzman: Estes setores demandam fortemente os benefícios das políticas públicas, e o atendimento precário que recebem é um dos fatores que explicam a frustração que sentem e o comportamento político que manifestam. Essa frustração e ressentimento podem ser mais fortes do que as dos que vivem em situação de pobreza, que têm aspirações menores e podem se satisfazer com serviços públicos e benefícios mais simples e de menor qualidade. Mas o conceito de “classe média”, e de classes sociais em geral, não dá conta de alguns processos importantes que têm ocorrido no Brasil nos últimos anos. Um são as fortes clivagens regionais, que se tornaram evidentes na última eleição presidencial, na qual o Brasil se dividiu claramente entre regiões que apoiaram cada um dos candidatos, e que possivelmente contém ainda elementos dos antigos sistemas de participação e cooptação política de décadas atrás. O outro é o surgimento das questões identitárias, que trazem os temas de raça, gênero, religião e orientação sexual ao primeiro plano, fortemente relacionadas com questões geracionais e de localização no espaço urbano. Assim, embora a posição das pessoas no sistema de estratificação social seja importante, ele não se traduz diretamente em termos de classe social, e o conceito de classe média é insuficiente para entender o que vem ocorrendo.

Valter Silvério: As ações de várias organizações negras possibilitaram a incorporação do vocabulário jurídico-político dos temas privilegiados na agenda transnacional em relação à discriminação, ao racismo e ao feminismo negro (gênero) e, também, a emergência de uma gramática que interpela os entes federados a construírem agendas de criminalização do racismo, de mudanças curriculares no âmbito da educação, de atenção à saúde da população negra, de habitação, de reconhecimento das populações quilombolas e de desracialização da política de segurança pública. Em relação à qualidade das políticas públicas, ou mais precisamente a sua qualidade e oferta, é possível argumentar que há uma oposição entre o ideário das classes médias negras e brancas. Enquanto as primeiras propõem uma requalificação no sentido do reconhecimento dos diferentes públicos (grupos) que são objeto das políticas, as segundas não só não se identificam com aquela requalificação, como exercem a hegemonia no processo de tomada de decisão em relação aos critérios, recorrendo às fronteiras raciais regressivas, aqui representadas, por um lado, por uma visão Color-Blind dos fundamentos elementares da explicação sociológica e, por outro lado, apagando a agência criativa negra no questionamento e deslocamento dos mesmos.

Como resultado, vivemos, por um lado, uma tentativa de “desqualificação” e ou “subalternização” das contribuições seminais de intelectuais negros e negras que impactaram a teoria social após a Segunda Guerra Mundial e, por outro lado, a reafirmação da dualidade estruturante: tradição – povos sem história (africanos, negros, indígenas etc.) – e modernidade – a superioridade branca masculina ocidental.

Aí se localiza a oposição binária que impede tanto a atualização da contribuição sociológica para pensar o papel das classes médias contemporâneas no Brasil quanto permite a manutenção de fronteiras raciais regressivas que operam como obstáculos para o reconhecimento da contribuição da produção de intelectuais africanos, negras e negros para a compreensão dos desafios que atravessam a experiência de uma noção ampliada de humanidade que caracteriza o momento globalizado de nossa experiência societária.  


Notas

[1] DU BOIS, William. E. B. (1990 [1903]). The Souls of Black Folk. New York: Vintage Books/The Library of America.

[2] BARTH, Fredrik. (1969). Introduction. In: BARTH, Fredrik. (Ed.), Ethnic Groups and Boundaries: The Social Organization of Culture Difference. London: George Allen and Unwin.

[3] BLUMER, Herbet. (1958). Race prejudice as a sense of group position. Pacific Sociological Review, n. 1, v. 1, p. 3-7.

[4] BOBO, Lawrence & HUTCHINGS, Vincent. (1996). Perceptions of racial group competition: extending Blumer’s theory of group position to a multiracial social context. American Sociological Review, n. 6, v. 61, p. 951-972.

[5] COLLINS, Patricia Hill. (2009). Freedom Now! 1968 as a Turning Point for Black American Student Activism. In: BHAMBRA, Gurminder & DEMIR, Ipek (Ed.). 1968 in retrospect: history, theory, alterity. New York: Palgrave Macmillan.

[6] “‘Eu não tenho lugar’, deixou escrito na areia, sob seus pés, um jovem índio recém-casado, que se enforcou numa árvore.” [Washington Novaes, “A Saga perto do Fim: a questão indígena hoje”, O Estado de São Paulo, 19/4/2002].

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