WikiFavelas: A quebrada e sua galáxia midiática

No Dicionário Marielle Franco, a importância das mídias comunitárias como forma de difundir o orgulho periférico e rebater a criminalização — como no caso do boné CPX de Lula. No Facebook, páginas e comentários se tornam os novos jornais de bairro

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Um simples boné com uma sigla que faz referência à palavra complexo, forma como o conjunto de favelas do Alemão é conhecido, virou arma de Bolsonaro contra Lula na disputa eleitoral deste ano. Como explicou em sua rede social a jornalista, doutoranda em comunicação e comunicadora popular, Gizelle Martins: “O termo ‘complexo’ foi inventado pela secretaria de segurança pública no final dos anos 1990 para 2000. Foi feito para estigmatizar a favela. No Alemão, os moradores ressignificaram o termo para a identificação da própria favela. Na Maré, a gente afirma que é Conjunto de Favelas. E está tudo bem! Houve uma ressignificação por parte dos moradores”.

Toda polêmica em torno do boné começou com a visita de Lula ao Complexo no dia 12 de outubro. Essa atividade foi articulada pelo ativista, líder comunitário e comunicador popular Rene Silva, em conjunto com outros mobilizadores de favelas. Antes da caminhada pela Estrada do Itararé, Lula se reuniu com o projeto Voz das Comunidades e ganhou o boné CPX das mãos de Camila Moradia, ativista e fundadora do Mulheres em Ação do Alemão. Logo depois, imagens do presidente com o acessório começaram a viralizar nas redes sociais e foram usadas por apoiadores do Presidente Jair Bolsonaro para divulgar desinformação. Como explica a jornalista e comunicadora popular Tatiana Lima: “​​na construção das fake news, a extrema direita tentou emplacar a teoria de que CPX, ao invés de complexo, representaria o termo cupinxa, que significa, na grafia correta da palavra, com ch (cupincha), ‘um indivíduo com quem se tem amizade, companheirismo, um camarada’, e que o boné representava uma ligação entre Lula, os moradores do Complexo do Alemão e o tráfico de drogas. Trata-se de uma prática de criminalização dos trabalhadores, da pobreza, de cunho racista — uma vez que majoritariamente a população das favelas é negra — conforme criticou a jornalista da GloboNews, Flávia Oliveira”.

Os moradores de favelas que, há décadas, seguem resistindo e ressignificando os símbolos usados para estigmatizar seus territórios de moradia, seus corpos e suas vidas cotidianas, buscando escapar da espiral da criminalização. A disputa por narrativas fica patente no caso da sigla CPX, lembrando que o termo complexo surge de uma tentativa da secretaria de segurança de estigmatizar a favela ao identificá-la com o termo usado para complexos prisionais. Porém, ao ser ressignificado, os moradores passam a usá-lo com orgulho. Na campanha eleitoral foi usado como arma por Bolsonaro e seus apoiadores para criminalizar Lula e os moradores da favela. No entanto, durante o segundo turno, mais uma vez ele é ressignificado, sendo usado por artistas, políticos e, principalmente, moradores de favelas para manifestar o voto em Lula e apoio à luta das favelas. Como bem resume Tatiana Lima: “o boné se tornou um símbolo de contranarrativa, resistência e campanha contra o racismo e a estigmatização da favela como lugar de bandido”.

Usando esse símbolo de contranarrativa, Rene Silva encontrou Lula minutos depois da divulgação do resultado do segundo turno e ouviu dele a promessa de voltar ao Complexo agora como presidente da república eleito pela terceira vez: “Voltarei ao Complexo do Alemão como presidente da República para agradecer a vocês, tá? Favela não tem bandido, tem gente trabalhadora”. As falas não apenas de Lula, mas de todas as lideranças e coletivos envolvidos no processo repercutiram amplamente na mídia.

O caso do boné do CPX nos faz pensar em questões muito delicadas sobre criminalização da pobreza. Mas também evidencia a importância de criarmos espaços para que as favelas – com sua diversidade, sua potência, sua cultura e estética, sua fé, sua forma de organizar a vida e pensar o mundo – sejam melhor representadas na cena pública. Precisamos de espaços para que favelados e faveladas contem suas histórias, apresentem o seu mundo sem a mediação de terceiros, deslocando, assim, a fala sobre a favela e a ideia de uma favela como objeto de pesquisa para um contexto em que as favelas não mais se calam e podem falar por si só.

Há pouco mais de três anos, o Dicionário de Favelas Marielle Franco foi lançado pela Fundação Oswaldo Cruz. Um dos motivadores para a construção da plataforma era a enorme dificuldade para encontrar conteúdos sobre favelas e periferias que fugissem da lógica criminalizante que a grande mídia e os meios de comunicação hegemônicos adotam ao falar destes territórios. Veja bem: se você faz uma breve pesquisa no Google sobre Vila Kennedy, uma favela na zona oeste da cidade do Rio de Janeiro, o que você encontra são notícias que vinculam a favela à operações policiais, morte, tráfico de drogas, conflitos armados… Antes mesmo de ter o direito de ter sua história contada, antes mesmo de sabermos como o território se constitui, qual sua cartografia, como é o mapa de tal favela: mortes, violência, delitos… É assim não apenas com a Vila Kennedy mas, com quase toda favela no Brasil.

