Saneamento básico: o que a pandemia ensinou

Crise foi prova de fogo para as agências reguladoras de água e esgoto. Muitas delas não foram proativas, e falharam na fiscalização. Mas a proibição de corte de água mostrou respeito à dignidade humana, sobretudo às populações mais vulneráveis

Foto: Freepik/UFF
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O Ondas, parceiro editorial de Outras Palavras, produz semanalmente um boletim sobre o Direito à Água e ao Saneamento. Veja, na última edição: ‘Águas de Manaus’ produz cidadãos de segunda classe; ONDAS marca presença no Congresso da Assemae; Decreto de Lula no saneamento leva empresas municipais à Justiça e Sem alarde, Nunes abre mão de controle da Sabesp e viabiliza privatização.

Na última década, o número de países com arcabouço legal e regulatório para o setor de saneamento cresceu, e, da mesma forma, também o número de agências reguladoras executando essas funçõesi. Como parte da estrutura estatal, essas agências reguladoras possuem obrigações de fazer respeitar, promover e cumprir os direitos humanos, mais especificamente, garantir que suas políticas, práticas e ações estejam em conformidade com os princípios e o conteúdo dos direitos humanos à água e ao esgotamento sanitário (DHAES).

Os DHAES podem ser entendidos como uma afirmação da importância fundamental da água e do esgotamento sanitário para a dignidade humana. Esses direitos têm se tornado um importante veículo para as comunidades em todo o mundo reivindicarem a atenção para os déficits, as desigualdades e as injustiças percebidas no acesso a serviços que possuem implicações significativas para a saúde pública.

Considerando o contexto da pandemia da covid-19, os déficits em saneamento em todo o mundo tornaram-se mais patentes e prejudiciais àquelas comunidades e indivíduos em situação de vulnerabilidade. Ficou patente a essencialidade desses serviços para promover a higiene e proteger as populações, sobretudo aquelas em maiores condições de vulnerabilidade, da transmissão do vírus.

A habilidade dos Estados em gerenciar o risco, responder em curto e médio prazos, identificar áreas e comunidades em situação de vulnerabilidade maior foram testadas e têm sido avaliadas por pesquisadores em todo o mundo. Neste contexto, nós desenvolvemos uma pesquisa com o intuito de observar a presença, ou a ausência, do conteúdo dos direitos humanos nas respostas institucionais das agências reguladoras estatais brasileiras do setor de saneamento durante a pandemia da covid-19ii. Como um dos resultados desse trabalho, obtivemos uma análise do comportamento das agências durante os primeiros dias da pandemia, frente a outras instituições do Estado.

Agências proativas ou reativas?

Em comparação com outras instituições públicas, como os governos de estado, o ministério público e as assembleias legislativas, as agências reguladoras se comportaram de forma reativa, ou seja, aguardaram as primeiras reações das demais instituições para publicar suas próprias respostas. As primeiras respostas identificadas foram, em sua maioria, dos governos de estado, por exemplo o governo do Ceará, que publicou seu primeiro documento relativo à pandemia no dia 16 de março de 2020, uma declaração de emergência em saúde pública, cinco dias depois da declaração oficial da Organização Mundial de Saúde (OMS). A agência reguladora do saneamento do Estado do Ceará, a ARCE, publicou sua primeira resposta apenas no dia 8 de abril, 23 dias após. O exemplo do Estado do Ceará é seguido por demais estados brasileiros, como Amapá, Roraima e Maranhão. No geral, as respostas regulatórias à pandemia da covid-19 demoraram, no mínimo, duas semanas a mais para serem publicadas quando comparadas às instituições mais proativas.

Como as agências reguladoras de saneamento desempenham um papel fundamental na manutenção da saúde pública e na garantia do acesso a água potável e saneamento básico para a população, seria crucial que atuassem de forma proativa.

