Brasil e China, chave para a colaboração Sul-Sul

Volta de Lula traz a chance de pensar muito além da pauta comercial – em que Brasil atua como exportador primário. Tecnologia, nova arquitetura financeira, infraestrutura e integração latino-americana são áreas que podem se expandir de imediato

Em 2004, os presidentes do Brasil e da China, Lula e Hu Jintao, firmaram uma série de acordos de colaboração
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O governo Bolsonaro vai deixar uma herança extremamente complicada para o presidente eleito, Lula, a partir de 2023: crescimento da insegurança alimentar, desemprego, endividamento, desindustrialização e, no plano externo, um desmonte de nossa política externa. Caberá à diplomacia sob Lula retomar uma estratégia de inserção internacional convergente com os objetivos de retomada de um projeto nacional de desenvolvimento. Nesse sentido, a China, como maior parceiro comercial do Brasil, tem um lugar especial.

Já durante a Era Lulista (2003-16), as relações entre China e Brasil foram alçadas a outro patamar. Em 2004 foi criada a Comissão Sino-Brasileira de Alto Nível de Concertação e Cooperação (COSBAN) e em 2009 os chineses se tornaram os principais parceiros comerciais brasileiros.

Quando Xi Jinping visitou Dilma Rousseff em 2014, foram firmados 56 acordos. Acordos, cooperação e investimentos vêm sendo rapidamente incrementados bilateralmente. Ademais, os Planos de Ação Conjunta (PAC 2010-2014 e 2015-2021), a elevação da Parceria Estratégica, ensejada em 1993, para Parceria Estratégica Global, em 2012, e a instituição do Plano Decenal de Cooperação (2012-2021) aprofundaram as relações. 

Além disso, o incremento das relações sino-brasileiras tem ocorrido em âmbito multilateral. O estabelecimento do BASIC e a criação do BRICS são ilustrativos – com a criação do Novo Banco de Desenvolvimento (NDB) e do Arranjo Contingente de Reservas (ACR). O fluxo comercial passou de US$ 4,4 bilhões em 2002 para quase US$ 68 bilhões quando da derrubada de Dilma. Apesar da diplomacia errática de Bolsonaro, em 2021 o comércio totalizou US$ 135 bilhões – responsável por US$ 40 bilhões de superávit ou quase dois terços do total de US$ 61 bilhões. Aliás, em superávit apenas dos últimos cincos anos, o mercado chinês nos rendeu nada menos que US$ 150 bilhões.

Cabe um parênteses: durante o governo Bolsonaro não se rompeu apenas com a diplomacia lulista, mas sim com padrões e princípios históricos do Itamaraty, produzindo as mais grotescas páginas de nossa política externa. Aliás, no caso das relações com a China é emblemático, quando o próprio chanceler Ernesto Araújo classificou a pandemia como “comunavírus” – enquanto a família Bolsonaro e sua claque estimulavam rusgas com o nosso parceiro asiático. A situação só não piorou em função da atuação de grupos de pressão (agronegócio, industriais, intelectuais, etc.). E porque a China conduz sua diplomacia com pragmatismo – inclusive intensificando a parceria através das unidades subnacionais da federação. 

O avanço do comércio sino-brasileiro e os nossos superávits não devem ocultar o processo estrutural tortuoso de desindustrialização pelo qual o Brasil vem passando. Atualmente, cerca de quatro quintos de nossas exportações para a China são constituídas por produtos primários, sobretudo soja, petróleo e minério de ferro. Embora o setor primário brasileiro tenha considerável efeito encadeador na indústria e na inovação, é evidente que o país precisa avançar em complexidade econômica. Vejamos a problemática: desde os anos 1980 vem declinando a participação da indústria no PIB brasileiro e, entre 1995 e 2020, saímos da 25ª posição no ranking da complexidade econômica para a 60ª – enquanto a China passou da 46ª para 17ª. Ou seja, não somos dependentes da China, mas das commodities. E a China é uma variável geoeconômica inexorável.

Nesse sentido, é imperativo que o Brasil trace uma estratégia para lidar com a China que seja capaz de impulsionar nosso projeto nacional. Tudo indica que voltaremos a ter uma diplomacia ativa e altiva, ao invés de ficar com retóricas toscas à la “ameaça chinesa” ou “imperialismo”. Precisamos, portanto, definir o lugar da China numa abrangente política de ICT (indústria, comércio e tecnologia) – inclusive extraindo o melhor da competição entre EUA e China. Para tanto, não é preciso inventar a roda, basta reeditar ações que a própria China praticou com seus parceiros. 

Ou seja, compromissos dos investimentos estrangeiros (chineses) no Brasil, cobrando desde joint ventures a transferências tecnológicas. Vamos a alguns exemplos:

  • Precisamos urgentemente de um grande programa de obras públicas. A China tem capacidade de investimento e expertise em engenharia. O Brasil precisa gerar empregos, revitalizar a infraestrutura, recuperar as empreiteiras destruídas pela Lava Jato e impulsionar outros setores industriais.
  • Um bom exemplo é o setor de ferrovias convencionais, de alta velocidade e metrôs. A China pode produzir trilhos e vagões aqui, em parceria com empresas brasileiras. 
  • A China também pode fazer um grande programa de investimento em energias renováveis, sobretudo solar e eólica. Um bom exemplo é um programa de implantação de painéis solares em casas e apartamentos, com financiamento público e abatimento tributário condicionado a empresas com índice de nacionalização. Isso pode ser feito via joint ventures com capitais chineses.
  • O edital de 5G, por exemplo, poderia estar associado com compromissos de transferência tecnológica e produção de componentes no país.
  • A BRI deveria ser pensada como alavanca para a integração física sul-americana. Empreiteiras chinesas podem se associar às brasileiras para enfim integrar os países da região.
  • Outra fronteira de cooperação é o de governança digital e políticas públicas. A China avança rapidamente em Big Data e temos órgão públicos com expertise em dados e planejamento (IBGE, IPEA). 
  • Como já cooperamos em satélites (CBERS), podemos até avançar para o setor de veículos lançadores em Alcântara. 
  • O BNDES e os bancos públicos nacionais podem cooperar com os Bancos e Fundos chineses, construindo alianças bilaterais, para financiar o desenvolvimento nacional e sul-americano. 

Enfim, trata-se de uma quadra histórica disruptiva de transição sistêmica. A China é um país chave para a consecução de uma ordem multipolar oposta à neoliberal e unilateral promovida por Washington. Cabe ao Brasil realizar uma leitura acurada das oportunidades e desafios para impulsionar o desenvolvimento e ocupar um lugar no sistema internacional compatível com sua estatura. 

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