Os grandes veículos também reforçam essa racionalidade criminalizante ao falarem, por exemplo, que o Complexo de Favelas da Maré é “Bunker de Bandido” ou quando outros grandes veículos abrem espaço para políticos dizerem que “as mulheres de favela são fábricas de marginais e, portanto, deveriam ser esterilizadas como política pública para reduzir a criminalidade”. As falas podiam ser do século passado, proferidas pelos expoentes positivistas como Cesare Lombroso, Enrico Ferri ou Rafaèlle Garófalo. Mas não são. Esse discurso nos habita, nos atravessa e constitui uma certa ideia de favela que circula o imaginário popular hoje.

Mas… como construir outros caminhos? Como fazer circular outras vozes? Outras histórias? Outras versões? Como mostrar que o que constrói esse discurso de favelas como reduto de criminalidade e violência são vozes fortemente atravessadas pelo racismo e pelo colonialismo?

Na wikifavelas.com.br é possível encontrar outros saberes sobre as favelas. Ali, por exemplo, você pode conferir não apenas sobre a favela da Vila Kennedy – sua história, memórias de lutas e afins – mas também de outras quase 100 favelas do Rio de Janeiro e favelas de São Paulo, Espírito Santo, Minas Gerais, Distrito Federal, Ceará, Amazonas, Pernambuco, Paraíba, Pará, Rio Grande do Norte, Bahia e também de favelas internacionais, da Argentina, México, Peru, Uruguai e África do Sul.

O tema de Comunicação em Favelas é importantíssimo e tem mobilizado não apenas coletivos, lideranças e movimentos sociais, como pesquisadores e pesquisadoras. Pablo Nunes, doutor em Ciência Política pelo Instituto de Estudos Sociais e Políticos (IESP-UERJ) e coordenador adjunto do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania da (CESeC), é um dos pesquisadores que investiga questões no campo dos direitos humanos, segurança pública, policiamento e luta antirracista. Para ler mais sobre o tema, indicamos um no verbete: “Comunicação e favelas: ontem, hoje e perspectivas para o amanhã”, escrito por Pablo Nunes. (Introdução: Equipe do Dicionário de Favelas Marielle Franco)

Comunicação e favelas: ontem, hoje e perspectivas para o amanhã

Escrever em 2022 sobre como favelas e comunidades aparecem nos meios de comunicação, nas falas cotidianas, nas trocas de mensagens e nos posts de redes sociais é uma tarefa inglória. Em primeiro lugar, porque o ano está marcado desde o seu início pela corrida eleitoral, eivada das práticas mais abjetas de espalhamento de mentiras e construção das chamadas “narrativas” que nada mais são do que uma realidade paralela. Por outro lado, o fato de que os meios de comunicação tradicionais assistiram uma tímida mudança no ambiente de concorrência, não significou, ao menos na percepção mais generalizada, um aumento de temas e, principalmente, de atores ouvidos nas coberturas jornalísticas cotidianas. É bem verdade que esses desafios, de maneiras distintas, já se impunham no cenário comunicacional brasileiro. Mas se torna cada vez mais difícil de se enxergar usos benéficos das formas de comunicação atuais para a vida nas favelas e periferias.

O cenário informacional mudou drasticamente nas últimas décadas. Os séculos em que a impressão reinou como suporte principal de circulação das informações cristalizaram a figura do controlador do que seria ou não publicado. A invenção de Gutenberg no século XV significou um avanço indiscutível no número de pessoas atingidas pelos livros, folhetos e jornais produzidos na época, mas também significou o surgimento de controladores do que poderia ser publicado ou não.

A história é antiga, mas importante para compreender o mundo moderno. Pelo menos nas suas primeiras décadas. A lógica de controle do acesso de quem e do que aparecerá na imprensa se manteve com a massificação dos veículos. Jornais, rádios e TVs invadiram os lares das famílias criando um sistema de informação de massa. A expansão do alcance da imprensa tradicional, apesar de ter rompido os limites do público consumidor, que antes era restrito a classe burguesa, ainda mantinha concentrado o controle do que era produzido. A ideia de uma comunicação de “poucos para muitos” se mantém até hoje como um fato inescapável do ponto de vista da produção e circulação de informações.

Essa é a história oficial. Ocorre que longe dos grupos do poder, em periferias e entre minorias não representadas nos veículos tradicionais, surgiram formas alternativas de produzir, circular e consumir informações. O caso das favelas cariocas pode ser tomado como exemplo.

