Brasil, decifra-me ou te devoro

Um mesário exibe o salmo bíblico da camiseta. Uma babá é refém da boa-vontade dos patrões para votar. No domingo, contradições, esperanças e tensões escancaradas no cotidiano brasileiro — e a urgência de uma virada na Educação e Cultura

Imagem: Cândido Portinari
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Domingo, 30 de outubro de 2022, segundo turno das eleições no país, um dia histórico para a nossa frágil democracia brasileira, fui votar, logo pela manhã, em meio ao contexto geral de intolerância, violência e ódio que tomou conta do país nos últimos tempos, junto à esperança de que o resultado da eleição pudesse indicar outros rumos.

Na sala de votação havia um mesário que auxiliava na identificação dos eleitores, que vestia uma camiseta com um salmo bíblico e postava-se de modo a que todos pudessem visualizar a mensagem ali estampada: “Conhecereis a verdade e a verdade vos libertará” (João, 8:32), o que me pareceu uma forma explícita de aproveitar a oportunidade da eleição (manifestação pública) para afirmar um credo religioso (que é pessoal, portanto, de natureza privada, mesmo sendo legítima em qualquer ambiente não público), além de sub-repticiamente vincular-se a um determinado candidato que faz uso político da religião, no caso, o atual presidente do país.

Após cumprir meu dever de eleitora, passei pelo mercado do bairro e na fila do caixa, à minha frente, havia uma moça com duas crianças pequenas, uma bebê no carrinho e outro, um pouco maior e eu; ao interagir com os três (pensando ser ela, a mãe das crianças, tal era a afetividade entre eles), fui informada que era a babá e continuando sua ação educadora com as crianças, ora atendia a bebê no carrinho, ora postava áudio pelo celular para a avó deles, momento em que a criança maior pergunta para a avó no áudio: “Vovó, em quem você vai votar hoje, no Lula ou no Bolsonaro?” ao que a babá prontamente respondeu: “No 22, claro!”.

Passei a dialogar com a babá sobre quanto deve ser difícil para ela vir ao mercado, às 11h da manhã, em um domingo, dia de eleição e, ao mesmo tempo, ter a responsabilidade de cuidar de duas crianças pequenas. Perguntei-lhe então sobre os pais das crianças, ao que ela respondeu: “Estão dormindo… fazer, o quê?… Preciso trabalhar!” Após engolir a seco, continuei a perguntar: “E você não vai votar?”, tendo como resposta que isso só acontecerá após ela fazer o almoço, dar almoço para as crianças, lavar a louça e, com sorte, chegar a tempo na escola, em condições de exercer esse direito.

O que os dois sinais – do salmo bíblico ostentado na camiseta do mesário na sala de votação e da babá que exercia multitarefas no mercado – revelam sobre o nosso Brasil profundo e o papel da educação e da cultura, especialmente em um domingo histórico, destinado a eleger o mandatário da nação e governadores de estado, num cenário que se presencia formas inusitadas de exercício da política (ou da antipolítica) e os cidadãos brasileiros têm a possibilidade de escolher entre dois projetos distintos: a civilização e os direitos ou a continuidade da barbárie, traduzida em golpes sucessivos, circunscritos “ao jogo dentro das quatro linhas da Constituição”, com o rompimento de seus marcos e a deterioração da democracia por dentro dela mesma?

No primeiro caso, o uso e a colocação na ordem do dia da mensagem de natureza religiosa (que é de domínio privado e que serve para explicar o mundo e alimentar crenças pessoais), trazidos à esfera pública (a sala de votação) em um Estado constitucionalmente laico, tal como assistimos em infinitas ações por parte do atual Presidente da República, a caminho da construção de um Estado Teocrático, parece autorizar simbolicamente os “cidadãos de bem” a reproduzirem o mesmo modelo – de forma que se o Presidente da República pode se valer politicamente da religião (ou de religiões), por que razão o mesário da eleição também não poderia? Qual o problema?

Já no segundo caso, da babá multitarefas no mercado, invisibilizada na sua condição de sujeito de direitos, fica escancarada a herança desigual, escravista, patriarcal e sexista que marca a cultura brasileira, naturalizando, no ano de 2022, a condição subcidadã a qual está submetida parcela considerável e crescente da população brasileira que não só passa longe de ter consciência dessa situação, como incorpora a forma de pensar dos “senhores”, antes do engenho, na economia agrária, agora atualizada, na sociedade neo/ultraliberal pelo sujeito-empresa/empreendedor de si mesmo. Uma sociedade dos donos do dinheiro, que ao mesmo tempo dominam, ostentam, mandam, desmandam e que ainda dormem o sono dos justos. Dessa forma, como objeto dos patrões, a babá se despe da sua condição humana, se confunde com os demais objetos inanimados da casa e também com o projeto de vida deles: “É 22, claro!”

Os dois sinais nos impelem a pensar nas naturalizações e nas contradições que o país atravessa e no papel da educação e da cultura como direito (que deveria ser para todos) oferecido de forma parcial e desigual à maioria dos cidadãos brasileiros.

Após a eleição histórica de 30 de outubro de 2022, dia entrecruzado de tensões e de esperanças, parece oportuno perguntar: quais valores como sociedade desejamos construir, no limiar desses novos tempos?

A educação traz, na sua essência, a disputa de valores que se alinham a ideais que se deseja construir como sociedade e a cultura, no sentido pleno, contribui para a potencialidade humana, por diferentes linguagens capazes de transcender a realidade do dia a dia. Nesses tempos difíceis que atravessamos e na emergência de um novo e imprescindível governo, fruto de um arco amplo de alianças (condição necessária para o enfrentamento da situação política criada no país), que venha a consolidar processos democráticos não binários na sociedade passa, inevitavelmente, pelo fortalecimento dessas duas áreas estratégicas e de ações que venha a mitigar a chaga da desigualdade social que persegue a sociedade brasileira, desde o processo de colonização.

Especialmente, a explícita distinção entre as esferas do público e do privado e sobretudo, a afirmação dos valores da emancipação, da solidariedade, da cooperação, da equidade e da justiça social, por meio do exercício da participação e da problematização crítica sobre as raízes dos problemas que levaram-nos a chegar à condição que chegamos, vislumbrando as investidas que ainda estão por vir, pois sempre que se avizinham governos democráticos nesse diverso e multifacetado país, forças poderosas se apresentam prontamente para fazer retroceder conquistas, direitos e manter privilégios.

Ouvir os sinais que o cotidiano nos revela e conseguir decifrá-los, assim como a metáfora grega da esfinge, parece ser urgente e necessário, para não correr o risco de ser devorado por ela.

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