Além disso, agir proativamente envolve a adaptação às demandas emergentes da pandemia, como o fornecimento de água potável para hospitais, centros de tratamento e áreas de isolamento. As agências reguladoras também desempenham um papel essencial na supervisão das prestadoras de serviços, assegurando que estejam adotando medidas adequadas para proteger os trabalhadores e a comunidade durante a crise. A atuação proativa das agências reguladoras de saneamento teria sido crucial para garantir a continuidade dos serviços essenciais, preservar a saúde pública e contribuir para a superação da pandemia da covid-19 de forma mais eficaz e segura.

Conteúdo das respostas institucionais

Em relação ao conteúdo, algumas agências reguladoras publicaram medidas focadas na acessibilidade econômica dos cidadãos e na sustentabilidade financeira dos prestadores de serviço. Como exemplo, as agências de Alagoas, ARSAL, e de Minas Gerais, ARSAE, incluíram, em suas primeiras respostas, medidas para facilitar ou postergar o pagamento de faturas em atraso, evitando assim o bloqueio do fornecimento de serviços. Em paralelo, medidas abonando o pagamento de dívidas das prestadoras de serviços de saneamento, ou aumentando seu prazo de pagamento, também foram publicadas nas primeiras respostas. Como exemplo, as agências de São Paulo e de Santa Catarina, que estipularam prazos estendidos para o pagamento de valores devidos às prestadoras de serviços.

Sob a ótica dos direitos humanos, tais respostas podem ser identificadas como medidas alinhadas a seus princípios, apesar de a visão acerca da sustentabilidade estar atrelada apenas ao viés econômico, deixando de lado a sustentabilidade ambiental e social. A sustentabilidade na perspectiva dos direitos humanos surge como uma abordagem interdisciplinar que busca conciliar o desenvolvimento econômico e social com a proteção do meio ambiente e a promoção dos direitos fundamentais dos indivíduos. Essa concepção tem suas origens no Relatório de Brundtland, de 1987, que definiu o desenvolvimento sustentável como aquele capaz de atender às necessidades presentes sem comprometer a capacidade das gerações futuras de suprir suas próprias necessidades. A partir desse marco, o conceito de sustentabilidade dentro dos direitos humanos ganhou relevância nas esferas acadêmica e política, sendo amplamente aplicado em políticas públicas, legislações e acordos internacionais.

Sobre os demais princípios e conteúdo dos DHAES – responsabilização, igualdade e não discriminação, sustentabilidade, universalidade e participação e acesso à informação – foi observada uma distribuição desigual da presença desses conteúdos dentre as respostas das agências. As menções explícitas aos princípios da igualdade e não discriminação, sustentabilidade (através da promulgação de apoio financeiro e econômico aos prestadores de serviços), participação e acesso à informação (sobretudo acesso à informação) são mais frequentes do que a responsabilização e a universalidade.

Foi possível observar, da mesma forma, que a distribuição dos critérios normativos – aceitabilidade, privacidade e dignidade, acessibilidade econômica, acessibilidade, disponibilidade e qualidade e segurança – também é desigual. De um lado, quase 55% das menções explícitas de todos os critérios normativos aplicam-se a medidas de acessibilidade (por exemplo, proibição de aumentos de tarifas e adiamento e cancelamento de pagamentos de tarifas). A disponibilidade, a qualidade, a segurança e a acessibilidade dos serviços foram mencionadas com menos frequência. No entanto, a aceitabilidade, a privacidade e a dignidade não foram mencionadas em nenhuma resposta publicada. É importante notar que a aceitabilidade tem implicações para a dignidade e a privacidade, que são especialmente relevantes para o direito humano ao esgotamento sanitário e à higiene associada.

O cancelamento do corte do fornecimento de água foi uma medida muito identificada nas respostas. Todas as agências reguladoras estudadas adotaram tal medida. A proibição de corte no fornecimento de água durante a pandemia da covid-19 no Brasil representa um marco crucial na defesa dos direitos humanos à água e ao esgotamento sanitário. Em um momento em que a higiene e o acesso à água potável se tornaram medidas essenciais para conter a disseminação do vírus, a proibição do corte de água garantiu que as famílias mais vulneráveis não fossem privadas desse recurso vital. Isso não apenas preservou a saúde pública, mas também respeitou os princípios fundamentais dos direitos humanos, que reconhecem a água como um direito inalienável e a garantia de um ambiente saudável como um imperativo.