Pelo menos desde a década de 1980, diversos veículos comunitários surgiram no Rio de Janeiro. O jornal União Maré, de 1982, foi um marco na história do complexo de favelas da zona norte, e a primeira experiência de produção de informações por moradores para moradores (NASCIMENTO, 2018). Foi apenas o início. Anos mais tarde surgiram os jornais O Cidadão e, mais recentemente, o Maré de Notícias, que permanece até hoje.

Muitos desses jornais e rádios comunitárias se incluíram celeremente no ambiente digital. Já no começo dos anos 2000, diversas organizações e projetos sociais de favelas, escolas de samba e agências de notícias populares, se inseriram nos meios digitais a partir de websites, rádios online e presença em fóruns e blogs (VALLADARES, 2005).

Hoje, em um mundo onde as informações são consumidas basicamente por meio das redes sociais, maneiras criativas de utilização dessas ferramentas permitiram com que novas formas de comunicação surgissem. As páginas hiperlocais de Facebook são uma das expressões desse tipo de uso inventivo das mídias controladas por grandes corporações. A ideia de transformar páginas (que originalmente foram desenhadas para serem veículos de marcas e empresas) em pequenos jornais de bairro, permitiu com que iniciativas importantes surgissem nos últimos anos.

Hoje, no Rio de Janeiro, contam-se às centenas o número de páginas no Facebook dedicadas a bairros dos municípios fluminenses. Feitas por moradores e para moradores, esses canais se dedicam, de maneira geral, aos seguintes temas: prestação de serviços (vacinação, vagas de emprego, inscrições em cursos etc.); promoções de comércios locais; casos de roubos e furtos de carros; tiroteios e disparos; operações policiais; violência contra a mulher; e outros temas variados.

Um dos aspectos mais interessantes é o engajamento do público consumidor com a postagem publicada pela página. Diferente do modelo tradicional de comunicação de “poucos para muitos”, nas mídias sociais pela primeira vez foi possível construir uma comunicação de “muitos para muitos”, sendo a página de bairro muitas vezes apenas uma plataforma de reunião dos moradores interessados no que acontece na região. Não é raro encontrar postagens onde os comentários são mais importantes que a postagem em si. Os tipos de publicações mais frequentes, que demonstram esse uso de maneira exemplar, são os chamados publicados em páginas dedicadas à favelas. O “fala morador” normalmente é compartilhado em momentos de operações policiais violentas no território. Ao convidar os moradores a trazerem informações, há um engajamento dos usuários em identificar e produzir um quadro amplo e diversificado do que está acontecendo naquele momento em diversos pontos da favela.

Esse tipo de engajamento se dá de maneira mais frequente quando o assunto é violência urbana. Seja identificando áreas de trocas de tiro, ou ruas onde assaltos têm sido recorrentes, ou até mesmo o compartilhamento de fotos de carros roubados com intuito de encontrar informações sobre o possível paradeiro. A postura ativa de “autoproteção comunitária” se dá no vazio do Estado em sua tarefa de garantir segurança e fazer valer a lei em áreas periféricas.

A descrença no Estado também alimenta um dos efeitos mais preocupantes nesse tipo de comunicação. Em 2017 um casal foi linchado em Campos (Rio de Janeiro) por conta de um boato que circulava na página da região dando conta de que estavam à procura de crianças para rituais de magia. Um caso de 2014, relembrado pela novela “Travessia”, da Rede Globo, chocou a população de Santos (São Paulo). Fabiane foi acusada de sequestrar crianças e foi linchada até a morte. A família tenta responsabilizar o Facebook na justiça pela morte de Fabiane.

Em um contexto em que o pior das mídias sociais está no foco das atenções da população, governantes e academia, pensar em usos positivos da comunicação pelas ferramentas digitais parece indicar uma certa inocência ou incapacidade de leitura do contexto. Acredito que é justamente nesses momentos em que outros olhares que vão em direção contrária ao consenso estabelecido são mais necessários. Desinformação, manipulação e até mesmo crimes graves são parte dos efeitos que o uso de mídias sociais trouxeram para o cotidiano de todos nós. Mas, em meio a esse caos informacional, ainda resistem iniciativas criativas e positivas que desafiam o esquema tradicional de controle dos conteúdos, multiplicando os emissores e colocando em foco os problemas e potencialidades das favelas.

O ecossistema perene e resistente de comunicação local, que se inicia nos primeiros jornais de bairro, passando pelas rádios e desaguando nas mídias sociais, impôs uma nova agenda de interesses e questões pautadas nas conversas e debates locais. O que é definido como “interesse público” passou a ser cada vez mais permeado pelas preocupações e temas de interesse dos territórios de favelas. Esse movimento não dá mostras de recuo, mas o desenvolvimento das plataformas digitais, suas possíveis regulações e avanços tecnológicos podem impor novos desafios. A história permite dizer que, independente dos obstáculos, novas formas disruptivas de comunicação comunitária surgirão.

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