Além disso, o cancelamento do corte de fornecimento de água durante a pandemia demonstrou o compromisso do Brasil em enfrentar as desigualdades sociais e econômicas, uma vez que as populações mais marginalizadas são as que mais sofrem com a falta de acesso à água limpa e saneamento básico. Ao assegurar a continuidade desse serviço, o país tomou medidas importantes para proteger o bem-estar de seus cidadãos e promover um ambiente propício para a dignidade humana, em linha com os princípios fundamentais dos direitos humanos à água e ao esgotamento sanitário.

Ações e reações discrepantes

Apesar de identificarmos ações e comportamentos em comum entre as agências durante a pandemia, estas agiram de formas razoavelmente discrepantes. Enquanto umas publicavam quantidades significativas de respostas à pandemia, como exemplo a ARSESP de São Paulo, a ARSAE de Minas Gerais e a ADASA do Distrito Federal, outras publicaram o mínimo, como a ARSEP do Rio Grande do Norte, a ARSEPAM do Amazonas e a AGR, de Goiás. E a diferença não foi identificada apenas na quantidade de publicações, mas também na temporalidade das mesmas e no conteúdo.

As primeiras agências citadas, além de um maior número de publicações, também tiveram comportamento mais proativo entre as demais, emitindo respostas com mais rapidez e conteúdo mais alinhado aos princípios dos direitos humanos, como exemplo a agência do Distrito Federal, que publicou respostas acerca da qualidade da água distribuída e da sua disponibilidade aos cidadãos atendidos. Ou a agência mineira que, em conjunto com a prestadora de serviços, disponibilizou pontos públicos de lavagem das mãos em regiões estratégicas da capital mineira.

Lacunas observadas

As ações das agências reguladoras durante a pandemia da covid-19 foram frequentemente alvo de críticas significativas. Foi possível identificar lacunas como o fato de as agências não conseguirem exercer um controle efetivo sobre as prestadoras de serviços públicos, resultando em uma falta de fiscalização adequada das medidas adotadas pelas empresas.

Além disso, as agências reguladoras não foram proativas na defesa dos direitos dos consumidores, não exigindo transparência suficiente das prestadoras quanto às suas ações durante a pandemia. A falta de comunicação clara e eficaz sobre os direitos dos cidadãos em relação ao fornecimento de água e esgoto deixou muitos sem saberem a quem recorrer em busca de ajuda. Essas falhas no papel das agências reguladoras expuseram deficiências no sistema de regulamentação do saneamento básico no Brasil, que precisa ser aprimorado para garantir o acesso equitativo a serviços essenciais durante crises, como a pandemia da covid-19, bem como em situações de normalidade.

O aprimoramento das práticas regulatórias no setor de saneamento básico deve levar em consideração as lições aprendidas durante a pandemia da covid-19 e buscar a incorporação das melhores práticas internacionais em matéria de DHAES. A efetiva implementação desses direitos requer o compromisso contínuo dos entes reguladores, bem como a cooperação e o diálogo entre todos os atores envolvidos na prestação e regulação dos serviços de saneamento básico.

No longo prazo, o papel dos entes reguladores do saneamento na implementação dos DHAES é vital para garantir a sustentabilidade e resiliência do setor e promover a justiça social e ambiental. Para alcançar esses objetivos, é fundamental que os entes reguladores continuem a trabalhar em prol da universalização, equidade e não-discriminação na prestação dos serviços de saneamento básico, assegurando o respeito aos direitos humanos.


i Ver em https://iwa-network.org/publications/the-lisbon-charter/

ii Projeto realizado como tese de doutorado de Davi Madureira Victral com orientação do Professor Leo Heller no Programa de Pós-Graduação em Saneamento, Meio Ambiente e Recursos Hídricos da UFMG.

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